"o verdadeiro resultado da governabilidade do ingovernável" |
vladimir safatle
O GOLPE FINAL
O GOLPE FINAL
Aqueles que, nas últimas décadas, acreditaram que o caminho do Brasil em direção a transformações sociais passava necessariamente pelo gradualismo deveriam meditar profundamente nesta semana de julho.
Não foram poucos os que louvaram as virtudes de um reformismo fraco porém seguro que vimos desde o início deste século, capaz de paulatinamente avançar em conquistas sociais e melhoria das condições de vida dos mais vulneráveis, enquanto evitava maiores conflitos políticos graças a estratégias conciliatórias.
"Há de se respeitar a correlação de forças", era o que se dizia. Para alguns, isso parecia sabedoria de quem lia A Arte da Guerra, de Sun Tzu, antes de reuniões com José Sarney e a lama do PMDB. Eu pediria, então, que meditássemos a respeito do resultado final de tal sabedoria.
Pois o verdadeiro resultado dessa estratégia está evidente hoje. Nunca o Brasil viu tamanha regressão social e convite à espoliação do mundo do trabalho.
E pensar que antes o Lula liderava greves contra a Fiesp! |
O salto de modernização que nos propõem hoje tem requintes de sadismo. Ou, que nome daríamos para a permissão de mulheres gestantes trabalharem em ambientes insalubres e de que trabalhadores tenham o direito de negociar seu horário de almoço?
Tudo isso foi feito ignorando solenemente o desejo explícito da ampla maioria da população. Ignorância impulsionada pelo papel nefasto que tiveram setores majoritários da imprensa ao dar visões completamente monolíticas e unilaterais das discussões envolvendo tal debate.
Mas isso podia ser feito porque não há mais atores políticos capazes de encarnar a insatisfação e a revolta. Hoje, o governo pode atirar contra a população nas ruas em dias de manifestação e sair impune porque não há ator político para incorporar rupturas efetivas. Eles se esgotaram nos escaninhos de tal modelo de gestão social brasileiro.
A reforma trabalhista apenas demonstra que o gradualismo pariu um monstro. Os mesmos que votaram para mandar a classe trabalhadora aos porões de fábricas inglesas do século 19 estavam lá nas últimas coalizões dos governos brasileiros, sendo ministros e negociadores parlamentares.
"A política conciliatória os alimentou e preservou" |
Ou seja, a política conciliatória os alimentou e os preservou, até que eles se sentissem fortes o suficiente para assumirem a cena principal do poder. "Mas era necessário preservar a governabilidade", diziam. Sim, este é o verdadeiro resultado da governabilidade do ingovernável, da adaptação ao pior.
Como se fosse apenas um acaso, no dia seguinte à aprovação da reforma trabalhista o Brasil viu o artífice deste reformismo conciliatório, Luiz Inácio Lula da Silva, ser condenado a nove anos de prisão por corrupção. Esse era um roteiro já escrito de véspera.
De toda forma, há de se admirar mais um resultado desta política conciliatória –a adaptação ao modelo de corrupção funcional do sistema brasileiro e, consequentemente, a fragilização completa de figuras um dia associadas, por setores majoritários da população, a alguma forma de esperança de modernização social.
O Brasil agora se digladia entre os que se indignam com tal sentença e os que a aplaudem com lágrimas de emoção. Engraçado é ver outros políticos que também mereciam condenação pregarem agora moralidade.
No entanto, o problema é que só existirá essa sentença, nada mais. Este é o capítulo final. Da mesma forma que o capítulo final do julgamento do mensalão foi a prisão de José Dirceu. Perguntem o que aconteceu com o idealizador do mensalão, o ex-presidente do PSDB Eduardo Azeredo.
"Perguntem o que aconteceu com o idealizador do mensalão" |
Ou perguntem sobre o que acontecerá a outro presidente do mesmo partido, aquele senhor que foi pego em gravação telefônica dizendo que deveria procurar um interceptador para propina que pudesse ser assassinado.
