Pode-se dizer exatamente o mesmo sobre o Brasil |
dalton rosado
PODER & CORRUPÇÃO
O verdadeiro poder, o econômico, é a corrupção em si. Isto porque cabe a ele promover a acumulação individualizada da riqueza produzida coletivamente, o que só pode ocorrer a partir de uma subtração e apropriação indébita, a qual é, claro, socialmente nociva.
Assim, sob a égide do capital são hipócritas a lei, as corporações estatais e a própria justiça quando considera corrupção apenas a apropriação indébita do dinheiro público arrecadado pelos impostos e outras maracutaias privadas.
Há, portanto, uma diferenciação de tratamento entre:
— a corrupção consentida e patrocinada pelo capital, tão enfaticamente admitida e até incensada por todos os empresários; todos os economistas (liberais, como Paulo Guedes, ou estatistas como John Maynard Keynes); todos os legisladores e todos os aplicadores da lei (como os juízes); e
— a corrupção criminalizada, desde a que provém do assalto ao erário público até a apropriação da riqueza fora da lógica de reprodução do capital pela mediação social do dinheiro, como as ações ou negociatas que a lei define como criminosas ou fraudulentas (p. ex., a falsificação de dinheiro oficial, o desfalque empresarial, o assalto a mão armada, etc.).
Tal diferenciação decorre de uma compreensão histórica escravista e moralmente admitida, embora abjeta, que nos foi introjetada intelectualmente como admissível saecula saeculorum.
Uma modalidade de corrupção é aceita, a outra criminalizada |
Não dá, verdadeiramente, para diferenciar; a corrupção, qualquer que seja a sua gênese constitutiva, é um cancro social, um crime.
Os juízes passam batidos pela incongruência de crimes admitidos não serem puníveis pela lei; ou, se a percebem, são subsumidos pela mesma lógica capitalista corrupta que os remunera como parte do Estado burguês.
Esta é a síntese da causa da tragédia humana a que estamos submetidos: a aceitação de um tipo de corrupção, oficialmente admitida (o roubo, pela produção e comercialização da mercadoria, tanto da riqueza abstrata como da riqueza material, viabilizada pela primeira) e a criminalização da apropriação de qualquer riqueza fora dessa lógica.
Trata-se de uma compreensão ética convencionada que não se coaduna com o preceito moral do que é justo.
Mas, como se poderia almejar que o poder político, mesmo dando sustentação ao poder econômico corrupto do qual é dependente, fosse a antítese deste último? Só uma concepção hipócrita e moralmente capenga pode crer que um tipo de roubo (o da acumulação segregacionista do capital) não é roubo e os outros o são.
É neste sentido que os jovens tenentes togados, como estão sendo tratados os novos paladinos da honradez com o dinheiro público, estão equivocados. Trabalham com dois pesos e duas medidas.
"tenentes togados terminam por extrapolar suas funções" |
Mas, tal função jurisdicional (hipócrita) de combate à corrupção numa sociedade ontologicamente corrupta tem explicação. É que o capital, que exerce uma coerção social tácita, precisa do Estado e da sua coerção institucional, legal.
Assim, a corrupção com o dinheiro estatal se constitui como subproduto nocivo ao funcionamento da corrupção original e deve ser combatida institucionalmente.
Os políticos e a política, no seu processo histórico, deixaram de compreender que o Estado, do qual fazem parte, é uma instituição a serviço do capital e não deles próprios e de alguns empresários, razão pela qual se surpreendem quando o próprio Estado se volta contra eles e os prendem.
Não devemos nos esquecer que a corrupção praticada pelos monarcas feudais absolutistas foi condenada pela emergente burguesia que desejava um Estado republicano, defensor dos seus interesses e capaz de coibir a corrupção com o dinheiro dos impostos. Que se desse fim à corrupção antiga e se deixasse fluir a corrupção nova, a da da vida mercantil!
Muitos desses monarcas perderam literalmente a cabeça, mas isto não acabou com a corrupção com o dinheiro dito público, pois esta é inevitável também na democracia burguesa.
