sexta-feira, 15 de junho de 2018

"O VERDADEIRO JOGO EM CURSO NO BRASIL É A TRANSFERÊNCIA DO PODER POLÍTICO REAL PARA AS FORÇAS ARMADAS"

Por Vladimir Safatle
CARTAS SOBRE A MESA
Cada dia que passa, fica mais evidente qual é o verdadeiro jogo que está em curso no campo político brasileiro.

Ele passa, atualmente, pela nova configuração do lugar das Forças Armadas na vida brasileira. Ou seja, o jogo consiste em terminar o período de pactos e de democracia aparente da Nova República por meio da transferência do poder político real para as Forças Armadas.

Mais importante do que as eleições presidenciais, o verdadeiro deslocamento do poder já terá ocorrido e ele não passa pelos clássicos atores políticos.

Hoje, inexiste agenda importante de governo que não passe pelas Forças Armadas. Greve de caminhoneiros, decomposição do governo carioca, fragilização do governo por casos de corrupção. Em todos esses casos, as Forças Armadas são convocadas ou ouvidas.

Em um governo que aparelhou todo o corpo gerencial do Estado, os únicos grupos intocados foram as armas e o corpo diplomático.
"O general Villas Bôas age como um candidato a presidente"
Um governo pateticamente desprovido de base social esconde sua impotência apelando sistematicamente à sombra dos fuzis.

Isso explica porque, nos últimos tempos, o comandante das Forças Armadas, general Villas Bôas, age como um verdadeiro candidato a presidente, inundando o espaço público com pretensas análises sobre a crise brasileira, sobre os medos atávicos a respeito de segurança e seus desafios.

No entanto, seria importante lembrar que, numa democracia, quem tem as mãos no fuzil cala a boca. Nenhum oficial fala em democracia porque falar, quando você tem o monopólio das armas, equivale a quebrar o espaço de fala livre.

Pois é claro que o monopólio das armas não é um atributo político, mas é o que quebra simplesmente a existência do político. Daí vem a sabedoria da democracia: tirar a palavra de quem tem as armas. 

"...o Brasil é um
 país singular.
 Aqui, adoradores
 de torturadores,
 de estupradores e ocultadores de
cadáveres passam por redentores
morais..."

Isso tudo desapareceu do Brasil. Temos agora, em nosso país, um chefe de Forças Armadas que recebe candidatos a presidente da República, tira fotos com candidatos e diz que, a partir de agora, todos os candidatos serão ouvidos.

Mesmo que escutar fardado um candidato nunca tenha sido exatamente escutar.

Além disso, somos, ao contrário, obrigados a escutar até mesmo professores degradados de filosofia dizendo que as Forças Armadas na política respondem pelo desejo de redenção moral do Brasil.
"Inexiste agenda importante de governo que não passe pelas FFAA"
De fato, o Brasil é um país singular. Aqui, adoradores de torturadores, de estupradores e ocultadores de cadáveres passam por redentores morais.

Redenção moral feita por aqueles que corromperam o Estado, que alimentaram regiamente as empreiteiras que sempre corromperam o Estado e por presidentes que comandavam assassinatos contra opositores.

Como vemos, uma bela moralidade e que diz muito, na verdade, a respeito da moralidade de seus enunciadores.

Tudo isso demonstra que o verdadeiro projeto consiste em transformar a República brasileira em um Estado tutelado pelas Forças Armadas.

Essa seria uma saída muito menos onerosa que um golpe militar clássico. O Brasil sempre foi capaz de criar situações aparentemente contraditórias e funcionar sob contradições.
"O candidato mais popular são os votos brancos e nulos"

Criamos uma ditadura que continha ilhas nas quais se podia comprar livros de Marx e ouvir música de protesto.

Agora, criaremos uma democracia de farsa assumida na qual o verdadeiro poder não estará nem no Poder Executivo, nem no Legislativo, nem no Judiciário.

O lado cômico dessa história é que estamos, neste momento, todos discutindo eleições da qual a grande maioria da população já desertou. Com Lula preso, o candidato mais popular são os votos brancos e nulos.

No entanto, o destino do poder em nossa sociedade está a ser decidido em outra esfera, de uma forma que nada tem a ver sequer com noções elementares de democracia formal.

Um comentário:

Henrique Nascimento disse...

Em agosto do ano passado, o estado do Amazonas teve uma nova eleição para governador, pois o então governador foi cassado pelo TSE, quando Lula ainda não estava preso e tinha chances de concorrer a alguma eleição. O candidato mais votado nessa eleição foi brancos e nulos com 50% dos votos válidos. Me parece, não tenho certeza, que esse candidato é um fenômeno nacional, com ou sem Lula, esse também, sejamos justos, responsável em grande parte pela transformação da "República Brasileira em Estado tutelado das Forças Armadas".

O Vladimir poderia ter nos poupado o penúltimo parágrafo.

Related Posts with Thumbnails