encontro com a ditadura – 21
celso rocha de barros
ANTÍDOTO GOOGLE: FOI DITADURA
Inventei a expressão antídoto Google na época em que fazia blog. Um antídoto Google é um texto que explica direito o que muitos dos textos que aparecerão em uma busca de internet sobre um dado tema falsificam. Este pretende corrigir o meme não foi ditadura, espalhado pelos bolsonaristas.
Bom, foi ditadura.
No regime político inaugurado no Brasil em 1º de abril de 1964, os brasileiros não tinham o direito de eleger quem os governava. Logo, o regime de 64 foi uma ditadura.
Quando a UDN aderiu à luta armada em 31 de março de 1964, o discurso era o seguinte: as eleições presidenciais de 1965 seriam realizadas como a lei previa. Pelas pesquisas, o favorito para vencê-las era o moderadíssimo Juscelino Kubitschek.
"deputados que teriam feito oposição mais ativa foram cassados" |
Mas aí, né, meu amigo? A turma já estava no poder, todo mundo arrumou cargo, todo mundo feliz de ser chamado de excelência, vão entregar o poder de volta para o povo por quê?
Não teve eleição presidencial em 1965.
Se houvesse Twitter na época, a hashtag #ChoraLacerda teria chegado ao topo dos trending topics, em homenagem ao otário que achou que seria o candidato do regime quando as eleições acontecessem.
O presidente passou a ser eleito pelo Congresso. Opa, você vai dizer, mas então tudo bem, é parlamentarismo, parlamentarismo é democracia também, certo?
Não, filho. Não era parlamentarismo. Era sacanagem.
O Congresso votava em quem os generais mandavam. Os deputados que teriam feito oposição mais ativa foram cassados logo no começo. Nenhum deputado queria ir para o pau-de-arara. Em 1968, os generais fecharam o Congresso por causa de um discurso. Imaginem o que teriam feito se os deputados resolvessem levar a sério a votação para presidente.
Era como nas eleições do Iraque do Saddam ou de Cuba do Fidel, em que o governo sempre ganhava.
"inventaram senadores que não eram eleitos pelo povo" |
E todo mundo sabia que era teatro, não era segredo. Na época, ninguém se interessava pela votação no Congresso. O importante era saber como andavam as disputas entre os generais, porque dali é que saía o presidente.
A propósito, nesse meio tempo acabaram também as eleições para governador, porque a oposição venceu algumas delas.
O padrão era esse. Toda vez que o regime perdia, fazia alguma mutreta com as regras. Por exemplo, na eleição de 1974 para senador, a oposição foi muito bem. Resultado: inventaram um novo tipo de senador, os senadores biônicos, que não eram eleitos pelo povo.
Finalmente, os bolsonaristas gostam de perguntar: "que ditadura é essa que entregou o poder pacificamente?". Bom, pra começo de conversa, teve as ditaduras comunistas do Leste Europeu (à exceção da Romênia). Não é raro: a ditadura vê que vai cair e negocia a transição ainda no poder, de uma posição ainda vantajosa.
Se você quiser defender a ditadura mesmo assim, vá em frente, não sou sua mãe. Mas era ditadura.
E lembre-se: depois do golpe militar, foram 25 anos até os brasileiros voltarem a eleger seu presidente.
"...e aí nós resolvemos arriscar tudo elegendo Bolsonaro" |
Depois do fim do regime, foram quase dez anos até a democracia controlar a inflação herdada da ditadura, mais de 20 até a desigualdade de renda cair até onde estava em 1964, e 30 até o Judiciário ganhar autonomia para processar governantes corruptos, o que era impensável na ditadura.
E aí nós resolvemos arriscar tudo elegendo Bolsonaro. (por Celso Rocha de Barros)
Toque do editor: muito internauta me propõe a dúvida que o Rocha de Barros abordou, se a ditadura foi mesmo ditadura (às vezes com um acréscimo: se foi ditadura o tempo todo ou somente a partir da assinatura do AI-5).
E sempre dou a mesma resposta: se conspiradores derrubam o governo constitucional sob falsa alegação (não havia ameaça real de tomada de poder pelos comunistas em 1964, foi só um espantalho para justificar a virada de mesa) e passam a impor sua vontade pela força, isto se chama ditadura e ponto final.
Muita gente tem uma visão hollywoodesca do assunto, pensa que ditadura se caracteriza pela intensidade da truculência. Ora, a ditadura brasileira só esteve sob o comando de ogros durante o mandato de Médici. No resto do tempo, utilizou apenas a força necessária para impor sua vontade. Era o argumento que lhe permitia prevalecer em todas e quaisquer circunstâncias.
Imagem de Gregório Bezerra sendo arrastado chocou o mundo |
Foi muita a força que utilizou no momento inicial (uma imagem do digno e idoso dirigente comunista Gregório Bezerra sendo arrastado pelas ruas do Recife provocou indignação mundial), pouca a partir do 2º semestre de 1964, até tornar a crescer na setembrada de 1966, quando o movimento universitário deu a cara de novo nas ruas de São Paulo.
