Ao surgirem, tanto o marxismo quanto o anarquismo prometiam conduzir a humanidade a um estágio superior de civilização.
A proposta de ambos era a de um melhor aproveitamento do potencial produtivo existente, direcionando-o para a promoção da felicidade coletiva, ao invés de desperdiçá-lo em desigualdade e parasitismo.
A hipótese anarquista nunca foi testada: não houve país em que cidadãos livres organizassem a economia e a sociedade sem a tutela do Estado.
A hipótese marxista não foi testada da forma como seus enunciadores previam: em países cujas forças produtivas estivessem plenamente desenvolvidas.
Nas duas nações que realmente contam, a revolução precisou cumprir uma etapa anterior, qual seja a de acumulação primitiva do capital, já que se tratava de países ainda desprovidos da infra-estrutura básica para uma economia moderna.
Acabaram tendo de exigir esforços extremos dos trabalhadores; e, como eles não se dispunham livremente a isto, a URSS e a China, cedendo ao imperativo da sobrevivência, coagiram-nos a darem na marra essa quota de sacrifício.
Ou seja, tornaram-se tiranias. Uma mais brutal e assassina, a stalinista. A outra mais messiânica e fanática, a maoísta.
Sobreviveram exatamente até cumprirem a função por elas assumida, de trazer países atrasados até o século 20. A partir daí, entretanto, passaram a emperrar as forças produtivas, ao invés de as deslanchar.
O socialismo real da União Soviética e satélites caiu de podre na década de 1980, com as nações voltando ao capitalismo.
O maoísmo tentou ainda resistir aos ventos de mudança com a revolução cultural, em vão. Depois de uma luta travada na cúpula, sobreveio o pior dos mundos possíveis, um amálgama de capitalismo de Estado na economia e ditadura do partido único na política.
De 1989 para cá não surgiu uma proposta revolucionária alternativa, capaz de vingar nos países economicamente mais desenvolvidos – aqueles que, segundo Marx, traçam o caminho que depois é seguido por todos os outros.
Inexiste hoje uma estratégia que contemple a concretização simultânea das três bandeiras principais do marxismo e do anarquismo: a promoção da justiça social, o estabelecimento da liberdade plena e o incremento da civilização.
Unir essas três pontas soltas, na teoria e na prática, é nossa principal tarefa no século 21.
FLERTANDO COM O APOCALIPSE — Até lá, devemos esforçar-nos para, pelo menos, não nos tornarmos agentes da tirania e da barbárie.
O capitalismo globalizado é tão decadente, putrefato e destrutivo quanto a escravidão nos estertores do Império Romano. Já não oferece valor positivo nenhum à sociedade, só os negativos.
É mais um motivo para não nos comportarmos como a imagem invertida de nossos inimigos.
Se a indústria cultural deles se tornou totalmente parcial e tendenciosa, não é justificativa para substituirmos a reflexão pela propaganda em nossos meios de comunicação, endeusando líderes, exagerando acertos e minimizando/escondendo erros.
A imprensa burguesa se desacredita e desmoraliza a olhos vistos. Temos de ocupar esse espaço vazio, mostrando-nos capazes de cumprir melhor as três funções do jornalismo: informar, formar e opinar.
E não deixarmos que a função opinativa impregne tudo e determine o conteúdo das outras duas. Se eles não dispõem mais de credibilidade, só teremos a ganhar zelando religiosamente pela nossa.
E não é qualquer forma de luta que nos serve, como serve para eles.
Os EUA não hesitaram em fazer do povo japonês uma cobaia dos efeitos de petardos atômicos, detonando-os para, principalmente, servirem como efeito-demonstração: queriam intimidar Stalin. Para forçar a rendição japonesa, hoje está mais do que provado, os holocaustos de Hiroshima e Nagasaki não eram necessários.
Se houve uma verdadeira lição desses episódios terríveis, é a de que nunca mais as armas atômicas devem ser utilizadas, contra ninguém, absolutamente ninguém!
Então, por piores que sejam as atrocidades cometidas por Israel, ainda assim não há hipótese em que verdadeiros revolucionários possam defender projetos nucleares, mesmo estando direcionados contra o estado judeu.
