Ah, quantas saudades daqueles tempos melhores que dificilmente se repetirão!
Tempos nos quais:
— ainda se ouviam canções com letras bem poéticas, cujos versos diziam, p. ex., que “a felicidade é como a gota de orvalho numa pétala de flor, brilha tranquila, depois de leve oscila e cai como uma lágrima de amor”;
— havia brasileiros cordiais, para quem o pensar e sentir prevalecia sobre a obtusidade do agir norteado por sentimentos de ódio e desrespeito pela vida;
— a simbologia da arma era deplorada (hoje mocinho, amanhã bandido) e se contrapunha a beleza das flores à rudeza dos canhões.
Ah, quanta saudade dos tempos em que um samba simples, num esquema novo, intitulado Chove chuva, composto e interpretado por um jovem de 18 anos da periferia do Rio de Janeiro, era apenas uma linda melodia cuja letra exortava aos céus “pra chuva parar de molhar o meu divino amor”!
Ah, como é duro ter agora de ouvir um terraplanista qualquer, enquistado no governo, a zurrar que o aquecimento global é coisa de esquerdistas fanáticos, desqualificando o consistente trabalho dos cientistas que alertam para os graves riscos sinalizados pela escalada de fenômenos climáticos como as chuvas torrenciais ou a ausência delas, bem como por outras alterações cada vez mais acentuadas no nosso meio ambiente!
Ana Paula e Ana Moser: antes unidas nas quadras, hoje travando azedas discussões políticas no twitter |
[Governantes com alma de ditadores, legitimados pelo pensar pragmático e a ele presos, teimam em ignorar o abismo que se abre aos seus (e aos nossos) pés! Felizmente ainda são conseguem anular os principais contrapontos civilizatórios existentes...]
Como é triste ver o triunfo (que, espero, seja efêmero) do discurso pragmático que mais não é do que a insensibilidade travestida de algo novo, num corolário propositivo de falsas ilusões redentoras!
[As quais, de tão velhas, ao receberem a maquilagem atual, ficaram parecendo o diabo do Auto da Compadecida de Ariano Suassuna, sob a forma ilusória de uma generosa e sedutora donzela.]
Recentemente assisti a uma entrevista televisiva na qual transpareceu claramente a afirmação atual de um pragmatismo que inverte conceitos sociais virtuosos (e tudo de modo educado e com boa fluência, a ponto de parecer aos ouvidos leigos uma argumentação convincente).
Ana Paula já gravou pronunciamento para o Aécio Neves... |
Como é duro ouvir uma bela e competente atleta, que se destacou em tantas conquistas inesquecíveis do vôlei brasileiro nas quadras e nas praias, a defender agora comportamentos pragmáticos ditados para nós pelos senhores do mundo e da guerra, aliás os mesmos que:
— são donos da moeda internacional (o dólar), aquela que tudo compra mesmo sem lastro;
— defendem e patrocinam ditadores corruptos e assassinos quando são deles aliados, caso contrário se erigem em paladinos do combate à corrupção e ao terrorismo (não foram os EUA que um dia apoiaram Osama Bin Laden e Saddam Hussein, para depois demonizá-los e assassiná-los?!);
— bombardearam Bagdá com aviões ultramodernos, matando até crianças que estavam a dormir, tudo sob a falsa alegação de que lá existiriam armas biológicas e arsenal terrorista
— exigem ajustes fiscais para os pobres países periféricos do capitalismo, mas praticam as mais descaradas gambiarras com seus próprios e repetidos déficits fiscais, além de emitirem moedas sem lastro que, sendo aceitas mundialmente, não causam inflação interna;
— proíbem os outros países de deterem armas nucleares, mas as têm com a mais alta tecnologia da execrável perspectiva da morte e com elas se posicionam como polícia do mundo?
— fecham suas fronteiras aos imigrantes pobres da ordem capitalista que os privilegia (mas aceitam por lá quem tenha dinheiro para comprar o green card);
— afirmam hipocritamente que, se todos se comportarem em seus países de origem segundo o figurino pragmático por eles favorecido, podem ficar ricos paritariamente?
...agora encontrou um pior ainda para apoiar... |
— defendem o livre comércio mas, tão logo se vejam amaçados pela lógica capitalista em contradição (empresas que buscam mão-de-obra barata noutros países e desertam do solo pátrio), apressam-se em elaborar leis protecionistas que bem demonstram a contradição e hipocrisia dos seus fundamentos históricos.
