sexta-feira, 29 de março de 2019

...E A "INTERVENÇÃO MILITAR" NÃO VEIO! NEM VIRÁ, SE DEPENDER DOS MILITARES...

encontro com a ditadura – 5
Por David Emanuel Coelho
Na greve dos caminhoneiros de maio/2018 o grande público se deu conta de que havia muitos brasileiros querendo a instauração de uma nova ditadura nos moldes da de 1964/85, embora não ousassem dizer seu nome, preferindo um eufemismo: intervenção militar.

Não se tratou, porém, de novidade, visto serem tais pedidos recorrentes nas ruas brasileiras desde, pelo menos, as grandes manifestações de 2013. A existência de contingentes organizados em torno desta pauta já era um fato.

Formados predominantemente por homens maduros, tais grupos costumavam chamar a atenção pelo descalabro da reivindicação, muito mais que pela força numérica ou política.

No entanto, é importar ressaltar o fato de tais apelos ao militarismo não serem novidade na república nova. Desde o fim da ditadura militar existe um sentimento difuso de saudosismo daquela época entre uma parcela da população. 

Nem todos os nostálgicos do militarismo estão nas ruas pedindo a tal intervenção. Isto fica a cargo daqueles grupos organizados, constituídos principalmente por pessoas de classe média.  No entanto, é fato a existência difusa de entusiastas do autoritarismo castrense na sociedade.

Até onde sei, não existem pesquisas confiáveis mensurando este grupo da população. No entanto, de forma intuitiva, podemos perceber se tratar de um grupo majoritariamente masculino, branco e com idade acima dos 50 anos.
Novos tempos e os mesmos velhos clichês anticomunistas

Em se tratando de classes, parece haver uma distribuição relativamente homogênea entre todas. Dito de modo geral, o corte principal deste grupo parece ser geracional e de gênero.

Quais seriam, afinal, as causas para estas pessoas apoiarem a rigidez militar? Consigo pensar em alguns pontos:
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ATUAÇÃO DA CENSURA – Existe uma idealização do período ditatorial, como se tivesse sido uma época desprovida de problemas. É comum ouvir de algumas pessoas a frase “na época da ditadura não ouvíamos falar disso”. E, de fato, não ouviam, pois existia uma coisa chamada censura, seja a imposta pelo governo, seja a praticada pela imprensa por iniciativa própria.

Ademais, a mídia exercia um papel oficialista, em larga medida. Basta ver o tom ufanista de muitos programas da Globo (emissora que atuava quase como porta-voz oficial do regime) no período. É famosa a frase do ditador Médici sobre o Jornal Nacional:
"Sinto-me feliz todas as noites quando ligo a televisão para assistir ao jornal. Enquanto as notícias dão conta de greves, agitações, atentados e conflitos em várias partes do mundo, o Brasil marcha em paz, rumo ao desenvolvimento. É como se eu tomasse um tranquilizante após um dia de trabalho".
O tranquilizante do ditador mais sanguinário
Ora, quando um noticiário serve de tranquilizante para o presidente é porque algo está errado.

Numa época de pouquíssimo acesso à informação e baixa escolaridade é perfeitamente compreensível o desconhecimento sobre o que ocorria.

Hoje, sem censura e com maior numero de canais de informação, é mais fácil ao cidadão médio saber do caos e das podridões que ocorrem no país. Ao comparar as duas épocas, obviamente o período militar aparenta ser mais pacífico, menos corrupto, para tais pessoas. 

A prova cabal disto é o fato de muitas delas alegarem ser justamente no período final da ditadura que o Brasil começou a piorar. Na verdade, neste período a censura foi afrouxada e o público pode informar-se de modo mais livre sobre sua própria realidade. 
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EFEITOS DO NEOLIBERALISMO – O neoliberalismo teve um efeito devastador sobre as relações e práticas sociais. Aumentou a concorrência entre os trabalhadores, pôs de cabeça para baixo antigas hierarquias e modificou profundamente a dinâmica do mundo do trabalho. O resultado foi o afrouxamento das relações de solidariedade social, a erosão da autoridade, a atomização do trabalhador, o crescimento da violência e a epidemia de doenças psíquicas (bem como do uso de drogas).
Cartão postal de São Paulo, a Avenida Paulista era assim em 1969

Em comparação com a época da ditadura militar, a vida mudou radicalmente. Durante a ditadura, o Brasil era um país ainda profundamente agrário, com relações e práticas sociais mais simples. se comparadas às atuais.

A comparação acrítica entre os dois períodos gera a ideia de que houve um descontrole social no período de redemocratização, fazendo muitos terem uma visão saudosista daquela época. Ou seja, é exercida uma avaliação de aparência sobre o mundo social, não considerando a dinâmica mais profunda de mutação promovida pelo capitalismo por meio do regime neoliberal.

Incapazes de entender a lógica profunda das mudanças sociais, conclui-se que tudo seria obra simplesmente da falta de um regime autoritário. Ou seja, culpa-se a democracia pelos males atuais.

A disseminação das cracolândias é um triste aspecto da crise neoliberal
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A CRISE DO PATRIARCADO – O Brasil foi construído em torno da figura do homem.
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Um típico patriarca e seus dependentes
Na época colonial não existia espaço público, mas apenas privado. Este era organizado pela dinâmica do engenho, em que vigorava uma rígida hierarquia patriarcal. O marido ocupava a função de comando político, econômico e jurídico. O resto da família, bem como os escravos, estavam a ele submetidos.