Ou o ex-presidente FHC, citado nos mesmos escândalos que agora condenam Lula. Muitos reclamam da parcialidade da Justiça brasileira: há algo de comédia nessa reclamação.
Que esta semana seja um sinal claro de que uma forma de fazer política no Brasil se esgotou (*), seus fracassos são evidentes, suas fraquezas também. Continuar no mesmo lugar é apenas uma forma autoinduzida de suicídio.
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* Safatle veio ao encontro da avaliação que fiz neste artigo, de que, com a condenação do Lula, toda uma época, a do reformismo à brasileira, termina de forma melancólica. (CL)
4 comentários:
Sempre leio seus textos com atenção, pois existe neles algo muito além do que minha percepção alcança, na modesta condição em que me encontro.
Complementarmente, os textos do Dalton trazem uma teorização do marxismo esclarecedora.
Além disso, os artigos publicados pela sua editoria sempre mostram coerência.
Padeço, porém, de limitações teóricas e de vivência para abranger toda a extensão do que é apresentado.
O que não quer dizer que não tenha entendido alguma coisa.
Parece que a esquerda está encalacrada entre duas vertentes: reformistas e revolucionários.
Os reformistas sucumbiram pelos motivos expostos neste e no outro artigo que você citou.
Os revolucionários também falharam, pois pressupunham que valores seriam impostos a força e descambaram para a mais abjeta ditadura (Liu Xiaobo que o diga).
Haveria uma terceira via?
Afirmo que sim.
Não há que se fazer reforma, nem revolução (destruir para construir) e sim realizar em si o ideal que espera dos outros.
Essa é a moral que não precisa adjetivo.
E também é a que falta a todo e qualquer ser humano, desde de que seja honesto consigo mesmo.
É por serem os seres humanos imorais que existem a norma, a regra, o policiamento e a política.
Mas, a moral terá algum valor para melhorar a vida das pessoas?
Sim. Além dos apriorísticos benefícios da virtude para o todo e para o indivíduo.
Atualmente, estão sendo criados protocolos contábeis dinâmicos (criptomoedas), cuja exigência é que os utilizadores sejam honestos.
Assim, valores são mais do que meras conjecturas filosóficas e a moral se impõe como a única saída para o impasse em que nos encontramos.
Temos que avançar moralmente.
Tenho uma boa notícia.
Pararei com meus pitacos.
Vou voltar a estudar filosofia. Contornei meu problema de visão com um programa que lê os textos. Uma beleza.
Quero também agradecer a você e ao Dalton que me desafiaram a pensar.
Tudo de bom.
Continuarei leitor do blog.
Ora, a boa notícia para ti só o é para nós no sentido de que preferimos ver os amigos, virtuais inclusos, sempre se dando bem.
Mas, seus comentários sempre foram estimulantes, recebidos com alegria pelo Dalton (que tem personalidade mais próxima de um professor e adora escrever) e, às vezes, com alguma impaciência por mim.
No segundo caso, o defeito era meu, não seu. Embora inativo por força de preconceitos relativos a idade e posições políticas, levo vida atarefada, estou na terceira união estável e sobram afazeres relativos às outras duas, os problemas financeiros me tiram o sono (é inusitada e aberrante a perseguição jurídica que sofro por parte da Advocacia Geral da União), cuidados com a saúde me tomam algum tempo, etc.
Então, às vezes respondo de forma um tanto lacônica a comentaristas, mas não por mal nem por soberba; é uma tática de sobrevivência, pois, se deixar discussões virtuais se alongarem muito, me faltará tempo para outras atividades. Só posso me desculpar, pois não teria como melhorar muito tal quadro.
Enfim, continue lendo nossos textos (você e os que se interessam realmente pelo que escrevemos são o principal motivo desta nossa faina voluntária, que não nos rende um centavo e ainda nos granjeia detratores e inimigos) e, se puder e quiser, ajude-nos a espalhá-los. E não deixe de escrever de vez em quando!
