domingo, 5 de março de 2017

A NECESSIDADE INADIÁVEL DO PENSAR E DO FAZER FORA DO MERCADO

"A fome é a expressão biológica 
de males sociológicos" 
(Josué de Castro) 
.
Sob o primado do capital, toda produção de bens e serviços tem um pressuposto limitador das ações humanas: o mercado. Nada se faz sem que antes se avalie a viabilidade econômica desse fazer. 

Destarte, no que tange à produção de bens e serviços destinados ao mercado, somente o que consegue altos níveis de produtividade se mantem sustentável, motivo pelo qual grandes contingentes humanos urbanos e rurais estão marginalizados, pois indústrias são fechadas e grandes extensões de terras se tornaram improdutivas. 

Trata-se de uma contradição fundamental dentre as muitas contradições do capitalismo em seu momento de limite interno de expansão, condição que está a inviabilizá-lo como modo de mediação social. 

No nordeste brasileiro, p. ex., observa-se o abandono de extensas áreas rurais que se tornaram desabitadas e com casas em ruínas, tornando inócua a pretensão capitalista de produção de mercadorias (ainda que sob a via equivocada da reforma agrária sob a égide do mercado) nessa região, por absoluta inviabilidade econômica de produção. 
É por causa da concorrência de mercado aplicada à produção de alimentos (ainda que haja subsídios fiscais e financeiros estatais em muitos lugares, inclusive no Brasil) que se constata o aumento da fome em escala mundial, conforme relatório estatístico da FAO/ONU.

Diante disto, as experiências de produção voltadas para a distribuição de bens e serviços fora da lógica do mercado têm de ser socialmente experimentadas o quanto antes! A disseminação de um critério de produção voltado apenas para a satisfação das necessidades humanas, pari passu a um comportamento solidário no qual todos se sintam contributivos, será fator de construção da emancipação humana e, principalmente, da construção de uma nova e elevada moral social.  

Dentro de um sistema de produção fora da lógica de mercado deixa de prevalecer a tal da viabilidade econômica, uma vez que, por mais que a atividade produtiva solidária (que não é trabalho do ponto de vista econômico, categoria capitalista) possa vir a demandar grande esforço de produção de bens e serviços em lugares diversos e situações diversas, ela será sempre viável sob as circunstâncias de necessidade de consumo imediato e localizado.

Neste sentido, o saber tecnológico, aplicado tanto na agricultura como na indústria e serviços, contribuirá para que se obtenha uma capacidade de produção capaz de satisfazer com abundância as necessidades de consumo.

Entretanto, a produção de bens e serviços fora do mercado, que mais do que nunca é necessidade imperiosa e inadiável para uma vida social sustentável e em contraponto ao atual estágio suicida da lógica capitalista, esbarra no interesse privado e estatal mercantil avesso ao interesse popular.

Respaldado pela institucionalidade protetora desta mesma lógica, o dito cujo tudo faz para inviabilizar a produção fora do mercado, exercendo contra ela uma ferrenha oposição sistêmica (fiscal e belicista, respaldada juridicamente pela Constituição e demais leis ordinárias).  

São poucos os que admitem se livrar da matriz fetichista introjetada nas nossas mentes e que nos foi imposta secularmente, por mais cruel e genocida que ela seja (é incrível como, na maioria das vezes, a prática do óbvio parece impossível!).   

O capitalismo, ainda que esteja se mostrando inviável sob seus próprios fundamentos e ameaçando a existência humana na Terra, não quer permitir que nenhum bem, ou serviço, venha a ser produzido sem que tal produção se dê pela criação de valor econômico, pois é daí que retira a exploração segregacionista (mais-valia) e a sustentação do Estado (seu serviçal institucional) por meio dos impostos.
Contudo, as contradições da sociedade capitalista mediada pela forma-valor (que, para a quase totalidade das pessoas, é um dado imutável e ontológico da existência humana) explicitam-se de tal modo que paira no ar a pergunta que não quer calar: como viabilizar a vida diante da tragédia humana que se avoluma mundialmente como consequência das agressões ecológicas ao planeta (no solo e na atmosfera), que se constituem em gravíssimos crimes sócio-ambientais?

