quinta-feira, 11 de abril de 2019

CARTA ABERTA DE DALTON ROSADO A CESARE BATTISTI

Caro companheiro Cesare Battisti,
.Queremos, todos nós que aqui no Brasil lutamos pela sua liberdade e permanência em nosso país, dizer que não nos arrependemos nem um milímetro de tudo que fizemos. 

Ainda que adivinhássemos qual seria o desfecho da perseguição mundial que contra você foi movida, como caça a um troféu de guerra contrarrevolucionária, e mesmo levando em conta a sua confissão (sob as condições que as forças militares fascistas costumam usar), faríamos tudo novamente. 

É que os nossos gestos foram pautados pela solidariedade a um companheiro perseguido, e tal comportamento deve ser referência para todos os que lutam contra o capitalismo, este sim assassino e genocida.

Aliás, como confiar num governo hipócrita que afirma sua comovida solidariedade às vítimas da luta armada italiana nos idos dos anos 70 do século passado, mas, quatro décadas depois, proíbe o desembarque em seu território de pessoas desesperadas, fugitivas ou de governos corruptos, sanguinários, fundamentalistas religiosos, que as massacram indiscriminadamente, ou da fome e da miséria que lhes são impostas pela lógica perversa da concorrência mundial de mercado em fim de feira? 

Não, Battisti, nós sabemos que os fascistas não têm solidariedade humana, mas apenas interesses político-econômicos nacionalistas mesquinhos; assim, jamais iriam lhe dar o tratamento humano que se deve proporcionar a todos e quaisquer prisioneiros.
"proíbe o desembarque de pessoas desesperadas"

Para eles, a insubordinação contra o poder é crime dos mais hediondos; não admitem que você e seus jovens companheiros de luta armada tenham-se rebelado, num momento da vida italiana em que centenas de grupos e grupúsculos lutavam contra o mesmo fascismo arbitrário e totalitário que ora lhe prende. 

Consideram inaceitável tal ousadia, daí a satisfação em exibir uma confissão de assassinatos totalmente estapafúrdia (considerando-se a culpa unilateral confessada), além de extemporânea. Você se transformou num bode expiatório de culpas sistêmicas sacrificado no altar das iniquidades.

Independentemente de ter existido ou não participação sua nos assassinatos que lhe são atribuídos, devemos sempre contextualizar empirica e teoricamente os acontecimentos políticos nos quais você se envolveu. 

Tenho uma visão particular da nossa luta contra o arbítrio, pois entendo que a consciência coletiva sobre a natureza do que nos oprime é o melhor antídoto contra o despotismo e a injustiça social. O ser humano consciente do seu papel na sociedade e da potência do sua capacidade de intervenção é mais forte do que qualquer levante armado. 
"A consciência é revolucionária"
A consciência é revolucionária e, quando coletiva, torna-se insuperável; mas, sei também das dificuldades para alcançá-la de modo majoritário e contributivo. 

Assim entendo porque os exemplos da História são educativos. Erra, contudo, quem criminaliza os que pegaram em armas contra as injustiças sociais. 

Isto porque não acredito no poder, e o poder armado (mesmo quando as armas estão nas mãos de idealistas sinceros) é sempre forte na imposição forçada da insubmissão, mas frágil no convencimento espontâneo do fazer, terminando por resvalar perigosamente para o arbítrio. O uso da força das armas implica a permanência da força das armas, e não a sua dissolução.

Considero que o senso de justiça que todos temos dentro do mais recôndito lugar das nossas consciências seja o atributo mais forte para a realização de sociedade humanamente solidária e socialmente justa. 

Na visão deles, vocês cometeram o crime mais perigoso: travaram a guerra anti-sistêmica que julgavam justa e que consideravam ser a única possível naquele momento, ressalvados os impulsos por vezes ingênuos da juventude. 
S. Pedro pregando nas catacumbas

Os exemplos históricos da persuasão conscienciosa contra o arbítrio são instrutivos. 

Os primeiros cristãos, que se reuniam nas catacumbas fugindo da perseguição do exército romano e usando símbolos distintivos de sua rebelião e de parceria de companheiros vivendo nos subterrâneos da sublevação (o desenho do peixe cristão) e que traziam uma mensagem de fraternidade e solidariedade inaceitáveis para Roma, foram capazes de crescer a ponto de incomodar o poder imperial jurídico-militar-escravista de então.  

