quinta-feira, 11 de julho de 2019

A MARAVILHOSA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA – 2 (após João Gilberto)

(continuação deste post)
Carmem Miranda faleceu em 1955, ainda jovem aos 45 anos, tragada pela fama internacional (ao mesmo tempo deslumbrante e massacrante) a que foi alçada. O preço do sucesso extremo é a extrema solidão (não foi assim que terminaram os dias de João Gilberto, nosso baiano-mor de Juazeiro, conterrâneo de Daniel Alves e Ivete Sangalo?).

Com a pequena notável se fechou um ciclo virtuoso da música brasileira para dar início a outro ciclo, filho direto desse primeiro, mas bem mais sofisticado, apesar de não perder a simplicidade tupiniquim. 

Pelo contrário, o novo ciclo era refinadamente intimista e silencioso; tratava-se de um samba que conservava a batida do tamborim, feita a partir dos acordes graciosos de um violão e o timbre elegante de um piano, cantado com voz suavemente sussurrada e bem colocada, não raro apoiado por preciosos acordes de metais. 

À essa nova forma de cantar samba, com timbre jazzístico (sem perder a brasilidade), próprio à juventude dourada do sol da praia de Ipanema, deu-se o nome de bossa nova.

Ela nasceu com a peça Orfeu da Conceição (1956), do então diplomata Vinícius de Morais. Trata-se de uma adaptação para a realidade brasileira da tragédia grega de Orfeu e Eurídice, 
A peça, de maravilhoso roteiro e tendo Haroldo Costa no papel de Orfeu e Dirce Paiva como Eurídice, recebeu o auxílio luxuoso de composições do pianista Tom Jobim, que fez a regência musical; de Luiz Bonfá, com seu magistral violão; e voz do excelente Roberto Paiva. 

O cenário foi assinado por ninguém menos do que o arquiteto Oscar Niemeyer. Aquele era um Brasil do qual se pode sentir saudades, bem diferente do atual, em que tantos medíocres passam por pensadores (não é, Olavo?). 

Um sucesso estrondoso, que, inclusive, ensejou a reprodução no filme francês Orfeu Negro, de Marcel Camus, que em 1959 iria ganhar a Palma de Ouro de Festival de Cannes e, no ano seguinte, o Oscar de melhor filme estrangeiro.
Este é um filme (completo e imperdível!), os outros 10 são vídeos musicais
.
A trilha musical da peça Orfeu da Conceição, composta por Tom Jobim (melodia) e Vinícius de Morais (letras), trazia canções como “Se todos fossem iguais a você”; “Overture”; “Mulher, sempre mulher”; “Um nome de mulher”; “Lamento do Morro”; “Eu e o meu amor”, além do “Monólogo de Orfeu”, recitado pelo próprio Vinícius de Morais. 

Se a certidão de nascimento da bossa nova tem a data de 1956, o batismo só viria três anos depois, com o timbre da batida de João Gilberto, no LP Chega de Saudade, cuja faixa-título soou aos ouvidos da juventude brasileira tal como “That’s all right mama”,com Elvis Presley, para a juventude estadunidense; ou “Please, please me”, com os Beatles, para os jovens ingleses.

A bossa nova representou um jeito novo de tocar sambar, cantar e compor letras nas quais se substituía a tradicional dor de cotovelo que culpava a mulher pelas desventuras amorosas, por um jeito coloquial e reconhecedor de tudo que a mulher e a nossa existência têm de belo.
A alegria de viver, as cores do Brasil, seu sol e seu mar, passaram a ser objeto de letras que bem valorizavam as dádivas de um país abençoado pela natureza.  

Daí em diante a bossa nova ganhou o mundo mesmo, enfrentando a concorrência de medalhões como Frank Sinatra, Elvis Presley, Rolling Stones, Beatles e que tais.

A baiana Astrud Gilberto, então mulher de João Gilberto, gravou com seu marido e com o saxofonista estadunidense Stan Getz um LP de bossa nova que chegou ao primeiro lugar da lista de mais ouvidos de 1963, nos Estados Unidos. 
Canções como “Garota de Ipanema”, "Desafinado”, “Insensatez” “Samba de uma nota só”, “Manhã de carnaval”, “Wave”, “Corcovado”, “Felicidade”, “Eu sei que vou te amar”; “Coisa mais linda” “Você e eu”; “Primavera”; “Eu e a brisa”; “Samba de verão” e “Ela é carioca”, dentre outras, passaram a figurar nas listas das mais ouvidas em rádios do mundo inteiro, com os artistas brasileiros sendo convidados para cantar até no Carnegie Hall, o templo da música estadunidense. 

Aliás, o espetáculo do Carnegie Hall teve na platéia músicos curiosos e famosos como Dizzy Gilespie, Miles Davis e Gerry Mulligan que foram ouvir, além dos conhecidos João Gilberto e Vinícius de Morais, os iniciantes Sérgio Mendes e Sexteto, Agostinho dos Santos (um dos mais aplaudidos por sua voz aveludada) Milton Banana, Sérgio Ricardo, Bola Sete, Chico Feitosa, Normando Santos, Caetano Zomma, Dom Um Romão, Ana Lúcia, José Paulo e Carmem Costa.
Apesar de um certo amadorismo na apresentação tumultuada de tantos intérpretes, o histórico show New Brazilian Jazz (21 de novembro de 1962) teve momentos de intenso brilho, que ajudaram em muito a difundir a bossa nos EUA. 