Quanto ao que vc questiona, seria uma discussão muito longa. Se eu fosse, p. ex., escrever um artigo sobre isso para o grande público, teria de recapitular vários livros que li num passado distante (devorava os clássicos da literatura marxista e correlatas mais ou menos entre os 17 e os 30 anos, hoje estou chegando aos 67), pois o que a minha mente retém bem é a conclusão a que chegam os teóricos e nunca fui de ficar fazendo fichas ou anotações sobre os detalhes menores das obras. Minha personalidade é de autodidata, não de scholar.
Então, simplificando a coisa, o marxismo e o anarquismo nunca foram intrinsecamente violentos nem autoritários (os segundos, pelo contrário, eram a quintessência dos libertários). Previam que uma onda revolucionária ascendente varreria o mundo, retirando o poder da ínfima minoria de exploradores e permitindo que as grandes decisões da sociedade fossem tomadas pela maioria, consensualmente, priorizando sempre o bem comum.
Esta visão radiante e generosa foi muito abalada pela terrível repressão que vários países europeus orquestraram para extinguir a ferro e fogo a Comuna de Paris.
Os anarquistas permaneceram fiéis à sua pregação anti-estatizante, confiantes na força da massa e desconfiados das vanguardas e burocracias partidárias.
Os marxistas começaram a admitir a necessidade de uma etapa intermediária, em que o Estado, as forças armadas e outras instituições nacionais continuariam existindo, para protegerem a revolução nascente e irem preparando o terreno para, às medida que mais e mais países fossem fazendo suas revoluções, dissolverem os mecanismos pelos quais alguns profissionais exercem funções e tomam decisões em lugar do povo. Ou seja, o Estado continuaria provisoriamente existindo, mas teria como um de suas principais funções criar as condições para sua extinção por obsolescência. (continua)
(continuação) Mas, era ainda uma formulação teórica. A situação teve de ser enfrentada na prática quando os bolcheviques constataram que o poder estava ao alcance de suas mãos em 1917, mas que a tomada se daria, de imediato, num único país, que, ademais, estava na rabeira e na vanguarda do desenvolvimento econômico, muito atrás de Inglaterra, França, Alemanha, EUA, etc.
Foi dramática a discussão sobre se valia a pena fazerem a revolução num país que, na visão marxista, não reunião as pré-condições para o socialismo, pois ainda restavam resquícios feudais para extirpar e uma infra-estrutura de nação avançada para construir, o que demanda esforços imensos num território tão grande quanto o russo.
Acabou prevalecendo um belo sonho: o de que a revolução russa seria o estopim da revolução européia, começando pela alemã. E que, com o apoio das revoluções que ocorreriam em nações europeias mais avançadas, seria atenuado o esforço imenso para trazer a Rússia para o século 20, em termos econômicos.
Quando ficou evidenciado que a revolução alemã não ocorreria tão cedo e que a revolução soviética teria de resistir sozinha às agressões armadas de uma poderosa coalizão de exércitos de países capitalistas, somados aos remanescentes do antigo regime, impôs-se a criação de um forte exército, uma obra colossal do Trotsky, que salvou a revolução soviético de um destino semelhante ao da Comuna de Paris.
Depois, para alimentar o povo e dar-lhe condições mais civilizadas de existência (entusiasmo revolucionário dura alguns anos, depois o povão quer ver os frutos de seus esforços, ideologia não mantém seu apoio para sempre), e isto sob forte boicote das nações capitalistas, foi necessário outro colossal esforço, que, naquelas condições, já não dava mais para ser realizado apenas pelo convencimento das massas. Partiu-se para a intimidação, o terror, o trabalho escravo dos prisioneiros políticos, etc. Para sobreviver materialmente, a revolução soviética perdeu sua alma, tornando-se um Estado policial, regido por uma nomenklatura privilegiada e odiosa.
Com diferenças apenas em detalhes, mas a mesma essência, os demais países do "socialismo real" foram para o mesmo caminho: capitalismo de Estado na economia e "ditadura do proletariado" (melhor seria dizer "da nomenklatura" na política).
