sábado, 29 de fevereiro de 2020

'A ESQUERDA PRECISA FAZER O LUTO DO QUE FOI ATÉ AGORA E CONTRAPOR À REVOLUÇÃO CONSERVADORA UMA REVOLUÇÃO REAL'

Toque do editor
Tendo aqui reproduzido o artigo Como a esquerda brasileira morreu, do Vladimir Safatle, é obrigatório informarmos que El País acaba de publicar uma espécie de continuação, Para a esquerda, morrer é só o começo, cujo texto integral pode ser acessado neste link, bastando registrar-se gratuitamente no site desse prestigioso jornal espanhol. 

Mas, a partir das repercussões do artigo inicial, Safatle consome grande parte da sequela debatendo críticas ou explicitando o que já havia colocado.

Como este blog prefere sempre a essencialização, pincei aquilo que o novo artigo traz de realmente novo e importante. São os trechos seguintes:
Por Vladimir Safatle
.
"Gostaria de insistir que o que ocorre agora não é simplesmente uma derrota. É o esgotamento de um ciclo hegemônico que se confunde com a história da esquerda nacional. A esquerda já conheceu várias derrotas, mas nunca conheceu um esgotamento semelhante a este. 

Nossas derrotas eleitorais, ou mesmo nossa derrota histórica diante do golpe de 64, não implicaram a incapacidade de projetar alternativas globais no futuro. A esquerda nacional conseguiu preservar durante décadas essa força de projeção, levando setores expressivos da sociedade a sonharem com um futuro radicalmente distinto do presente. 

Quando, ao contrário, nosso horizonte de expectativas foi submetido a uma retração cada vez maior, ficou claro que estávamos a entrar em algo de outra natureza. O nome desta outra natureza é, infelizmente, morte.

...não se trata de algo ligado ao Governo Bolsonaro, mas à incapacidade de a esquerda nacional reagir com uma mobilização compacta de ações, práticas de governo e conceitos que apontem efetivamente para uma sociedade globalmente distinta dessa que vemos no presente. 

Qual é a política econômica alternativa da esquerda nacional? Qual seu horizonte de reconstituição institucional? Nada disso é claro e nós nos recusamos a aprofundar tais debates.

"o populismo de esquerda não conseguirá mais ser reeditado"
A história da esquerda brasileira realmente se confunde com os modelos de governabilidade e mobilização próprios ao populismo de esquerda. Este populismo não conseguirá mais ser reeditado porque agora temos um fascismo popular produzido pela duplicação do tipo de liderança que o lulismo representou.

Todos nós estamos envolvidos em várias lutas, em várias frentes, num ritmo muitas vezes frenético. Todas elas são grandiosas. Mas a questão é outra. As múltiplas lutas não conseguem mais entrar em um processo de acumulação e unificação. Elas não entram em constelação. 

Conseguimos colocar um milhão de pessoas nas ruas em defesa da educação pública, mas não há sequência. Não há dia seguinte, não há acúmulo de lutas e, com isto, capacidade de bloquear as políticas destrutivas do governo. Um milhão de pessoas na rua transforma-se numa resistência pontual. Seria o caso de se perguntar a razão para tanto.

...o fato de que a multiplicidade das lutas no Brasil não consiga convergir num campo comum de combate às forças que espoliam os 99% é um signo fundamental da atrofia que ocorre quando um modelo hegemônico morre. Pois isto ocorre devido ao fato da esquerda brasileira ter usado, até agora, as lutas de reconhecimento [também chamadas de identitárias] de forma compensatória. 
"a esquerda brasileira tem usado até agora as lutas identitárias de forma compensatória"
Como ela não tem nenhum horizonte concreto de transformação econômica, como ela teme dizer em alto e bom som que é anti-capitalista, como ela é a última a realmente defender a necessidade de refundação da institucionalidade política nacional, como ela não consegue criar estruturas e organizações que sejam radicalmente democráticas, como ela não consegue mais criar solidariedade genérica com aqueles que não são como nós, a esquerda nacional se viu obrigada a expor de forma isolada o único setor no qual ela tem capacidade de transformação, a saber, este ligado às dinâmicas sociais de reconhecimento. Assim, ela acabou por limitar a força efetiva dessas lutas.

A cada dia que passa, fica mais claro que o Brasil é um laboratório mundial para um modelo de articulação entre neoliberalismo e fascismo. O termo fascismo não é, aqui, uma concessão retórica. Ele é o nome de um processo em curso que paulatinamente ganha forma. 
"A esquerda precisa desmontar o necroestado que vulnerabiliza os mais vulneráveis"
Um processo dessa natureza só pode ser parado de duas formas: graças a uma catástrofe (como uma guerra) ou mediante a consolidação de uma real força de contraposição radical. Uma força que possa contrapor à revolução conservadora uma revolução real. 

Mas, para tanto, essa força precisa atuar na duas frentes que sustentam o modelo, ou seja, ela precisa desmontar o necroestado que agora não tem medo de dizer seu nome nem de esconder suas técnicas reais. Necroestado que vulnerabiliza os mais vulneráveis, que elimina os que nunca foram realmente reconhecidos pela sociedade brasileira como sujeitos. 

Mas ela precisa também destruir o modelo econômico que o financia e necessita dele para amedrontar a sociedade enquanto garante ao sistema financeiro nacional lucros nunca dantes vistos na história do país. 
Os mesmos grupos, bancos e empresas que atualmente aplaudem a política econômica em curso fingindo não ver a violência e a destruição próprias a este governo são aquelas que 40 anos atrás forneceram dinheiro para a ditadura montar aparatos de crimes contra a humanidade, tortura, desaparecimento e estupro. 

Ou seja, não é exato dizer que eles são indiferentes à violência estatal. Na verdade, eles sabem muito bem que necessitam de tal violência para conseguir os lucros que hoje recebem. Sem ela, a sociedade se voltará contra os interesses de sua elite rentista e seus operadores.

Mas essa força que usa a organização compacta e a imaginação política convergente para traçar um horizonte de desejos e lutas para fora do capitalismo, digamos claramente, ainda não existe. Ela só existirá se aceitarmos fazer o luto de nós mesmos, o luto do que fomos até agora".

Um comentário:

Anônimo disse...

O escritor português José Saramago dizia que era preciso liquidar o dragão e não apenas cortar suas unhas. Em 13 anos de governo do lulismo nem as unhas do dragão capitalista foram aparadas.

Bilhões de R$ para a Globo, salvando-a da falência. Centenas de milhões de R$ para a falida Veja.

Não foi capaz sequer,por covardia política, fazer com que os bancos tivessem as taxas de serviços decentes. Só com essa receita das taxas os bancos pagam os empregados.

E Lula só pensa em tonificar o PT nas eleições municipais deste anos [sob seu comando, sempre].
Voto nulo em outubro.

Luiz C. Barbosa

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