sábado, 28 de maio de 2016

DALTON ROSADO CRITICA A REFORMA AGRÁRIA PROPOSTA PELO MST: "A TERRA AINDA É ENCARADA COMO MERCADORIA".

Por Dalton Rosado
"A terra não pertence 
ao homem; o homem 
pertence à terra"
(trecho da carta do cacique da tribo 
Seattle ao presidente dos EUA, que 
queria comprar as terras indígenas) 
A terra é um bem do qual tiramos o nosso sustento; ninguém deveria ser dono da terra com direito de propriedade (especialmente a terra agricultável), senão com direito de uso e dentro de um sentido coletivo de habitabilidade e utilidade racional de produção. Sob a lógica mercantil capitalista, contudo, a terra é uma mercadoria sensível, a única que não pode ser reproduzida nem consumida, daí a sua constante valorização especulativa intrínseca.  

Mas, como tudo na lógica mercantil obedece aos seus critérios ditatoriais (e ilógicos do ponto de vista de sua função natural), eis que, agora, contraditoriamente ao que pensam os latifundiários proprietários de terras e os sertanejos delas desprovidos mas desejosos de as possuírem, as terras que não oferecem nível de produtividade compatível com a concorrência de mercado na produção de alimentos estão sendo abandonadas, no Brasil e no mundo. 

No nosso Nordeste, p. ex., é muito comum, quando se adentra o Interior, vermos casas e terras abandonadas; em Cuba também.  

Este breve preâmbulo sobre a natureza da terra e o significado de sua transformação em mercadoria, serve com referencial para avaliarmos o conteúdo do que representa a reforma agrária e, consequentemente, a essência da luta do Movimento dos Sem Terra
Área abandonada em Santa Izabel do Pará.

Começamos por dizer que a reforma agrária, muito diferentemente do que pensam as múmias dos sepulcros caiados da vida, é uma bandeira que se circunscreve no universo da lógica capitalista. Se incomoda aos grandes latifúndios rurais do Brasil, é porque conservam mentalidade feudal. 

E o pior é que, desde os tempos das sesmarias (distribuição de grandes extensões de terras aos latifundiários amigos do reino), eles sempre foram politicamente muito poderosos --como, aliás, acaba de ser demonstrado pela bancada ruralista na votação do impeachment. 

Sob a lógica do capital, as terras rurais e urbanas tendem a se concentrar nas mãos dele mesmo, o capital. Exemplo disso podemos extrair dos EUA que, desde a sua colonização, promoveram um rateio das terras aos colonos irlandeses e europeus, por meio do homestead law act, de 1862. 

Conhecida como a lei de cessão de terras, esta iniciativa do presidente Abraham Lincoln destinava 160 acres (e, depois, 640 acres) a cada colono. Hoje, entretanto, tais terras são objeto de uma cada vez mais acentuada concentração nas mãos das grandes empresas agrícolas americanas, como forma de obtenção de níveis de produtividade exigidos pela concorrência no mercado mundial das commodities agrícolas. 

É importante notarmos que, na vida mercantil, a questão agrícola é relegada a um plano economicamente secundário.
Vital para a humanidade, produção agrícola  é menos lucrativa. 
Podemos deduzir isto, continuando no exemplo estadunidense, do fato de que apenas 3% da sua população economicamente ativa trabalham no setor primário; embora os EUA sejam os maiores produtores de grãos do mundo, isto corresponde a apenas 1,9% (agricultura e pecuária 0,9%; silvicultura 0,8%; pesca 0,2%) do PIB daquele país. 

Como se vê, a produção agrícola, apesar de ser vital para a humanidade, não tem relevância econômica, e esta é uma das razões de ser do aumento da fome no mundo, aliada a outros fatores como o aquecimento global, que provoca a escassez de água e a aridez da terra.    