Até porque, como será impossível evitar a retaliação, o que está em jogo é a destruição simultânea de dois países e seus povos, afora os efeitos devastadores sobre as nações vizinhas e seus povos.
Quanto ao equilíbrio do terror – a tese de que, se nações inimigas possuírem armas nucleares, nenhuma as ousará disparar –, foi exatamente a que quase levou à destruição da humanidade em 1962.
Pois, por nela acreditarem, os cientistas responsáveis pela bomba estadunidense vazaram o know-how para os soviéticos.
Como consequência, na crise dos mísseis cubanos estivemos a um passo de uma guerra atômica que, provavelmente, teria extinto a espécie humana. Fomos buscar a salvação na bacia das almas.
De 1962 para cá se passou tempo suficiente para esquecermos aquele pesadelo e já admitirmos flertar de novo com o apocalipse?!
Ao invés do equilíbrio do terror, a opção mais sensata é limitarmos o ingresso de nações instáveis no clube atômico.
Mesmo porque, quanto mais países dispuserem de armas nucleares, maiores as chances de que sejam utilizadas.
Pensadores como Norman O. Brown veem o capitalismo, em última análise, como um instrumento cego da destruição da humanidade. Isto se torna bem plausível se considerarmos, p. ex., as alterações climáticas e a devastação de recursos naturais essenciais à nossa sobrevivência.
Para nós, os empenhados na construção de um mundo melhor, o desafio é evitarmos que o enterro do capitalismo seja também o da espécie humana.
Toque do editor — este artigo é de setembro de 2009, quando uma esquerda que acreditava estar no poder esquecia o que seus grandes pensadores outrora formulara e aderia selvagemente a uma visão geopolítica, apoiando tiranetes feudais dos países árabes e um grosseiro militarismo de esquerda sul-americano, na linha do contra Israel e os EUA vale tudo.
Não só foi (fui) ignorado, como quase tudo contra o qual o artigo alertou se demonstrou correto. Daí estar a reeditá-lo hoje, quando, mais do que nunca, a esquerda precisa projetar a imagem de defensora da civilização contra a pior escalada de barbárie a fustigar a humanidade desde a queda do Império Romano.
Por Celso Lungaretti |
4 comentários:
***
Discordo que os caras fizeram errado ao vazarem os segredos da bomba. Eles agiram baseados na teoria do jogos e acertaram.
Também sei porque cada tentativa de conduzir a humanidade a um estágio superior de civilização degringola.
Tem um nome: ego.
O ego é uma construção virtual que nasce da ilusão de que se é diferente.
Para negar a nossa semelhança básica é que foi criada toda a entourage de segregação baseada nessa construção quimérica.
A raiz disso é muito mais telúrica e fundamental do que parece e também tem sido útil a perpetuação da espécie.
Esse instinto primevo de sobreviver impediu e impedirá de acabarmos com a espécie.
Se bem que a natureza tem suas mumunhas e providenciará extinções em massa, como esta que se avizinha, causada por super bactérias e virus.
A natureza não admite a monocultura, o retrocruzamento e nem a clonagem.
Ela tem agido também diminuindo a progênie destes tais povos mais avançados, cuja taxa de reposição já permite prevê sua extinção em breve.
Tranquilito Celso.
As coisas estão e são como deveriam ser.
Querer ser "il condottieri" é apenas mais uma das ilusões do ego.
Bom final de semana.
*
Anônimo,
nunca tinha visto alguém defender de forma tão sofisticada a postura do "deixa como está para ver como fica". Parabéns!
Agora vá explicar isso direitinho à natureza, porque as consequências das alterações climáticas e do uso predatório de recursos essenciais para a sobrevivência de nossa espécie já se fazem sentir.
Quanto ao "equilíbrio do terror", sugiro que vc se informe melhor sobre quão perto estivemos de uma guerra atômica entre EUA e URSS em 1962.
Se não quiser ler livros que aprofundam e reconstituem o episódio, veja, pelo menos, o filme "13 dias que abalaram o mundo", que, apesar de alguns convencionalismos hollywoodianos, dá uma boa ideia de como John Kennedy e Nikita Kruschev tiveram de suar sangue para evitar que os falcões de ambos os países dessem o pontapé inicial no começo do fim.
