domingo, 14 de agosto de 2016

O DIREITO COMO NEGAÇÃO DA JUSTIÇA

"O cidadão é o cadáver do homem"
(Sócrates, filósofo grego do século 5 a.C.) 
Desde os primórdios de seu nascimento as relações econômicas tomaram um caráter jurídico-moral entre os indivíduos sociais. A detenção de valores econômicos por parte de alguém, num conceito de posse privada que se desenvolveu posteriormente para um conceito de propriedade a partir da possibilidade de acumulação individual em detrimento da partilha comunal primitiva, passou a representar poder individual e reconhecimento social tido equivocadamente como sendo um louvável resultado de mérito pessoal e de contributo social. 

A consequência lógica desta acumulação privada representando poder foi a necessidade de elaboração de um cânone jurídico que protegesse tal situação e assegurasse sua incolumidade contra qualquer possibilidade de subtração por outrem, principalmente por meios considerados como crime. Assim, nasceu o direito romano na região em que o conceito de acumulação de riqueza material e abstrata privada ou estatal já era o mais desenvolvido no mundo, e que serviu como base filosófico-ideológica de todo o ordenamento jurídico ocidental hoje existente. 

O direito romano, cujos conceitos consuetudinários e codificados se formataram ao longo de 1.300 anos (de 754 a.C até 565 d.C), não por coincidência, foram firmados juntamente com o aparecimento e desenvolvimento da forma-valor a partir do escambo – troca quantificada de mercadorias que tinha, e tem até hoje, como critério de mensuração do valor para tal troca, o tempo de esforço humano despendido na sua produção. 

O escambo necessitava de um ordenamento jurídico-institucional a lhe dar suporte. Foram as relações econômicas que deram aos atos sociais o atual senso de obrigação jurídica e, sobretudo, um sentido moral capaz de punir severamente aqueles que desobedecessem as regras constituídas. 

Ao tempo do direito romano, p. ex., o devedor inadimplente de uma dívida, se ficasse sem meios para ressarci-la, passava a ser propriedade do credor como seu escravo. A sociedade romana era fundamentalmente escravista, uma vez que há 2 mil anos a cidade de Roma contava com uma população de cerca de 1 milhão de habitantes, e era formada por 80% de escravos. Uma metrópole que, graças ao quase completo desconhecimento tecnológico, dependia da força de trabalho dos escravos (que tudo faziam em termos da produção de bens e serviços) para sua viabilidade social e econômica. 

Podemos inferir desta gênese constitutiva a razão de se emprestar às relações econômicas um conteúdo jurídico-moral que atribui ao direito de propriedade, qualquer que seja a sua magnitude, uma respeitabilidade e intocabilidade sagrada (o ius associado ao fas romanos) e que vai além das proteções jurídicas que lhe são inerentes, pois estão sedimentados em nossas mentes como afirmação do justo e do moralmente virtuoso. 

Isto, contudo, não impede que tais critérios estejam sendo agora desrespeitados pelo crime organizado, num fenômeno que vem surpreendendo todo o sistema produtor de mercadorias, uma vez que grandes contingentes de indivíduos sociais já não se comportam dentro da ordem jurídica instituída. 
O crime organizado impõe sua lei
A propriedade é legalmente respeitada, mas agora perde a sua força perante a criminalidade configurando-se como fenômeno social novo (os sujos bandidos de colarinho brancos têm agora a concorrência dos bandidos descamisados organizados, que roubam a propriedade para se igualarem aos primeiros). 

Tal forma de contestação da propriedade, baseada no crime, deve ser repudiada com todas as nossas forças, mas devemos compreender que ela é resultado inevitável e indesejado do exemplo da concentração de renda que o mundo está vivenciando de modo cada vez mais acentuado, pois apenas 1% da população mundial detém quase 50% da riqueza mundial privada. A forma saudável de se resolver tal impasse é a superação da própria propriedade, que deve dar lugar ao sentido de posse justa e utilitária.      

No centro das questões econômicas, com seus estatutos jurídicos-morais, está o ser humano transformado em cidadão, e pretensamente protegido pelo estado como titular de direitos (alguns) e obrigações (muitas). Ora, o Estado, considerado como pretenso protetor do cidadão, é quem patrocina a regulamentação e provimento institucional de uma relação social baseada no valor, que é intrinsecamente injusta. 

Portanto, o Estado, ao invés de ser o protetor do homem, é o seu opressor, razão pela qual exige deste último a produção de mercadorias por meio das quais se opera a apropriação indébita de parte do seu tempo de trabalho abstrato produtor de valor do próprio trabalhador (um roubo legalizado), e ainda lhe cobra impostos ao consumir essas mesmas mercadorias. 
Não é de estranhar-se, pois, que a opressão contida nas relações econômicas e jurídico-institucionais seja mascarada, por uma introjeção sublinear ou direta, como algo que protege o cidadão. Uma inversão de conceitos aperfeiçoada em milênios de escravidão direta e indireta e que hoje chega ao seu momento de impasse existencial. 

O ser humano transformado em cidadão sente vergonha de ser pobre, atribuindo a si mesmo a culpa pelo seu posicionamento social, e isso ocorre por dois fatores básicos:
  • por respeitar os valores econômicos, jurídicos e morais que culturalmente lhe foram inculcados como virtuosos e que transformam o direito natural em perverso direito escritural, contrariando a lógica do melhor senso de justiça (e isto somente até ele identificar-se com a barbárie em curso, transformando-se em bandido, numa busca irracional, infrutífera e tão cruel quanto aquilo que o oprime);
  • por sua incapacidade de elaboração e compreensão crítica da essência dos valores que lhe foram ensinados como virtuosos, e de igual inconsciência de um viver e de um fazer tecnológico cada vez mais sofisticado, do qual é excluído por inadaptação à moderna produção de mercadorias ou pela própria ilogia da relação social estabelecida.
A resultante do confronto épico em curso entre a inconsciência social sobre essa negatividade e a impossibilidade material de continuidade da exploração do ser humano pelo capital é ainda uma incógnita.
(por Dalton Rosado)

2 comentários:

SF disse...

