segunda-feira, 24 de outubro de 2016

FALATÓRIO

Falavam que ela não passava pela roleta do ônibus, tão gorda era. Embora com uma cinturinha de dar inveja a muita moça. Ombros largos, braços gordos, cara cheia. Sem dentes na frente.  Morava na periferia, com a sogra. 

Fui ao enterro daquele que outrora fora o príncipe encantado dela. Falavam que ele tinha derretido o fígado de tanto beber.  Coberto pelo branco lençol, no necrotério, aquele barrigão. Ela chorou no velório e também no cemitério. Normal. Cada um, a seu modo, metaboliza a sua própria dor. É com lágrimas que eu, você e todos os demais humanos deste planeta azul nos rendemos à ditadura da velha senhora de preto com foice nas mãos. Dói muito. 

Nós, os vivos, saímos dos enterros certos de que estamos livres desse mergulho definitivo na escuridão. Ah, a linha de chegada! Ao final do perambular por enseadas e mares de ínfimas bondades e montanhosas maldades, o fim da maratona é o conhecido buraco intitulado sepultura. Prepare-se. A vida passa como fumaça, falava minha bendita mãe, décadas antes de ela mesma mergulhar na escuridão. Não, mãe, não há escuridão. Dormimos o ultimo sono e acordamos em algum lugar reluzente por aí.  

Mas a gorda está viva. Tanto que, em papos sonolentos, em fins de tarde, um hoje, outro amanhã, sua velha sogra vai me pondo a par das novidades. O sujeito, o outro, eta palavrinha essa de som trágico do violoncelo, apareceu um ano depois que o marido morreu. Surgia como um fantasma, se espalhava na poltrona, tomava café, falava, falava e falava, e se olhavam, e se olhavam, e se olhavam, e depois ele ia embora. Eu vi algumas vezes  o brilho nos olhos dela.

O seu banguelo sorriso de criança dificultava a fala. Nessas ocasiões, eu me encostava num canto da casa pobre sem mover um músculo. Fico sempre quietinho nos cantos de tudo quanto é situação para não atrapalhar. Ela falava sempre a mesma ladainha: Esta vida é engraçada, não? Isso falava ela com seu banguelo sorriso de criança. E os olhos pretos brilhando. Olhar brilhando de mulher, que coisa.

Era engraçado, falava ela, porque achava que ia morrer quando perdeu o marido e, no entanto, lá estava ela, apaixonada outra vez. A velha sogra falava, que o povo falava, que o sujeito era noivo de outra. Palavra essa de idêntico som trágico do violoncelo.   Deus criou almas gêmeas e trigêmeas, falam os filósofos de botequim. Ninguém é de ninguém?

Falava a velha, e falava o povo, que o sujeito não trabalhava e não rejeitava algum dinheirinho que a gorda banguela lhe punha nas mãos às escondidas.  Falava o povo que o sujeito ia embora, não queria mais a gorda, queria era casar com a noiva e continuar correndo atrás de suas almas trigêmeas, quadrigêmeas e até onde isso pode parar e pelo andar da carruagem humana não para nunca.

Correndo com os olhos as bugigangas daquela casa pobre, isto falei eu comigo mesmo: existe uma vontade estranha à nossa, que faz algumas coisas acontecerem de modo diferente do que ardentemente sonhamos. Podem chamar de destino, de vontade de Deus, podem por a culpa nos outros, façam o que quiserem. É assim que eu falo.   

Aquele dramaturgo inglês famoso universalmente, cujo nome sempre acho afetação pronunciar, Shakespeare, falou de modo algo sádico sobre o segundinho de atraso, verdadeiro momento cósmico, com que o carteiro entregou uma carta que Romeu havia escrito para Julieta, que se tivesse sido lida a tempo pela moça enamorada, teria evitado o trágico final daquele conturbado amor. O mesquinho inglês não falou por que cargas d'água arquitetou tamanha torpeza.

Diabos, além das almas trigêmeas e quadrigêmeas e do atraso no correio, existe também o tal de momento cósmico de azar.  

O momento cósmico, ou a vontade de Deus, ou o destino, ou as circunstâncias, me colocaram mais uma vez num canto da casa pobre, de pé, imóvel, para ouvir a gorda. Qualquer dia eu pego no sono de pé, meu espírito sai do corpo e eu fico duro, frio e quietinho num canto. Sou um bom ouvinte. Sabem o que acontece com o bom ouvinte? Acaba se cansando da espécie humana. Gosto de falar isso.

E a gorda só falava: esta vida é engraçada mesmo. E falava e falava e falava que pensava que ia morrer, e não morria, quando perdeu o marido e, no entanto, lá estava ela, agora, apaixonada outra vez. É duro gostar, não é, falava, banguela, é duro gostar, ele não vem mais, eu sei, ele vai casar com a outra, o que é que eu faço da minha vida, meu Deus, o que eu faço? 

E dá-lhe chorar. Os grossos lábios se retorcem. Forma-se uma careta. Lágrimas em cascata. Soluços sacodem os ombros. A saliva caia dos cantos da boca. O buraco da boca torta mostra a gengiva. É um ser humano. 

No peito cheio, bate descompassado um coração de menina. Lá dentro dela há uma menina. Somos todos meninos e meninas. Não somos?  Vamos brincar de roda? Roda-roda-roda, pé-pé,péé, roda-roda-roda, caranguejo peixe é!