Compositores ilustres como Newton Mendonça, Roberto Menescal, Carlinhos Lyra, Johnny Alf, Marcos Valle, Tito Madi, Dom Um Romão, Ronaldo Bôscoli, Oscar Castro-Neves, Aloysio de Oliveira, Zé Keti, Sérgio Ricardo, Baden Powell, João Donato, Eumir Deodato, Luiz Carlos Vinhas, Francis Hime, Chico Buarque, Edu Lobo, Toquinho, Tim Maia, Luiz Eça, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Paulinho da Viola, Martinho da Vila, Ney Matogrosso e Cazuza foram inspirados por essa linha melódica chamada bossa nova. 

E o fizeram tão bem que puderam oferecer as mais belas criações a Ciro Monteiro, Agostinho dos Santos, Peri Ribeiro, Emílio Santiago, Jair Rodrigues, Nara Leão, Silvinha Teles, Elizeth Cardoso, Maysa, Leni Andrade, Miúcha, Beth Carvalho, Joyce, Elis Regina, Nana Caymmi, Gal Costa, Maria Bethânia, Leila Pinheiro, Bebel Gilberto, Baby Consuelo, e até para a roqueira Rita Lee. 
A eterna mutante interpretou lindamente “Jou Jouu Balangandãs”, em dueto com João Gilberto. E foram muitas e muitas as maravilhosas vozes femininas que cantaram a suavidade dessa bela invenção musical genuinamente brasileira chamada bossa nova.

A qual também gerou congêneres da melhor qualidade, como o LP Samba esquema novo, de um jovem de então com 18 anos chamado Jorge Ben, que em 1963 encantou o Brasil com músicas imperdíveis como “Chove chuva”; “Mas que nada”; “Por causa de você, menina”; e “Balança a pema”.  

Nascia aí uma prima em primeiro grau da bossa nova, o sambalanço, que iria fixar-se gostosamente no cenário musical brasileiro como mais uma espécie da grande família do gênero samba. 
Foi Adoniran Barbosa quem mostrou e provou ao Brasil que São Pulo nunca foi o túmulo do samba. Suas composições se tornaram clássicos cantados em quaisquer rodas de sambistas. Os indispensáveis Demônios da Garoa fizeram o registro vocal de títulos inesquecíveis, que todos sabem de cor.   

Até Roberto Carlos quis cantar (e cantou profissionalmente) bossa nova, antes de se firmar como o rei da Jovem Guarda cantando o gênero que no Brasil se chamou iê iê iê, uma adaptação inglesa do rock’n roll estadunidense. A sua interpretação de “Lígia”, ao lado de Tom Jobim, demonstra que tinha recursos vocais para ter sido um bossanovista de respeito. Erasmo Carlos também deu uma voltinha competente pelos sambas.
A partir de 1965, quando a vitória de "Arrastão" transformou Elis Regina instantaneamente numa estrela de primeira grandeza, assistimos à era dos grandes festivais de MPB, que acabaria, dois anos mais tarde, gerando uma marcante divisão no front musical.

Foi quando surgiu o tropicalismo, expressivo movimento artístico-cultural de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato Neto, Tom Zé, Gal Costa e Capinam, que misturava guitarra e tamborim; Carmem Miranda com João Gilberto e Dorival Caymmi; e que fazia um sério deboche anarquista de costumes e posturas políticas consideradas dogmáticas, tudo a partir de um DNA inconfundivelmente brasileiro.
Do outro lado continuou o pessoal das canções de protesto mais convencionais, tendo à frente Geraldo Vandré, Sérgio Ricardo, Edu Lobo e, com menor contundência, Chico Buarque, que representavam as músicas mais engajadas de conteúdo político-revolucionário. 

Nesses festivais se confirmaram os dotes interpretativos dos conjuntos vocais MPB-4 e Quarteto em Cy, do cantor Jair Rodrigues e de cantoras como Marília Medalha, Beth Carvalho, Nara Leão, Elis Regina e Gal Costa, entre outras cantantes.

Esse era o Brasil de uma disputa de tendências musicais que ganhava ares de maniqueísmo de torcidas organizadas, na qual quem saía sempre ganhando era a excelência musical brasileira.  
Em Minas Gerais surgiu, no final os anos 60 e início dos '70, o chamado Clube da Esquina, que reuniu mais de uma dezena de compositores, cantores e instrumentistas da melhor qualidade. Destaque para a belíssima música “Travessia” de Fernando Brant e Milton Nascimento, um clássico registro de um estilo de MPB com cheiro de café com pão de queijo assado no forno à lenha.    

No início da década de 1970 despontaram, também, os cearenses Belchior, Ednardo e Raimundo Fagner, mostrando a diversidade musical dos vários rincões brasileiros, sempre confirmando a qualidade da nossa música, sem qualquer ufanismo exagerado de nossa parte.
A síntese a que se pode chegar é que o divisor de águas no estilo musical brasileiro ocorrido nos anos 50 do século passado derivou da qualidade do violão acústico de João Gilberto ao som das notas musicais por ele executadas em consonância com uma voz que se harmoniza como instrumento musical adicional de comunicação, num misto de rigor de concentração técnica e leveza que são de deixar seus ouvintes mais exigentes extasiados de prazer.

Sua música nos transporta para um mundo no qual tudo parece ao mesmo tempo simples e sofisticado.  

Como se a vida em preto e branco de repente pudesse ficar multicolorida,  tal qual os filmes em cinemascope dos '50.

Obrigado, João. (por Dalton Rosado)

.Observação: complementarmente, os leitores podem acessar uma retrospectiva da grande música brasileira da 2ª metade dos anos 60 (e do pouco que dela restou nos '70), A época de ouro da MPB, série de Celso Lungaretti que começa neste post.

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