hélio schwartsman
A MÁQUINA DO PRAZER
Num dos mais memoráveis experimentos mentais da filosofia, Robert Nozick propôs que imaginássemos uma máquina de gerar estímulos prazerosos tão perfeita que, se nos ligássemos a ela, viveríamos uma vida de júbilos sem fim, que não teríamos como distinguir da realidade.
Se lhe fosse dada a escolha, você, leitor, optaria por acoplar-se à engenhoca até o fim de seus dias ou preferiria seguir no mundo real?
Nozick, que criou esse experimento para refutar o hedonismo ético, mais especificamente os utilitaristas, que erigem a promoção do prazer (e a supressão da dor) em fundamento universal da ética, obviamente imagina que a maioria de nós rejeitaria ligar-se à máquina e articula razões para a recusa.
Não pretendo discutir aqui se o hedonismo é ou não a base da moralidade, mas apenas constatar, consternado, que os tempos estranhos em que vivemos podem ter realizado a façanha de criar uma versão virtual da máquina do prazer de Nozick e introjetá-la nas mentes das pessoas.
O achado é empírico. Pesquisa Datafolha mostrou que 7% dos brasileiros acreditam que a Terra é plana e que 26% não creem que os americanos tenham pousado na Lua.
Os disparates anticientíficos não se limitam à astrofísica. Sondagem de 2010 revelara que 25% dos nossos conterrâneos acreditavam em Adão e Eva.
Minha hipótese é que, diante da profusão de narrativas sobre tudo e da indecidibilidade de alguns temas, as pessoas estejam simplesmente desistindo da ideia, tão fundamental para a modernidade, de que suas crenças (ou pelo menos parte delas) devem estar amparadas por fatos verificáveis e raciocínios lógicos e estejam optando por adotar a opinião que mais lhes dá prazer, como se rodassem uma máquina de Nozick dentro de suas cabeças.
O resultado desse processo se mede num anti-intelectualismo cada vez mais exacerbado e do qual as pessoas têm cada vez menos vergonha. O tempora, o mores. (por Hélio Schwartsman)
2 comentários:
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O velho Aristocles já tinha sacado esse anseio humano pela irresponsabilidade no mito do anel da invisibilidade de Giges.
Podendo fazer o que quisesse o probo Giges virou um patife, posto que, invisível, não seria punido por sê-lo.
A fuga hedonista é só uma variante desse mito platônico e o tal de Nosvik apresentou como nova uma experiência requentada.
Do amigo Aristocles também é o mito da caverna com seus habitantes que se recusam a acreditar que exista algo além das sombras que veem.
Relembro que os amos da caverna se sofisticaram e um deles (Bernays, Edward L.) afirma que as civilizações foram criadas e guiadas por uma pequena aristocracia intelectual e que as massas, sendo instintivas e indisciplinadas, não têm a força para destruir a tal aristocracia, acabando assim por serem dominadas por indivíduos que têm o conhecimento da alma das multidões; assevera ainda que a manipulação científica da opinião pública é necessária para superar o caos e o conflito numa sociedade democrática e que os melhores resultados serão obtidos se as massas forem controladas sem o conhecimento delas.
Está vendo?
Não é que regredimos, o fato é que nunca avançamos.
Continuamos manipulados por sombras projetadas pelos amos. Portanto, não há muito o que esperar do coletivo.
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Vejo com bons olhos o estoicismo que é próprio para tempos de profunda degradação moral.
Anônimo das 15h17,
é inegável que a trajetória da humanidade foi toda no sentido de superarmos a barreira da necessidade, passando a determos conhecimento e recursos materiais para assegurarmos a nossa sobrevivência e levarmos uma existência cada vez mais confortável e gratificante.
O problema é que, quando já dispúnhamos dos meios para tanto, não conseguimos desmontar as estruturas de dominação estabelecidas no tempo da desigualdade compulsória. Agora temos total possibilidade de proporcionar a cada habitante do planeta o suficiente para viver com dignidade, mas os frutos do trabalho humano não são divididos equitativamente: uma minoria usurpa parte considerável deles e os utiliza exatamente para aprimorar os instrumentos de dominação.
E o que é pior: o controle das massas hoje se dá por meio de uma exacerbação do narcisismo e da infantilização. Os seres humanos são compelidos a buscarem mitigar sua insatisfação com os mimos do consumo, em permanente guerra uns com os outros por privilégios, luxos, status e poder.
Isto não tem nada a ver com inferioridade eterna da maioria dos seres humanos, mas sim com uma forma específica de organização da sociedade humana. Fosse outra a ideologia dominante, seria outra a postura e o comportamento das pessoas.
Constatei isto nas comunidades alternativas. Tomamos a decisão de viver como famílias imantadas por ideais (não por laços de sangue) e conseguimos. Dividíamos tudo, ajudávamos uns aos outros, preocupávamo-nos com todos. Cada um contribuía para nossa comunidade com as aptidões que tinha, ninguém era forçado a ser mais do que era nem a esforçar-se mais do que podia.
Funcionava, tanto quanto funcionaria numa escala ampliada.
O problema é que as pessoas são bombardeadas o tempo todo pelos valores capitalistas, e a lavagem cerebral da indústria cultural também é algo que funciona. E ela, agora que o capitalismo está chegando no limite de suas contradições, está servindo para estimular a regressão ao autoritarismo, ao obscurantismo, à idiotia religiosa e à barbárie.
Aproxima-se o dia em que, se não conseguirmos tornarmo-nos os sujeitos da nossa História, continuando como títeres do capitalismo, seremos destruídos: pelas vinganças da natureza contra os destruidores do seu equilíbrio, por armas cada vez mais terríveis de destruição em massa, pela miséria.
Mas, nada há que não possamos mudar (por enquanto). Talvez, quando as coisas piorarem ainda mais e as ameaças se tornarem bem visíveis, à beira do abismo, nossa espécie opte por sobreviver. Ou morre o capitalismo, ou morreremos todos. É simples assim.
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