A cooptação, 300 anos após a morte de Jesus Cristo, do forte movimento cristão por parte de uma Igreja que já se instituía como poder vertical, é outra história que apenas confirma o aspecto negativo do poder vertical, inclusive religioso. 

Mao Tsé-Tung dividia as guerras em duas categorias: as justas (revolucionárias) e as injustas (de manutenção do poder segregacionista). Não tenho a menor dúvida de que você fazia a guerra que julgava justa, e é este o nosso lado, ainda que possamos discordar entre nós dos métodos para alcançarmos os objetivos comuns.
Mao Tsé-Tung liderando a Grande Marcha... 
Dizia Mao: 
"As revoluções e as guerras revolucionárias são inevitáveis numa sociedade de classes. Sem elas é impossível realizar um salto no desenvolvimento social; é impossível derrubar as classes dominantes reacionárias, ficando o povo impossibilitado de conquistar o poder político".  
A frase de Mao encerra algumas verdades e alguns equívocos. 

Se é verdade que a China sob Mao e os que o substituíram no Partido Comunista Chinês, deixou de ser um país rural monárquico atrasado e miserável, a partir de ganhos como educação coletiva num pais de analfabetos e vertiginoso processo de industrialização urbana, temos de considerar também que a China é hoje um assombro para a ordem sistêmica mundial, não apenas pelo poder bélico que possui, mas por sua imensa dívida pública e privada que depende do desenvolvimento capitalista para sobreviver, e que agora se vê ameaçada.
...para depois de tudo se chegar a isto?!

A revolução armada chinesa, ao invés de convergir para a sociedade sonhada por Marx, sem classes sociais, sem Estado e sem a mercantilização da vida, tornou-se o oposto disso. 

Ou seja, está profundamente dividida em classes sociais (há alguns milhões de milionários, e bilhões de trabalhadores miseráveis); tem um estado centralizador, cada vez mais forte e presente na vida social; e é completamente dependente do capitalismo internacional para continuar viável.

O paradoxo disso é que hoje, ao invés de ameaçar o capitalismo pela revolução armada, o governo chinês está (sem o desejar) colocando em xeque o próprio capitalismo com a dessubstancialização do valor provocada pela produção de mercadorias baratas, fruto de tecnologia aplicada à produção das ditas cujas com salários miseráveis e nenhum direito trabalhista. 

A revolução armada bolchevique degringolou para o que é hoje a Rússia: um país governado por um déspota eleito com a influência do poder econômico e militar, exibindo todos os defeitos do capitalismo ocidental.

Avalio que o problema desses dois exemplos históricos  residiu justamente na não superação, desde o início, das categorias capitalistas, principalmente pela permanência  do Estado forte, militarizado, regido pela lógica capitalista de Estado, o que demonstra que não é a força, mas a consciência sobre a natureza da relação social o que determina a revolução.

Caro Battisti,

o fato de estarmos aqui a defender uma revolução emancipacionista a partir de um novo modo de produção compatível com a realidade atual, que una o saber tecnológico à produção social, e uma racional utilização do potencial humano de produção coletiva, excluindo-se o trabalho abstrato produtor de valor, não invalida todas as tentativas bem intencionadas de lutas armadas que propunham um poder forte de transição, como a do seu grupo e de tantos outros companheiros, bem como as dos heroicos bolcheviques russos e maoístas chineses. 

É da História e dos nossos erros que podemos fazer ilações revolucionárias e procedermos às necessárias correções de rumo. 

Compreendemos o seu cansaço de eterno perseguido mundo afora; compreendemos a sua condição humana de sofrimento e nos solidarizamos com você; repudiamos a covardia de nossos falsos amigos que lhe entregaram aos seus algozes; além de repudiamos, principalmente, os que têm dois pesos e duas medidas nos seus critérios hipócritas de falso humanismo. 
"que suas filhas e filho tenham orgulho do que você representa"

Desejo que daí, do frio cárcere italiano, você possa se sentir orgulhoso de ter travado o bom combate; de ter feito a chamada guerra justa (ainda que isso possa ser considerado um critério de avaliação particular); e que saiba que, ao invés de julgarmos você como um criminoso confesso, o consideramos como um companheiro perseguido e merecedor de respeito e solidariedade.

Desejamos que suas filhas e seu filho brasileiro, ainda menino incapaz de compreender tudo que envolve a vida do seu pai, possam vir a ter, como nós temos hoje, orgulho de tudo que você representa em termos de busca da emancipação social.   

Um abraço fraterno, Dalton Rosado

Um comentário:

Anônimo disse...

Perfeito.

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