domingo, 10 de maio de 2020

ODE A LITTLE RICHARD (1932-2020)

Quem é o rei do rock’n roll? Little Richard. 

Aliás, ele também é considerado como rainha do rock, graças à sua androgenial performance.

Ao Elvis Presley, com sua capacidade interpretativa, mise en scene em palco e excelência instrumental, devemos fazer reverências, mas não se pode retirar de Little Richard esse título. Tanto que o próprio Elvis o apontava como the best. Tinha razão.

Richard Wayne Penniman nasceu em 5 de dezembro de 1932, em Macon, Georgia, no seio de uma família evangélica. Frequentando a igreja, foi nela que aprendeu a tocar saxofone e piano.

A sua condição de gay não era bem aceita pelo conservadorismo religioso familiar, o que lhe acarretou rejeição, empurrando-o para a convivência com o mundo da música considerada profana, notadamente o ritmo eletrificado de matriz africana conhecido como rhythm'n blues.

Transitou do blues gospel (religioso) de sua pre-adolescência para o boogie-woogie, funk e jump blues, até se projetar com o ritmo alucinante do rock’n roll: "Tutti Frutti", composição de sua autoria que gravou em 1955, fez estrondoso sucesso e o colocou no rol das estrelas de primeira grandeza. 

A bela música cantada com entusiasmo e gestual pela etnia negra nos cultos religiosos estava então confinada aos espaços das igrejas, permitidos e delimitados pela segregação racial na Georgia; tratava-se da forma de expressão cultural possível, face aos obstáculos erguidos pelo preconceito. 
Little Richard, discriminado por sua condição homossexual e temperamento comportamental espetacular, evidentemente não se coadunava com as amarras impostas pelos brancos e pela visão conformista religiosa cristã de parte da comunidade mais antiga de sua etnia. A sua geração clamava por liberdade.

Libertado parcialmente das amarras religiosas, à qual sempre voltava vinculado pela memória de sua educação juvenil, pôde dar vasão à sua excentricidade comportamental e talento para a música que já vinha demonstrando seja como instrumentista ou cantor nos cultos religiosos.

Viveu por toda a vida a contradição que se auto-impunha como resultado dos limites impostos pela sua formação religiosa cristã e a sua natureza musical e comportamental rebelde. Não raro procurou nas drogas a ilusória, efêmera e escravizante felicidade. 

Desde muito cedo se colocou como promessa de grande interprete. Aos 13 anos de idade foi convidado pela já famosa Sister Rosetta Tharpe, talentosa cantora gospel e de rhythm'n blues, a cantar no palco em Maicon. Mais tarde ele afirmou que Rosetta lhe servira como inspiração para o que seria uma gloriosa carreira artística.

Suas principais influências originais foram Mahalia Jackson, Brother Joe May e Marion William, de quem aprendeu o sofejo whooooo, tão frequente nas suas composições e interpretações.

O jeitão colorido e extravagante do seu figurino (de início bem comportado, já que nas salas dos elegantes clubes frequentados unicamente por brancos,  eram-lhe era exigidos terno e gravata) foi inspirado no cantor Billy Wright, conhecido como o príncipe do blues.

Como cantor adulto conseguiu seu primeiro contrato de gravação em 1951, aos 19 anos, mas sem fazer muito sucesso. Em 1952, quando gravava para o selo RCA Camden, foi informado de que seu pai havia sido assassinado com um tiro, o que o abalou profundamente, apesar das suas desavenças de natureza moral e religiosa com o pai. 

Traumatizado, além de desiludido com a pouca repercussão de suas gravações, ele chegou a sustentar-se com o trabalho de lavador de pratos.

Somente em 1955, aos 23 anos, é que a sorte começou a sorrir para Little Richard. Tudo começou a ficar diferente quando ele impôs o seu jeito de tocar e cantar, juntamente com seus músicos. 

Little Richard passou a tocar o piano como se, no ritmo woogie boogie, espancasse toda a segregação que havia sofrido na sua vida inteira; este foi o mote para a gravação de "Tutti Frutti", que originalmente tinha forte apelo homossexual, daí as modificações que seus versos sofreram para se tornarem mais palatáveis para o público branco, que gostava do ritmo mas era conservador quanto aos conceitos ali expressos. 
Little Richard com os Beatles em 1962
Na esteira do sucesso inicial vieram muitos outros hits inesquecíveis, como "Long Tall Sally", "Rip It Up", "Lucille" e "Good Golly Miss Molly".

Little Richard, o menino pobre da Georgia, influenciou gerações de roqueiros brancos que se encantaram com as suas músicas. A lista, que se iniciou com Elvis Presley, incluiria os Beatles (que chegaram a abrir os seus shows numa turnê  à Inglaterra no início dos '60), Rolling Stones e Elton Jones. 

O legado deixado pela música de matriz africana no seu país de origem, que tanto maltratou e maltrata (a exemplo do que ocorre também por aqui, de modo menos explicito, mas não menos cruel) os estadunidenses de sua etnia, tem em B. B. King, Chuck Berry, James Brown, Jimi Hendrix,  Little Richard, Louis Amstrong, Muddy Waters, Nat King Cole e Ray Charles representantes da melhor qualidade. 

O mundo, hoje, reverencia a musicalidade nascida nos campos de algodão do sul dos EUA, quando os escravos trazidos da África cantavam as suas mágoas e suas dores com o lamento blues sussurrado (justamente porque não lhes era permitida uma exteriorização mais vibrante de suas alegrias e extroversões naturais). 

Little Richard é a síntese musical dessa dor, expressa com a beleza e doçura de sua agressão rítmica ao piano. 

Obrigado por sua denúncia de uma moral capenga e estética vetusta, e por nos ter dado a conhecer sua música magistral. E nos desculpe a todos pela passividade diante de tanta agressão racial à sua etnia; e homofóbica a você, particularmente. (por Dalton Rosado)

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