É engraçada a vida. Achava que ia morrer quando perdeu o marido e, no entanto, lá estava ela, agora, apaixonada outra vez. E a velha sogra, vendo minha pena, ia me pondo a par das coisas, mais e mais. E eu, no meu canto, boca fechada.  Nós emitimos sinais no dia-a-dia, um gesto aqui, outro ali, um tom de voz aqui, outro ali, um dito assim, outro assado, os olhos duros, ou os olhos calmos, a voz dura, a voz calma. Reunidos, esses sinais compõem um todo e é o que somos. Falei e disse.

Vi muitos enterros de maridos, falava a velha, que a cada semana visitava o túmulo do próprio. Como falava o coveiro, falava a velha, elas se arrebentam de tanto chorar, desmaiam, algumas nem choram, e, alguns meses depois, voltam, algumas nem voltam, e as que voltam vão visitar os túmulos dos maridos já dependuradas nos braços de outro. Seres humanos. 

E tudo é questão de  momentos cósmicos. Ou a vontade do nosso Pai Celestial. Ele é o artista e nós a sua obra. Alguém já disse que Deus fez um esboço de nós mais para caricatura e cabe a nós melhorar a nós mesmos.

No velório do outrora príncipe encantado da gorda, foquei os parentes que a desprezaram, criticaram, espezinharam e lá estão eles todos, rezando hipocritamente o Pai Nosso ao lado do caixão.

Pensei em falar a ela algumas palavras de conforto. Não falei. Sou um abobalhado diante da morte. O que consegui? Apenas manter o pensamento bailando sobre o cemitério, aqui e ali, em tumbas ricas e pobres, imaginando que recado esotérico estaria contido naquele desenho caleidoscópico formado pelos esqueletos e caveiras a sete palmos de fundura, um virado para cá, outro virado para lá, um virado para cá, outro virado para lá. As caveiras, de maridos e esposas, parecendo rir zombeteiramente uma das outras. 

Falo por compulsão, porque desde criança a vida me faz testemunha de amargos desentendimentos e traições dos casais. O que falar do homem que abandona a família e vai embora com outra depois de dividir tristezas e alegrias com esposa, filhos e netos a vida inteira? 

Relaxem, o mundo está cheio de gente boa. Falei!

Não deixo de falar, não mesmo, do chão deste cemitério onde tenho os pés, do meu êxtase de admiração pelas enfermeiras. Seres especiais. Limpam o nosso cocô e o nosso xixi nas camas de hospitais durante aquele tempinho antes da nossa última viagem. Cuidaram com igual bondade de todos esses esqueletos debaixo da terra desta cidade dos mortos que contemplo. 

Falo, sim, a enfermagem é a atividade mais digna, humana e emocionante de toda essa parafernália de busca de sobrevivência que nos cerca. Falo, sim, que a enfermeira maior, humana, emocionante, divina, que passou por estas bandas merece permanecer sempre em nossos corações, santa Madre Teresa de Calcutá. Falo, sim. 

E a velha falando, que o povo falava, que a gorda, numa prova de que amava o amor, não propriamente os homens, isso falo eu, que a gorda, num ímpeto, certa vez, num ímpeto juvenil, falou que já tinha andado com aquele homem grande e forte da frente antes de o marido morrer. 

E a velha falava, que o povo falava, que a gorda, ao tempo em que era magra, esbelta, bonita e solteira, e também depois, no tempo em que o marido era vivo, ficava olhando hipnotizada até a noite chegar para os homens que iam trabalhar na chácara. Que quando era moça, falava o povo, e também a velha, deu muito trabalho para os pais e nem os irmãos a queriam ver agora. Quantos momentos cósmicos, meu Deus. Ainda sou eu falando. Paciência.

A última vez que a vi, ela estava radiante.  Fez regime. Pouco se fala sobre a aventura que viveu para emagrecer. Sim, porque, pelo girar do globo terrestre, emagrecer é uma fantástica aventura. Está elegante. Magra. Cabelos tratados. Mandou pôr os dentes. E não é que o dentista fez um belo trabalho? E não é que ela é bonita? 

O brilho nos olhos dá o recado alegre da alma. A mulher feliz de cara gorda e agora corpo fino vive me falando que a vida é engraçada, que não se deve desanimar nunca, seguir em frente, que Deus sempre está inventando um momento cósmico para a gente. Não, não foi isso. Ela falou assim: Deus sempre está dando coisas boas para a gente.

O bom ânimo da gorda bonita agora magra parece encontrar explicação pelo que sempre falava minha santa avó. Filho meu, falava ela, minha avó, santa, enroscando os dedos nos meus cabelos, filho meu, não precisa ser valente nesta vida, nem bancar o esperto, porque Deus a tudo provê

Acho que minha avó também queria falar que esta vida é engraçada. O jeito como essa gorda bonita agora magra me olha sem parar com seus olhos brilhantes, me faz acreditar que a vida é, sim, engraçada. (por Apollo Natali)

Um comentário:

Eduardo Rodrigues Vianna disse...

Natali é dos pouquíssimos escritores que aparecem na Web a quem leio pra valer. E ler pra valer é ler pra valer, falei? Gosto de lê-lo aqui no Náufrago, mas gostaria mais de lê-lo diagramado, cortado, untado e encadernado num retângulo de papel, uma brochurazinha que fosse. Então eu poderia lê-lo sentadão no sofazinho da sala, ouvindo os passarinhos e as crianças correndo na rua, que aqui no meu pedaço tem disso. E também num vagão da CPTM. Os escritos do Natali foram pensados e coisados para ler num vagão da CPTM. E tem de ser um livro de papel, daqueles que a gente esquece por uma dessas arrelias da vida no banco do trem, para que outra pessoa o encontre e o leve embora. Este seria um fenômeno do amor e do humor cristãos: facultar ao próximo achar um livro do Apollo Natali, de graça, e na graça.

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