***
Desculpe se parece que sou do tipo omisso. Não se trata disso.
Algo estou fazendo em benefício dos meus semelhantes.
Antes dizia que eramos iguais, mas percebi que isso irritava sobremaneira as pessoas e quanto maior o ego mais irritadas ficavam.
Atualmente, digo que somos muito semelhantes. Digo-o aos humanistas que, acredito, seja o seu caso.
Eu percebi o quão narcisista e iludido é o meu ego ao confrontar-me com forças superiores e indiferentes a minha tola pretensão de controle e importância.
Percebi que não posso controlar o clima, por exemplo. Se chove se faz sol. Evito, no entanto, falar de outros fenômenos para os quais o ego humano criou fantasias dignas de pena.
O fato é que estes fenômenos aconteceram, e acontecem, comigo e nunca se importaram com a minha opinião ou ao fato de eu existir, porém me revelaram o de que existem forças superiores a mim, para as quais o que eu penso ser (meu ego) não tem nenhuma importância.
Com o rudimentar conhecimento científico que tenho, percebi que elas obedecem a leis irrecorríveis e imutáveis, e que de fato são Leis, pois se aplicam por si mesmas, independente dos sofríveis sentimentos de justiça que eu possa ter.
É bom dizer que Von Neumman foi o gênio e contribuiu na criação da teoria dos jogos a qual, quando aplicada em jogos honestos de informação ampla, prevê que os agentes serão cooperativos.
Então, os caras que vazaram a informação da bomba, fizeram a coisa mais certa e lógica a fazer. Tanto foi que a guerra nuclear nunca aconteceu.
Os caras romanceiam, adjetivam e hiperbolizam os fatos para venderem ilusões, mas nem todos são assim.
Um cineasta incluiu uma cena no filme "Batman, o cavaleiro das trevas" que reproduz o dilema do prisioneiro (a dos submarinos), mas o resultado é a cooperação. John Nash voltou a tomar barbitúricos depois dessa.
Atente-se que, só em situações limites como aquela dos submarinos é que seria possível que a decisão lógica fosse tomada, mas na realidade a informação é ampla e há diálogo entre as partes, é bem capaz de Neumman e sua turma estarem certos e que os possuidores da bomba serão sempre cooperativos.
Acredito que esses conhecimentos sejam benéficos a todos.
Como disse Pedro "não tenho ouro nem prata, mas isso que tenho lhe dou".
*
P.S. - Ia citar o versículo, mas lembrei que basta pesquisar na net e ver quando e como Pedro disse isso. A informação está cada vez mais acessível.
Eu continuo convicto de que, nada fazendo para mudar os rumos de nossa sociedade, encaminhamo-nos automaticamente é... para a extinção!
As consequências das alterações climáticas já começam a fazer-se sentir e vão intersificar-se cada vez mais. O mínimo que deveríamos ter feito, há décadas, é proibir o uso de combustíveis fósseis no transporte individual.
Nem isto fomos capazes de fazer, porque as multinacionais preferiram impor-nos tragédias futuras do que abrirem mão do seu lucro no presente. E os governos são impotentes face ao poder econômico.
Vem daí que, mesmo se tomarmos as providências corretas agora, passaremos muitos anos fustigados por catástrofes que foram engatilhadas lá atrás. E quanto mais refugarmos, mais ameaçados estaremos de não haver mais como sobrevivermos a elas.
Quanto ao fato de que, de todos os comandantes da frotilha soviética e todos os pilotos estadunidenses terem obedecido às ordens superiores, nenhum deles iniciando o conflito que num piscar de olhos se generalizaria, foi uma moeda que caiu em pé.
Se fosse buscar uma explicação para isso, eu preferiria acreditar que "Deus pai todo poderoso" foi quem travou seus dedos quando a coceirinha de apertar o botão do disparo aumentava.
Pois teoria dos jogos nenhuma explica por que, na mais dramática das ocasiões, pessoas submetidas a tamanha tensão conseguiram, cada uma delas, manter o autocontrole. Bastaria uma única ter perdido a cabeça e não estaríamos travando este debate.
Postar um comentário