domingo, 15 de setembro de 2019

O ESPORRO DO MOISÉS CAIU EM OUVIDOS MOUCOS: A ADORAÇÃO DO BEZERRO DE OURO JAMAIS PAROU DE AUMENTAR

dalton rosado
A DESFETICHIZAÇÃO
"Com o desenvolvimento das forças produtivas do trabalho (...), as condições objetivas do trabalho assumem uma autonomia cada vez mais colossal, que se apresenta por sua própria extensão em relação ao trabalho vivo, e de tal forma,
que a riqueza social se defronta com o trabalho
como um poder estranho e dominador
em proporções cada vez mais
poderosas." (Karl Marx,
nos Grundrisse) 
Não tenho dúvidas de que o passo mais importante da humanidade nesta primeira metade do século 21 seja o de romper com o fetichismo da mercadoria. 

Mas, ao mesmo tempo que encaro tal empreitada como a mais imperativa de todas as ações revolucionárias, não desconheço que se trata, ao mesmo tempo, da mais difícil, ainda que a realidade esteja nos empurrando para tal tomada de consciência social.

Não é pouca coisa nos desprendermos daquilo que culturalmente nos foi sedimentado como algo natural (embora seja absolutamente antinatural): acordar para ganhar a mercadoria dinheiro e, assim, poder comprar as mercadorias necessárias ao consumo (água, energia, alimentos, vestimentas, morada, transporte, etc.). 

Já me perguntei inúmeras vezes o porquê de todos os marxistas tradicionais (grupo ao qual pertenci durante muitos anos) nunca terem atentado para o significado fundamental de Karl Marx ter iniciado sua obra maior, O Capital, dissecando a forma-mercadoria e sua negatividade social. 
O Capital, que se constitui como uma síntese de todos os seus pensamentos anotados e elaborados a partir dos Grundrisse (os rascunhos e anotações do seu livre-pensar genial, que são de indispensável leitura, ainda que volumosos e de trabalhosa compreensão), é a crítica da economia política por excelência e na sua maior profundidade.

Ora, se forma-mercadoria, expressão materializada do valor, é uma abstração que se torna real, sensível, palpável, tangível, fenômeno dissecado por Marx como a negatividade social capaz de submeter toda a humanidade à impessoalidade de sua lógica destrutiva e ao final autodestrutiva (como agora ocorre), por que as revoluções feitas em seu nome não deram ênfase a este aspecto, ao invés de conservarem todas as categorias capitalistas intactas, concentrando esforços na gestão social política?

Por que não compreenderam que jamais poderiam submeter ao controle da subjetividade revolucionária a dinâmica existencial e reprodutiva do dinheiro (expressão e mercadoria especial, signo da forma-valor)?

Por que em toda a volumosa obra de Lenin não há referência preponderante sobre a questão do fetichismo da mercadoria e a imperiosa necessidade de o combatermos?

Quando me perguntam sobre os descaminhos revolucionários da Rússia e da China, digo aos interlocutores que os desvios comportamentais dos dirigentes dos partidos comunistas e cúpulas governamentais (todos terminaram por sucumbir ao totalitarismo político no qual o trabalho e os trabalhadores não passaram de simbologia caricata da predominância operária, daí a ojeriza que a expressão ditadura do proletariado sempre me causou) foram forjados a partir de uma relação social que desde o início teve na forma-mercadoria a sua base constitutiva inquestionável ou perigosamente omitida.

A busca da prosperidade econômica tendo como base a produção de mercadorias sempre implicou a coexistência nefasta (mesmo quando admitida como mal necessário) com uma entourage de outros componentes que nada mais são do que a admissão de bom grado das categorias capitalistas a lhe dar suporte (Estado, controle monetário, política, mercado, trabalho abstrato, etc.)  

Esta questão da submissão ao fetichismo da mercadoria foi comparada por Marx à adoração desmedida dos aborígenes pelos totens de pedra que eles próprios haviam erigido, a ponto de, com o passar do tempo, passarem a sacrificar vidas em seu louvor e preces. 