No fim do período colonial, e após a independência, surge o espaço público, mas a lógica patriarcal não se modifica. Ao contrário, ela é exportada para o espaço público, sendo este regulado de modo análogo ao espaço familiar. Neste aspecto, passa a existir uma espécie de hierarquia masculina do poder, estando o marido nela inserido enquanto base de sustentação.

Na segunda metade do século 20 tal forma de estrutura social já estava em franco declínio ao redor do mundo. Porém, a ditadura militar teve o efeito de não apenas retardar a derrocada deste patriarcalismo tradicional, como também de reforça-lo.

Na redemocratização, aos poucos, o patriarcalismo entra em crise. A antiga autoridade masculina vai sendo substituída por uma relação mais difusa de poder, com a ascensão de mulheres a postos de mando, a autonomia de filhos e filhas, e até mesmo a interferência pública nas relações intrafamiliares, com leis de proteção contra a violência infantil e de gênero.

Além disso, a própria noção do que é ser homem entra em crise, com questionamentos agudos sobre o próprio papel do gênero masculino.

Mulheres? Só bem lá atrás. Com lupa dá pra ver...
Na ditadura, o típico pai de família se via como um mini-general, comandando sua casa de modo análogo ao comando exercido pelos ditadores de farda no país. O patriarcalismo era inquestionável e visto como parte normal do sistema político do país.

Acostumados a esta dinâmica, muitos homens acabam sentindo-se deslocados na nova configuração social. Com seu poder contestado, sua identidade em crise, assumem uma posição reacionária, uma reivindicação de retorno aos bons tempos da ordem.

Isto explica o corte de gênero observado entre os defensores do militarismo. Não defendem apenas o retorno de um regime autoritário, defendem o retorno de seu próprio poder absoluto, de sua antiga identidade. Aspiram, sobretudo, ao retorno do patriarcalismo tradicional, com o poder masculino no centro.

Não é gratuito o fato do pedido de intervenção ser sempre um pedido por um general no poder; o masculino vem justamente reforçar o caráter patriarcal de seus ideais políticos.

Penso, inclusive, que é justamente da crise do patriarcado um dos fatores mais determinantes para o apoio deste grupo à intervenção militar.
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"sensação de perda de privilégio"
A CLASSE MÉDIA DECAI – O período pós-ditadura, sobretudo depois do impeachment de Collor, foi um período de ascensão social de enormes parcelas da população. O crédito facilitado, a melhora relativa da renda, a oferta de serviços públicos e a diversificação da economia possibilitaram uma profunda mudança na dinâmica social.

Durante a ditadura, a mobilidade social era mínima. Houve, sim, uma relativa ascensão nas condições de vida, mas isto se deveu ao êxodo rural em massa, o que permitiu a saída de largos contingentes populacionais da situação de miséria do campo para a pobreza urbana.

Em termos de capacidade de consumo e acesso a serviços, a ditadura foi um período de extrema exclusão. Praticamente apenas a classe média e a classe alta tinham acesso de fato a uma vida relativamente confortável. A maioria da população oscilava entre a pobreza e a miséria total.

O fosso entre a classe média e as classes baixas era profundo e de larga extensão. Os espaços de convivência eram rigidamente segregados e a classe média só cruzava com o povo comum quando estes lhes prestavam algum serviço.

Tudo muda no período pós-ditadura. A dita ascensão social significou para a classe média, por um lado, o afastamento da classe alta e, por outro, a aproximação das classes baixas. Agora, a população mais pobre também tinha acesso a bens e serviços antes exclusivos da classe média. Espaços antes segregados agora eram compartilhados, enquanto a classe alta se ilhava em áreas ultra exclusivas. Mesmo profissões antes exclusivas da classe média, agora tinham representantes populares.
"não oferecem soluções para a crise atual"

Para quem estava acostumado ao status quo do regime militar, a nova situação apareceu como perda de privilégio, o que gerou profundo ressentimento entre muitos. 

O fato de o processo coincidir com a redemocratização acabou levando estas pessoas a concluírem ser a democracia culpada pela mudança de sua condição social. Por isso, a única forma de reagir seria restaurando o antigo regime ditatorial.
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CONCLUSÃO – O fenômeno do saudosismo do regime castrense explica o aparecimento de grupos pedindo uma intervenção militar no país.

Longe de haver sido simplesmente uma resposta à crise do regime político implantado pela Nova República, tratou-se de uma rejeição das mudanças operadas neste período. Neste aspecto, aparece muito mais como um sintoma reativo aos fatores progressistas do regime combalido. Não oferece soluções para a crise atual, apenas busca restaurar uma situação histórica já superada.

Por não trazer soluções e apenas expressar um sentimento reativo, tal grupo não consegue impor seu programa, mesmo quando contribui, circunstancialmente, para a eleição de um presidente da República... apenas para descobrir que, afinal, quem menos almeja uma intervenção militar neste momento são os altos comandantes militares, que têm plena consciência de quão desastrosa seria tal tentativa de reviver o passado num mundo tão diferente! (por David Emanuel de Souza Coelho)

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