Assim se deu a distorção do ideal revolucionário de marxistas e anarquistas, que pregavam a construção de sociedades muitíssimo diferentes da soviética, chinesa, cubana, etc.
A outra discussão é se, em condições históricas muito diferentes, a crise terminal do capitalismo que estamos presenciando e sofrendo, em sinergia com a gravíssima crise ambiental, poderá propiciar o que se pretendia originalmente no século 19: uma onda revolucionária varrer o mundo, com revoluções eclodindo simultaneamente em muitos países e a reconstrução se dando em escala ampla (socialismo num só país nunca vai funcionar!).
Só posso dizer que minha experiência pessoal nas comunidades alternativas da década de 1970 me mostrou que os seres humanos, desde que imbuídos dos princípios corretos, conseguem colaborar uns com os outros em termos extremamente solidários e generosos. A cultura da ganância e do privilégio constrói péssimos seres humanos. Sob valores diferentes os homens se comportam de forma diferente. E podem muito bem fazê-lo por acreditar no que fazem, ao invés de terem de ser coagidos a isso.
Eu acredito que os sonhos revolucionários do século 19 ainda terão uma nova chance de reconfigurarem o mundo. Houve um ensaio neste sentido em 1968. Agora, com o colapso do capitalismo e os desafios ambientais, há uma chance de irmos além daquele ensaio. Diminuta, mas é a melhor que temos. As outras possibilidades mais evidentes são impensáveis: o extermínio da espécie humana ou uma regressão tão terrível como foi, p. ex., o feudalismo.
Um forte abraço e muita felicidade nessa sua nova fase, companheiro!
MENSAGEM ENVIADA POR E-MAIL PELO DALTON:
Caro SF,
não sabia das suas limitações visuais, e você é uma prova viva de que os que querem enxergar enxergam com as percepções da alma, pois o pior cego é o que não quer ver. Sou sempre grato pelos seus pitacos (que na verdade são observações sempre úteis e contribuem para reflexões e esclarecimentos, e que devem continuar).
Aí vão dois comentários tópicos sobre o que você escreveu:
- toda revolução armada pressupõe a existência de um poder armado que se contraponha aos contrarrevolucionários. Assim, acredito que uma sociedade consciente do que quer e de como fazer para obter o que quer não precise de um poder armado. Entendo que é a consciência sobre a força de um pensar coletivo voltado para a emancipação e sabendo como fazê-la seja aquilo que poderá nos proporcionar a emancipação social e nos livrar de tanto tempo sob o jugo das botas e armas do poder verticalizado que é sempre nocivo aos interesses do povo;
- os seres humanos vivem um processo evolutivo desde a sua primeira natureza irracional. A segunda natureza, caracterizada pela obtenção da razão humana, ainda detém resquícios fortes da primeira natureza irracional. Mas estamos evoluindo e esse é um processo histórico que espero não seja interrompido pela extinção da vida no Planeta Terra em face de nossa própria inconsciência social. Mesmo assim, entendo que os seres humanos não são imorais por natureza biológica, ontológica, mas serem uma folha em branco na qual os próprios mecanismos sociais escrevem o seu destino e comportamento. O ser humano gerado no ovo da serpente capitalista, obviamente, está contaminado e maculado por todo os vícios próprios a uma forma de relação social doentia.
O seu esforço em estudar filosofia é fundamental para a compreensão das questões que estão subjacentes aos nossos infortúnios, principalmente quando se tem uma visão crítica das questões que estão na base e formam o modo de produção capitalista, cujo embrião vem se aperfeiçoando desde três séculos e que vive agora um impasse existencial causado por suas contradições internas e que afligem a humanidade sem que esta conheça as suas entranhas destrutivas e autodestrutivas.
Gostaria que você continuasse participando, pois é isso o que alimenta os nossos escritos.
Receba a nossa solidariedade (que deve ser sempre um aspecto fundamental entre revolucionários emancipacionistas) e um grande abraço. Dalton Rosado.
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