No Brasil nunca se fez a propalada reforma agrária. Caso a fizéssemos, cairíamos no mesmo resultado estadunidense, em longo prazo: nova concentração da mercadoria terra nas mãos do grande capital por questões de concorrência mercantil. 

Ressalte-se que o abandono de terras inférteis se dá, também, pelo aquecimento global, fruto da emissão de gás carbônico na atmosfera (mais uma irracionalidade da lógica do capital), que diminui a quantidade de água indispensável à vida agrícola, tornando inviável economicamente a produção nessas regiões.  

A questão:
Substituir os latifundiários como donos da terra não resolve
a) não é, pois, fazer a reforma agrária, promotora do parcelamento do solo rural, conservando-se a vida mercantil e promovendo-se a propriedade fundiária nas mãos de colonos, pois estes, ainda que produzissem mercadorias agrícolas sob o modo cooperado, estariam sujeitos à ditadura do mercado (oscilação de preços nacionais e internacionais; dificuldade de financiamentos agrícolas e execução de hipotecas por dívidas; corte de subsídios estatais, agora cada vez mais impossíveis de continuarem existindo; uso de agrotóxicos que aumentam a produtividade e matam as pessoas de câncer, etc.);
b) mas, isto sim, abolir a própria propriedade rural e a produção agrícola destinada ao mercado (produtos agrícolas transformados em mercadorias) e em seu lugar organizar-se uma produção destinada ao abastecimento local e mundial (com a produção excedente em cada lugar sendo doada a quem dela necessita, e recebendo outras de acordo com as necessidades e possibilidades, sem a abjeta troca quantificada pelo dinheiro, que as transforma em mercadorias). 
Os dirigentes do MST, em que pese a sua corajosa e difícil luta contra os recalcitrantes latifundiários brasileiros, não compreendem que, ao invés de combater a lógica tão cara e comum a esses mesmos latifundiários, está tentando ir para o lugar destes.  
Ganância capitalista: alternativa à fome acaba sendo o câncer.

Ou seja, quer ser o dono de terras para produzir mercadorias, o que significa reproduzir as práticas do inimigo que julgam combater, pois pretendem, mutatis mutandis, adotar os mesmos pressupostos mercantis por eles usados.

É evidente que, caso se conseguisse fazer no Brasil uma verdadeira reforma agrária, ainda assim todas as vicissitudes inerentes à lógica mercantil (concentração de terras nas mãos do capital; falência de produtores com baixos níveis de produtividade; excedente sazonal de produção obrigando a incineração de alimentos produzidos; etc.), tornariam a ocorrer, forçando novamente a concentração da propriedade fundiária. Seria mais uma luta que voltaria ao ponto inicial, enfraquecendo e postergando a caminhada dos trabalhadores rurais (e citadinos) em busca da verdadeira emancipação. 

O movimento não deve ser dos sem terra para se tornarem proprietários da terra, mas dos sem terra no sentido de a usarem coletivamente para a produção de alimentos (que não sejam mercadorias), visando ao bem de todos e de acordo com a capacidade e vocação de cada região.  

Assim, consideramos que a reforma agrária, enquanto bandeira capitalista que é, deve ser substituída por outra, cuja consigna deve ser: 
a) a terra não é propriedade de ninguém; e 
b) deve ser usada segundo um critério de produção coletiva, para provimento das necessidades de consumo alimentar de toda a humanidade, sem troca quantificada e de modo ecologicamente sustentável e socialmente justo.
O caminho ora proposto pode ser ainda mais árduo. Mas, quando se trilha um caminho consistente, cedo ou tarde evidenciar-se-á a consistência da caminhada.

Um comentário:

SF disse...

Parabéns aos colunistas e ao Celso por manterem esse blog em tão alto nível.

Quanto ao ideia de a terra ser considerada mercadoria e de a reforma agrária ser uma coisa intrinsecamente capitalista é nova para mim.

E vejo que faz muito sentido!

Valeu Dalton!

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