Não, Ana Paula!
Não é morando nesse país e apoiando o patético Trump, como se (usando uma expressão característica do american way of life que você tanto aprecia) o downhill do descalabro corruptivo no Brasil, praticado pelos mesmos que historicamente compõem a elite política brasileira, estivesse agora sendo verdadeiramente combatido, que vamos superar as nossas dificuldades.
Outrossim, devemos considerar que as medidas liberais aqui aplicadas não podem resultar em sucesso e vitória, pois isso é tão improvável como se você quisesse que o seu Cruzeiro (o recém-rebaixado no Brasileiro, não aquele de Tostão, Dirceu Lopes, Piazza, Zé Calos e outros monstros sagrados do futebol de Minas) pudesse ser campeão do mundo diante do Liverpool atual...
É triste constatar que o pensamento pragmático (que positiva tudo o que é negativo como se fosse positivo, numa inversão dos conceitos virtuosos) esteja se consolidando como diretriz a ser seguida, e como se a sensibilidade conceitual e poética igualitária dos libertários fosse algo a se jogar na lata do lixo da história.
...sem mostrar noção daquilo para que está contribuindo... |
Você justifica todas as idiossincrasias que constituem o fundamento do pensamento político do chamado núcleo duro do poder boçalnarista em nome de uma coisa maior que você julga estar sendo implantada no Brasil: as bases de um progresso econômico sustentável e minimamente livre da corrupção patrocinado pelo pensamento liberal, como se o capitalismo não fosse uma lógica social segregacionista e corrupta na sua essência constitutiva, segundo a qual uns poucos ganham e a grande maioria sempre perde.
No caso, somos nós os perdedores desse jogo de cartas marcadas e jamais poderemos sair desta condição, a menos que superemos a lógica que nos escraviza e submete.
É mais fácil morar nos Estados Unidos (tal qual o charlatão Olavo de Carvalho) e defender o uso tupiniquim das práticas que por lá dão certo, do que ficar aqui no Brasil de tantas mazelas e questionar o tratamento desigual da guerra concorrêncial de mercado e de crédito, da qual somos vítimas.
Não, Ana Paula!
O pensamento pragmático é sempre, e sobretudo, oportunista, falso, tendencioso e inconsistente; portanto, ele não nos serve.
A filosofia, que significa amor à sabedoria, abomina o pragmatismo oportunista e ideológico da verdade prática superficial e irrefletida.
...até por ser difícil, estando longe, saber o que aqui se tornou. |
A pobreza prevalece em 80% de todo o nosso continente, não por culpa de uma nossa pretensa incompetência, mas de uma lógica que nos três últimos séculos promoveu a segregação social continental, que aprisiona o pensar e o agir de governantes e o Estado a ela atrelado.
O buraco é mais embaixo. O problema é estrutural e não uma questão de bom e honesto gerenciamento estatal, este último sendo, sempre, o guardião institucional e militar dessa (des)ordem) macroeconômica e social.
Não queira nos transformar em mocinhos pretensamente altruístas, como num firme de bang-bang estadunidense, acreditando que tudo possa terminar num final feliz a partir de tais pressupostos. (por Dalton Rosado)
Um comentário:
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O pragmatismo não é só melancólico, mas desonesto, pois ele significa, a priori, o desprezo pela verdade.
Ocorre, porém,que os sofismas pragmáticos tem vasta aceitação entre o maucaratismo geral, tanto que até Bertrand Russell foi para cima dele e o destroçou mostrando as suas ilogicidades.
O argumento de B. Russell que li na wikipédia e que mais me impressionou foi "que adotar utilidade como critério de verdade nem mesmo é útil, segundo Russell, porque geralmente é mais difícil descobrir se uma crença é útil do que descobrir se ela é verdadeira. Finalmente, não sendo apresentada nenhuma razão pela qual a verdade e a utilidade devam andar juntas".
Crença! Esta a palavra que desvela o picareta.
Sou cético quanto ao sucesso de qualquer projeto que exija a crença como premissa e tenho ojeriza a associar-me a crentes ainda que, pragmaticamente, procure ser polido com todos.
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