Seguiu-se a calmaria que antecede as tempestades e, em 1968, o protesto jovem irromperia logo no começo do ano, não saindo mais de cena. Foi crescendo cada vez mais, ao mesmo tempo que a ditadura desembestava a violência igualmente cada vez mais, até chegar à terra arrasada de 1972/73.
Foi a fase do extermínio, quando passou a executar os resistentes (já prisioneiros ou no instante da captura) que, a seu critério, não deveriam sobreviver para participar das etapas seguintes da História do Brasil. (por Celso Lungaretti)
5 comentários:
Sinceramente afirmar que o Jango era ou tinha propensão ao comunismo nos moldes soviéticos da época é muita falta de discernimento. O Jango, assim como o padrinho Getúlio Vargas, tiveram origem em uma família tradicional abastada de latifúndios de terra no RS. Ele podia ter uma visão mais social e humana do mundo, mas comunista/marxista jamais.
Ele era o sujeito errado no lugar errado, na hora errada.
Só se tornou presidente porque o Brizola, os subalternos das Forças Armadas (cabos e sargentos) e muita gente corajosa defendeu o direito dele. Enquanto isto, o Jango prolongava ao máximo a viagem de volta, por medo de sofrer algo no Brasil.
Depois, não teve culhões para defender os milicos que haviam ficado ao lado dele, deixou que os oficiais reaças os expurgassem ou transferissem para unidades distantes, dispersando-os.
Depois, fugiu que nem coelho assustado na hora de golpe, frustrando a intenção do Brizola de resistir novamente, como fizera quando o Jânio renunciou.
Outro dia um João Vicente Goulart mandou comentário me ofendendo porque escrevi num post que o Jango era "boboca". Fui caridoso. Meu primeiro impulso foi escrever "bunda mole", depois resolvi atenuar.
Esse assunto mexe muito comigo porque, graças principalmente ao Jango, a esquerda saiu de 1964 com fama de covarde. E quando nós entramos no movimento estudantil, em 1968, sentíamos essa pressão toda para a esquerda provar que também era capaz de sangrar por seus ideais.
Então, quando a luta ficou perigosíssima, nós 8 sentimo-nos obrigados a correr todos os riscos. E todos sofremos o diabo, o pior mesmo sendo os 2 que morreram, o Eremias Delizoicov e o Gerson Theodoro de Oliveira.
Ou seja, meus amigos foram para a cova e eu fiquei com uma audição de merda porque homens feitos como o Jango não honraram as calças compridas que vestiam. Defendemos a honra das esquerdas no lugar dessa gente e éramos muito novos para arcar com tamanha responsabilidade.
Então, não os perdoo nem relativizo a coisa. Para mim, tinham de ter adotado uma postura bem diferente.
Celso, uma coisa que não entendo bem, por ignorância mesmo, é o fato de parte da esquerda da época ser getulista.
Como isso? Não era uma contradição? Digo porque o Getúlio tinha claras influências fascistas, instaurou uma ditadura tão brava quanto a dos milicos (senão mais) e perseguiu comunistas à sua época (lembro agora do Graciliano Ramos, um dos meus ídolos literários).
Essas coisas não se encaixam para mim. Até hoje setores da esquerda endeusam o Getúlio, sendo que Lula já o elogiou várias vezes. Diante de tal histórico, não era para a esquerda repudiá-lo sem ressalvas?
Se o Lula elogiou o Sarney e almoçou na casa do Maluf, então não é muito difícil para ele elogiar também o Getúlio, mais conhecido como o "pai dos pobres".
Eu entendo o porquê, anônimo: populismo e falta de princípios.
As simpatias do Vargas sempre foram pelo Eixo, só entrou na guerra ao lado dos EUA porque sabia que o grande irmão do Norte bateria pesado nele caso agisse assim, sendo que Alemanha e Itália não moveriam uma palha para defendê-lo.
Não adiantou: finda a guerra, os EUA estimularam sua derrubada. Só escapou da prisão ou do exílio porque fez um acordo de cavalheiros, comprometendo-se a ficar bem quietinho na sua fazenda no interior gaúcho.
Quando saiu do ostracismo e se elegeu presidente, quis retaliar os EUA fazendo do nacionalismo sua principal bandeira.
O PCB, que já deixara de ser revolucionário, considerou que a coincidência de propostas no que tange ao nacionalismo justificava o apoio ao carrasco de outrora. [Sempre me indaguei sobre o que eu faria se meu partido me obrigasse a subir ao palanque do assassino da minha ex-companheira, mãe da minha filha. E sempre percebi que nada no mundo me obrigaria a isso, até porque meu nojo não me permitiria desempenhar a contento tal papel. Acho o Luiz Carlos Prestes um personagem histórico dos mais discutíveis.]
Respeito mais o Vargas. Não suas convicções, claro, mas sua fibra, de ter tentado dar o troco para os EUA e, depois, de preferir suicidar-se a ser expelido do poder.
A política convencional brasileira não teve mais gente assim. E mesmo os revolucionários só
exibiram tal desprendimento nas décadas de 1960 e 1970, depois caíram na mesmice.
Vendo certos comportamentos de hoje, tenho muitas saudades daqueles companheiros com quem convivi, para os quais "vencer ou morrer"não era apenas um slogan.
Postar um comentário