A questão da inviabilidade social sob o capitalismo se estende também à administração pública, tanto que o noticiário está repleto de denúncias sobre a péssima prestação de serviços públicos nos principais setores de incumbência governamental:
– na área da saúde é comum a superlotação dos hospitais, com macas nos corredores e gente morrendo ou fazendo partos de emergência na porta de entrada; 
– na segurança pública o Estado perdeu a capacidade de julgar e prender, dado o elevado índice de criminalidade e a caríssima estrutura necessária para a combater (hoje um preso é mais caro um professor!); 
– na área da educação se observa um índice alarmante de analfabetos crônicos e funcionais, repetências e desistências, que se soma a um baixo nível de aprendizado básico e técnico, com professores migrando para outras atividades por causa dos baixos salários. Isto sem falarmos no conteúdo curricular que positiva a negatividade sistêmica, confundindo os jovens injustiçados sociais. 
O Estado já não consegue sequer prover a infra-estrutura voltada para a produção capitalista (energia, estradas, aeroportos, ferrovias, portos marítimos e fluviais), 
uma das principais funções de sua incumbência. 

Já não dá conta nem mesmo da saúde, segurança pública e educação, que servem como cortina para a cada vez mais escorchante cobrança dos impostos.

Tal realidade é comum a todos os países periféricos do capitalismo e hoje já está atingindo até países anteriormente prósperos.

Serão todos os governantes incompetentes (corrupção aí incluída) ou haverá algo mais profundo na base deste empobrecimento generalizado? 

Mesmo se considerando que o cancro da corrupção agrava os problemas da vida mercantil, não se pode atribuir apenas à corrupção, conjugada com a incompetência pessoal de um ou outro governante, a culpa pelas mazelas de que somos vítimas. 
A democracia republicana induz à prática da corrupção, pois está baseada na representação popular, deturpada pela histórica interação de levar vantagem entre eleitores e eleitos e pelos custos proibitivos de uma campanha bem sucedida, que compelem os candidatos a buscarem formas de financiamento escusas. 

A corrupção com o dinheiro público não é, entretanto, o mal principal, mas apenas um vetor contributivo para o caos atual. Na verdade, estamos submetidos a um modelo social que, se nunca foi bom, agora se mostra insuportável. 

Qualquer cidadão que se debruce sobre as contas públicas verá que mesmo se considerando que mais de um terço do PIB é destinado para a arrecadação de impostos, estes são insuficientes para o atendimento das demandas sociais, a cobertura do déficit previdenciário e o pagamento dos juros da impagável dívida pública.  
Não podemos fugir da análise e compreensão do fenômeno representado pela inviabilidade da reprodução, no nível necessário, da substância valor-dinheiro, que é o instrumento de mediação social e combustível único da vida social mercantil.

Vivemos o ciclo do colapso da forma-valor e do seu sistema produtor de mercadorias. Precisamos, portanto, ter consciência de que a questão não é de gerenciamento governamental, de falta de qualificação técnica ou de extirpar a corrupção (fatores agravantes), mas de exaustão de um modelo social a ser superado.

Então, por que não nos libertarmos das amarras do mercado (teatro de operação do capital representado por suas categorias fundantes principais, trabalho abstrato e mercadoria) e produzirmos apenas para consumir? 

Por mais que pareça estranha a ideia de passarmos a produzir para distribuir equitativamente e não para vender e comprar, este deve ser o estuário natural de forma e conteúdo da produção a ser configurado. 

Tudo nos impele a esta solução fora da lógica do mercado, ainda que não o queiram os senhores do capital, da guerra e da fome. (por Dalton Rosado)

"É a cegueira de deixar / Um dia de ser peão/ De não comprar nem vender / 
Roubar, isso também não! / De não ser mais empregado / E também não ser patrão" 

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