Os políticos, quando candidatos, costumam condenar da boca pra fora a roubalheira do dinheiro público, embora saibam que o processo eleitoral dito democrático burguês é definido pelo poder econômico.
"corrupção não é o cerne do problema, o buraco é mais em baixo" |
Agora, a briga entre os tais tenentes togados e a natureza corrupta do sistema, constitui-se como mais uma contradição irresolúvel do capitalismo.
Eles, os tenentes togados, do alto de suas vaidades e investidos no poder pretensamente saneador e justicialista do Estado, terminam por extrapolar de suas funções e incorrer, de forma perigosa, no patrocínio de um Estado policialesco, principalmente no estágio atual de debacle do capitalismo que os remunera.
O mercado, que é o santuário do capital, sempre reage mal à investidura de um poder justicialista policialesco, pois teme que isto interfira na sua essência corrupta. O capital não aceita concorrência de poder, pois criou o Estado apenas para lhe proteger e não para punir os seus serviçais, os políticos, bem como os empresários que com estes se mancomunam.
Aliás, a corrupção com o dinheiro público é trombeteada para o grande público como a grande culpada pelos nossos infortúnios sociais. Não é.
"o mal é sua própria dinâmica segregacionista e contraditória" |
Diz-se comumente que, se por acaso não houvesse corrupção com o dinheiro do erário, todos os males sociais estariam resolvidos, o que é uma afirmação absurdamente falaciosa. A corrupção agrava a crise das finanças públicas e o atendimento pelo Estado das demandas sociais, mas não é a causa primária do infortúnio social e, muito menos, da crise ecológica.
O mal da sociedade da mercadoria é a sua própria dinâmica segregacionista e contraditória que caminha para o colapso, agora de modo mais acelerado.
No caso do orçamento público brasileiro, as grandes rubricas orçamentárias são:
— a folha salarial do Poder Executivo; orçamento dos Poderes Legislativo e Judiciário; despesas de manutenção da máquina estatal; juros da dívida pública; déficit da previdência social. Tais rubricas já acumulam despesas maiores do que a arrecadação, gerando um déficit público.
— as empresas estatais, nas quais ocorrem, de fato, grandes maracutaias (daí ser um engano da esquerda considerar que são patrimônio do povo);
— os bancos públicos (BNDES, CEF, BB, BNB), que, apesar das maracutaias, dão lucros, porque os prejuízos, quando ocorrem, são avalizados pelo erário e pagos pelo povo.
O déficit público é efeito e não causa dos males sociais, pois resulta de um negativo modo de mediação social, sendo apenas parte do grande problema financeiro do país e do seu povo. Os trabalhadores são duplamente subtraídos: pela extração de mais-valia e pela sustentação, via pagamento dos impostos, do Estado que os oprime.
"nas empresas estatais ocorrem, de fato, grandes maracutaias" |
É claro que a corrupção agrava a crise do capitalismo, na medida em que debilita o Estado na sua capacidade de prover a infraestrutura necessária ao pretendido (por todos, direita e esquerda, infelizmente) e impossível, no estágio atual, desenvolvimento econômico nos moldes capitalistas, bem como gera insatisfação popular pelo não atendimento das demandas públicas.
Mas, este não é o cerne do problema. O problema da sociedade capitalista é a cada vez mais acentuada e inconciliável contradição entre a acumulação da riqueza por uns poucos e o empobrecimento da grande maioria da população, além de suas contradições internas que agora provocam o limite interno absoluto da sua necessária expansão, sem a qual não sobrevive.
A resultante disso se expressa, de modo dramático para a população, sob a forma de desemprego estrutural e subemprego, bem como pela falência do atendimento das demandas públicas pelo Estado. A consequência óbvia: instalação da barbárie social.
Daí podermos dizer que o foco no combate a corrupção é uma forma de, mediante a manipulação da consciência dos cidadãos, tornar inofensiva a discussão sobre a causa dos problemas sociais, direcionando-a para um desvio que, ademais, tradicionalmente alavanca a demagogia direitista (tanto a eleitoral quanto a golpista).
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