É tão forte que temos muita dificuldade em admitir uma produção de bens sem o concurso do dinheiro, ainda que em cada objeto e serviço servível e sensível ao consumo não exista um grama sequer dessa matéria abstrata.

Afinal, o dinheiro, a mercadoria das mercadorias, expressão abstrata da abstração valor, é a única que não tem valor de uso. Não é um componente químico, somente se imiscuindo na produção de forma oportunista e segregacionista.

Mas o dinheiro, agora acumulado sob a forma de capital, entrou em processo de disfunção social. 

Há um volume absurdo de moeda sem lastro (que chamo de oficial falsa) em circulação mundo afora, e esses capitais não encontram possibilidade de reprodução saudável na produção de mercadorias e serviços. 

Esta é a razão da redução dos juros mundiais, ainda que no Brasil, como de resto ocorre nos países da periferia do capitalismo, se pratiquem juros extorsivos (as taxas chegam a ser estratosféricas no cartão de crédito e no cheque especial, p. ex.). As desigualdades no capitalismo são gritantes.

Há bem pouco tempo se afirmava que somente se pode produzir algo tendo dinheiro; agora, é o próprio dinheiro que está travando a produção em razão das dificuldades cada vez maiores de sua reprodução.

Alguém que tenha ganhado muita grana na loteria, se se dispuser a viver nababescamente, poderá fazê-lo facilmente gastando seu capital; mas, caso se disponha a aumentá-lo aplicando numa atividade empresarial qualquer, estará correndo sérios riscos de ter prejuízos e até perder tudo. 

Diante de tal impasse que desemprega o capital e os trabalhadores economicamente ativos, gerando uma fissura no tecido social e institucional (o Estado que depende da economia está endividado e os governantes perplexos em terem de administrar a escassez), a população e os movimentos sociais, desacostumados à vida fora do mercado e da produção de mercadorias, não sabem para onde ir. 

A direita com seus postulados cada vez mais voltados para a negação de tudo que seja ganho civilizatório da humanidade, propõe o retrocesso institucional, tentando impedir pela força o rompimento do dique que pode tudo inundar.

A esquerda, apegada à intervenção estatal como forma (impossível) de suprimento das demandas sociais e aos cânones constitucionais burgueses, não pode e não quer abandonar as antigas formulas e nem redimensionar os conceitos de produção e organização sociais. Mantém um discurso pretensamente oposicionista e vai se contentando com a fatia de poder que a democracia burguesa lhe concede.

Diante disso a população, atônita e impotente, experimenta uma realidade de deterioração da vida econômico-institucional, com graves reflexos na vida social. 
Para piorar o que já era péssimo, seu penar é agora acrescido dos problemas ecológicos que se avolumam (incêndios florestais, furacão nas Bahamas, enchentes na Espanha, calor insuportável na França) como consequência da produção predatória à qual o grande capital não pode renunciar por dependência irrenunciável à lógica mercantil (caso da emissão de gás carbônico pelos EUA e China).  

Quanto mais demorarmos a discutir o desapego à vida mercantil, ou seja, quanto mais permanecermos presos ao fetichismo da mercadoria, sem procurarmos novas formas de produção que estejam livres da lógica do valor e da mercantilização da vida, mais estaremos rumando celeremente para o abismo. 

Entendo, portanto, que o mais importante agora não é se discutir que outro mau governante deve substituir o ruim de plantão, pois todos terão de governar dentro das balizas previamente determinadas pela lógica da produção mercantil e submetidos às amarras constitucionais, mas construirmos um plano emergencial de sobrevivência social que antecipe e previna os efeitos catastróficos que se anunciam. (por Dalton Rosado)
Sérgio Ricardo, na canção Bezerro de Ouro: "Os bancos de caixa forte /
Que eram rochas se quebraram / E um rio de dinheiro correu /
Os habitantes da Terra / Tão descuidados pescadores / Se
afogaram no dinheiro / Sem se aperceber"

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