domingo, 5 de maio de 2019

O JOGO DA VIDA ÀS VEZES É CRUEL DEMAIS CONOSCO: MAIS UM COMPANHEIRO IMPRESCINDÍVEL NOS DEIXOU!

Bacanaço (Maurício do Valle) e Perus (Guarnieri)
O filme para ver no blog de hoje é  muito especial: trata-se de uma homenagem a um companheiro e amigo querido, falecido no final da tarde deste sábado. 

De família abastada sergipana, José Mozart Pinho de Meneses (ou, simplesmente, Mozart Meneses) botou na cabeça que tinha de vencer às próprias custas em São Paulo. Cursou Direito no Mackenzie em meio a grandes apuros financeiros, aceitando todos os empregos que lhe apareceram pela frente, inclusive o de leão-de-chácara de casas noturnas e de um famoso salão de sinuca na avenida Ipiranga, quase esquina com a avenida São João.

O escritor João Antônio era frequentador assíduo deste último e lá presenciou um episódio marcante sucedido com o Mozart. Ficou tão impressionado  que o incorporou no conto Malagueta, Perus e Bacanaço (o principal de seu livro de estréia, a premiada antologia homônima). 

Seria exatamente deste conto de 1963 que o cineasta Maurice Capovilla derivaria seu ótimo filme de 1977, O jogo da vida, abaixo disponibilizado.

Uma das pérolas do cinema sério que também se fazia na boca do lixo de São Paulo (embora esta seja mais lembrada pelas pornochanchadas), mostra as peripécias de três perdedores contumazes nas batalhas da vida que saem pela noite paulistana depenando jogadores piores nos salões de sinuca, até que encontram um jogador muito melhor do que eles.
A exibição de Joaquinzinho: uma aula!

Um filmaço, com atuações inesquecíveis de Gianfrancesco Guarnieri, Lima Duarte e Maurício do Valle, ótimo tema musical de Chico Buarque e participação de um lendário campeão de snooker do passado, Carne Frita

A performance de Joaquinzinho, na partida final, também é de arrepiar: foi filmada em plano-sequência (ou seja, sem truques nem artifícios de montagem) e ele simplesmente encaçapa de verdade todas as bolas, uma após outra.

Quanto ao Mozart, formou-se advogado e foi razoavelmente bem sucedido na profissão, conseguindo suas vitórias mais à custa de psicologia intuitiva, retórica dramática e blefes aplicados na hora certa que da pesquisa dos tediosos textos legais. Era um improvisador nato, capaz de tirar os mais inesperados coelhos da cartola.

Igualmente original foi seu desempenho no palco da vida. Começou formando a chamada Cacimba, um grupo de ajuda mútua dos nordestinos que vinham ganhar a vida em São Paulo; depois, quando mais a ditadura militar separava e intimidava as pessoas, mais ele se empenhou em aproximá-las por meio de atividades artísticas, espetáculos de poesia, edições independentes de livros, além de festas, muitas festas! [O nome de Grupo Cacimba foi mantido, embora sua tônica não fosse mais nordestina.] 
O escritor João Antônio com os atores

O papel do Mozart, que hoje qualificaríamos como sendo o de um animador cultural, foi inestimável para que conseguíssemos manter o equilíbrio e a serenidade naquele período em que éramos tanto e tão rudemente golpeados pelo inimigo, além de bombardeados por notícias terríveis o tempo todo. 

Nem que fosse só declamando nossos  versos para meia centena de pessoas na platéia, sentíamo-nos fazendo algo útil; e era importante que assim nos sentíssemos, para não cedermos à tentação de agir de forma temerária quando nada havia para ganharmos e a vida para perdermos.

Quem o conheceu, jamais o esquecerá. E os que vieram depois, tomara que nunca passem pelas situações que tornavam os Mozarts tão necessários naqueles tempos nefandos (que, aliás, pessoas nefandas  tentam trazer de volta, sendo fundamental nos empenharmos com todas as nossas forças para que elas fracassem!).

4 comentários:

Henrique Nascimento disse...

Celso, neste artigo você cita dois conterrâneos meus, seu amigo Mozart e o Carne Frita. Este último nasceu na mesma cidade da minha mãe, a pequena Propriá, que fica às margens do Rio São Francisco.

celsolungaretti disse...