Vi a referência a Sócrates e dizem que ele respondeu "não sei" quando perguntado sobre a verdade.
Depois os caras perguntaram porque ele seria o homem mais sábio do mundo e ele respondeu: porque eu sei que não sei!

Seu último parágrafo é socratiano.
"A resultante do confronto épico em curso entre a inconsciência social sobre essa negatividade e a impossibilidade material de continuidade da exploração do ser humano pelo capital é ainda uma incógnita."

Não sei se vc curte muito o método cartesiano, mas há muitos fatos observáveis que já nos possibilitam chegar a algum prognóstico quanto ao futuro. Cartesianamente.
Afinal, Descarte era fino jogador e acostumado a previsões.

Seria muito longo esmiuçar detalhadamente todo complexo sistema de opressão e seu complemento dialético - o oprimido.

Mesmo que quisesse não conseguiria, porém alguns eventos são evidentes demais.

A teoria dos conjuntos permite perceber que o governo não pode ser o emissor da moeda, pois cobra impostos para se manter. Se ele dominasse isso não necessitaria desse tipo de recurso, já que a moeda quita o tributo e é de curso forçado.
Logo, o governo deve ser mero serviçal do emissor da moeda e todo arcabouço político e jurídico atual é "fake". O estado, mesmo, são os caras que emitem a moeda.

Mesmo que digam que a competição é boa, os fenômenos sociais tendem a se tornar cooperativos, honestos e de ganho ótimo. A alternativa a isso é a solidão, pois, seja lutando sozinho ou alguns contra outros o ser humano não poderá ficar em eterno conflito sem graves consequências, quiçá a extinção.
Então é lógico acreditar que o colapso do emprego e do mercado dará lugar a um modo de vida mais pacífico e cooperativo. Mesmo que ainda arbitrado por algo parecido com o estado.

Toda e qualquer mudança nas relações econômicas sociais atuais sô serão empreendidas pelos oprimidos, pois ao opressor não interessa mudar nada. (O cara quando é adicto morre agarrado ao seu vício.)
Ocorre que, antes de qualquer mudança, o oprimido tem que exorcizar o opressor de dentro de si mesmo e passar a ter valores totalmente diversos dos que antes lhe balizavam o mundo mental. E não pode ser a negação do que existe. Tem que ser algo novo e afirmativo. A ética pode dar grande auxílio.

Acho que também pertence Socrates/Platão.
"Se vcs estão querendo a verdade devem cultuar os deuses.
"Mas, as ações de deus são arbitrárias ou baseadas na verdade?
"São baseadas na verdade. Disseram.
"Então vamos cultuar a verdade!"



celsolungaretti disse...

POSTANDO A RESPOSTA QUE O DALTON ROSADO ENVIOU:

Caro SF,
Ai vão algumas reflexões minhas sobre as inteligentes questões abordadas por você:
O pensamento científico que começou a se desenvolver a partir do século XVI, com René Descartes e Galileu se associou aos pensadores de sua época como Francis Bacon e Thomas Hobbes, de modo a se configurar como os primeiros conceitos filosóficos iluministas, que pretendia romper com a prática escravista direta que vinha imperando há milênios na humanidade. Foram recebidos com entusiasmos libertários numa sociedade pré-capitalista que resultaram no positivismo. Tais conceitos cunharam a expressão “pensamento cartesiano” (derivados da obra “Discurso sobre o método” de René Descartes) que tudo pretendia explicar a partir de conceitos da física e da matemática. Tal escola, embora tenha dado contributo crítico ao pensamento religioso e feudal de então, que toldava qualquer iniciativa de avanço do conhecimento científico, provocou uma capitis diminutio do pensamento filosófico, que sem descartar os ganhos do conhecimento científico procura atingir as profundezas do pensamento humanista, e por isso mesmo pode alcançar compreensões sociais inatingíveis pelo pensamento cartesiano que promoveu o racionalismo da idade moderna. Essa é a razão pelas quais hoje se critica a estreiteza do pensamento positivista da escola cartesiana.
O Estado moderno é a face institucional do capitalismo desenvolvido. É instrumento fundamental para a regulamentação da ordem capitalista e que tem no controle monetário as rédeas da manipulação econômica capaz de dar continuidade à exploração capitalista. É incrível se ouvir do líder do PT no governo na Câmara Federal, Deputado José Guimarães, a expressão “precisamos de mais Estado e menos mercado”, como se uma coisa fosse antagônica a outra. A esquerda, por ignorância ou oportunismo, incensa o estado como se fosse a proteção dos indivíduos sociais, quando na verdade é o carcereiro da prisão capitalista. Mas agora o Estado sucumbe juntamente como aquilo a que serve: a exploração capitalista.
A competição como conceito em si não é algo negativo. A competição esportiva, por exemplo, pode ser algo estimulante e útil ao desenvolvimento esportivo (principalmente quando deixar de ser mercadoria). Entretanto, a competição pela busca do dinheiro, móvel da relação social capitalista, opõe os indivíduos sociais uns aos outros de modo a transformá-los em adversários de morte, destruindo os traços de solidariedade que lhe são inerentes.
Não há verdade absoluta, mas a busca da verdade deve ser o pressuposto da emancipação humana.
Um grande abraço e mais uma vez obrigado por ler os meus artigos e dar a sua contribuição sempre auspiciosa. (Dalton Rosado)

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