A família do Mozart é de Macambira; o pessoal da Cacimba o zoava, comparando-o ao "coronel de Macambira".

Quando comecei a circular pelo centrão velho de São Paulo, lá pelos meus 15 anos, ainda existia o tal salão de sinuca, mas como eu e meus amigos éramos jogadores medíocres, nem ousamos entrar. Dava para perceber que quem jogava lá era bamba.

Depois, quando me interessei mais por esse passado (principalmente por causa do filme "Vai trabalhar, vagabundo"), o salão decaíra. Fui lá mas se tornara um lugar comum. Parece que o auge do Carne Frita foi entre 1951 e 1974

ESMAEL LEITE disse...

A morte do Advogado e companheiro José Mozart Pinho de Meneses é uma perda de enorme proporção para a cultura e vida política brasileira, homem solidário que tinha como princípio o coletivo, um intelectual orgânico de esquerda, como advogado ajudou inúmeros militantes de esquerda, ora defendendo-os perante tribunais militares, ora financiando fugas para o exterior, colocando-se em risco sempre que necessário. Eu o conheci aos 18 anos e estou agora com 64 e durante todos estes anos tive o privilégio de estar com ele centenas de vezes, cozinhando, conversando e debatendo por horas e horas seguidas sobre a realidade brasileira, sobre as escritas da esquerda, sobre autores e muitos outros assuntos, ele era de uma cultura incomensurável, estive presente neste domingo no Velório Cemitério Memorial Parque Paulista, lá assisti uma cerimônia diferente de todas, com a presença de jovens e muitos cabeças brancas que prestaram depoimentos sobre a alegria e seriedade do Mozá (alcunha que as pessoas próximas o chamavam). Foi uma bela cerimônia, digna de um grande homem que sempre buscou o anonimato mas estava presente em milhares de corações. Camarada Mozart, presente! Agora e sempre.

celsolungaretti disse...

Estou ficando distraído, Esmael. Desde sábado, na rede que a filha do Mozart formou no WhatsApp, venho participando com meu nome real... esquecido de que só o Mozart e uns poucos sabiam quem eu realmente era (depois de ter sido hóspede das prisões militares, não me convinha chamar muita atenção). o restante me conhecia como "André Mauro".

Fiz parte da Cacimba de 1974 ou 1975 em diante. Integrava a comissão editorial daquele jornal mimeografado do grupo, juntamente com o Mozart, o Souza Lopes, o Franklin Machado e o Luiz Aparecido.

Depois, em 1986, fui quem assumiu a tarefa de tornar conhecida em São Paulo e outras grandes capitais brasileiras a greve de fome dos quatro de Salvador. Com muito trabalho e um golpe de sorte, acabei conseguindo que o ministro da Justiça intercedesse junto ao governador da Bahia, no sentido de que ele desse uma solução humanitária ao caso.

Foi uma das grandes vitórias da Cacimba (agimos a pedido do Rubens Lemos, pai de um dos presos e cacimbeiro de longa data, muito amigo do Mozart)

De resto, Esmael, já que você tocou no assunto da cerimônia, lamentei demais não ter conseguido chegar no longínquo crematório de Embu das Artes. Como desconheço a região, tracei, por informações que garimpei na internet (depois percebi que estavam desatualizadas), um itinerário que me levaria ao km certo da via Régis Bittencourt em que se localizava a saída para o crematório.

Mas, o ônibus Terminal Pinheiros que deveria me levar no ponto inicial do ônibus intermunicipal não passou nem perto da tal rua Baltazar Carrasco. Depois de muito andar a pé, cheguei nela e... faz uma eternidade que o tal ponto deixou de ser lá.

Muitos quilômetros de caminhada depois, percebi que da região do Largo da Batata não partia, na manhã de domingo, ônibus nenhum para onde eu queria ir. Ou então eu não soube procurar, mas isto teria justificativa: não havia ninguém nas cabines de informação e quem estava por lá (jornaleiros, pessoas esperando ônibus) me dava as informações mais desencontradas.

Depois de uma hora andando de um lado para outro sem sucesso, percebendo que entre esperar ônibus (mesmo se achasse o ponto) e mais de uma hora de percurso, eu iria chegar com a cerimônia encerrada, desisti. Com muita dor no coração.

Espero que a filha dele organize mesmo a reunião de velhos cacimbeiros que ela está prometendo.

Um forte abraço!

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