sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

MEMÓRIA DOS TEMPOS ÁRDUOS

Ao morrer Chael Charles Schreier
Ao procurar no meu primeiro blogue 
uma informação de que necessitava, 
deparei-me com um post que 
já havia esquecido, de novembro 
de 2007. Foi algo que lá deixara 
discretamente, para leitores 
encontrarem adiante.

Mas, oito anos depois, a situação que abordei continua praticamente inalterada. Então, pelos mesmos motivos de então, estou reproduzindo-o aqui, igualmente sem alarde. É, como o intitulei então, 
um registro para a posteridade.
.
Aos 42 anos, certa noite saí de um cinema, fui atravessar a rua e acordei num hospital público, com três fraturas na tíbia, sem sequer lembrar-me do que havia ocorrido.

Durante a lenta recuperação, dei-me conta de que poderia ter morrido naquela noite, insensivelmente. Apenas não despertaria neste mundo. Talvez num outro, talvez em nenhum.

A consciência da nossa mortalidade nos chega assim, de repente. Num instante, nem pensamos nisso, sentindo-nos como se ainda tivéssemos décadas e décadas pela frente. No instante seguinte, cai-nos a ficha de que podemos ser surpreendidos pela morte a qualquer momento.

O já surrado clichê: passei a viver cada dia como se fosse o último, a agir da maneira como gostaria de ser lembrado caso fosse esse meu derradeiro ato.
Presos políticos libertados em troca do embaixador alemão

Devo ter-me tornado um ser humano melhor. Com certeza, mais guerreiro. Deixei de protelar minhas lutas para um amanhã que poderá não chegar.

Há, entretanto, um compromisso que assumi comigo mesmo e não estou tendo condições de cumprir, qual seja o de lançar mais luzes sobre o que aconteceu naquele terrível abril de 1970, quando a VPR foi praticamente desbaratada pela repressão.

Graças a um relatório secreto militar que veio a público e a um historiador honrado (até por ser ele também um ex-combatente), já consegui provar que, em circunstâncias obscuras, uma ou várias pessoas decidiram que eu levaria a culpa, perante a sociedade brasileira e a História, por algo que outra pessoa havia revelado à repressão: a localização da escola de treinamento guerrilheiro da VPR.

Mas, houve também uma seqüência terrível de prisões – as quedas em cascataque eram o pesadelo dos militantes da luta armada – e até agora foi insuficientemente explicada.

Juarez era um militante irrepreensível!
Disso não tentaram jogar a culpa em mim (*), porque seria impossível, estruturalmente, um comandante de Inteligência derrubar daquela forma a Organização no Rio de Janeiro, em São Paulo e no Rio Grande do Sul.

Pelo nosso organograma, eu me reportava aos comandantes das unidades de combate (Juarez Guimarães de Brito e José Ronaldo Tavares de Lira e Silva) e aos comandantes nacionais Ladislau Dowbor e Maria do Carmo Brito. Como nenhum deles caiu por meu intermédio, eu não serviria como bode expiatório.

Uma informação importante: quando o Jacob Gorender colhia depoimentos para escrever o Combate nas Trevas, remanescentes da Organização se reuniram em Lisboa e combinaram entre si as versões que lhe contariam, nas entrevistas que ele já solicitara.

Vai daí que as quedas em cascata da VPR, em abril/1970, foram atribuídas, na edição inicial do Combate nas Trevas, a apontamentos encontrados no aparelho de Juarez Guimarães de Brito.

É UMA INFÂMIA: CANALHAS VIVOS DECIDIRAM TRANSFERIR SUAS CULPAS A UM COMPANHEIRO DE COMPORTAMENTO IRREPREENSÍVEL, QUE MORREU HEROICAMENTE PELA CAUSA!

Como tive a honra de lutar ao lado do Juarez, afirmo que ele era um dos companheiros mais ciosos das regras de segurança. Jamais deixaria qualquer tipo de registro que pudesse comprometer a liberdade e a vida dos outros militantes.

Um dos maiores heróis que a Pátria não reverencia...
Aliás, como não sabíamos onde os outros se escondiam e só os encontrávamos nas ruas, nem haveria maneira de a repressão chegar a alguém a partir de meras anotações.

Àquela altura, nossos pontos já nem eram mais em locais fixos. Combinávamos que, a partir de certo número (o nº 500 da av. Rio Branco, p. ex.), um seguiria para cima e o outro para baixo, dando a volta no quarteirão até que ocorresse o encontro (alvos móveis teriam tempo maior de reação, caso houvesse uma emboscada).

Mais: quando era imperioso anotar essas coordenadas, o fazíamos em código, não explicitamente. “Rio Branco” viraria RB. O nº 500 seria substituído por um código de letras (no meu caso, GEE). O que fosse para cima, grafaria +. E o horário também entraria como letras.

Então, morto alguém, de que serviria para a repressão encontrar um papel em que estivesse escrito SEBE RB GEE +? Como conseguiria descobrir que significava 10h30, na av. Rio Branco, indo para cima a partir do nº 500?

Enfim, os que tinham realmente culpa pelas quedas em cascata imaginaram que poderiam atribuir ao Juarez deslize semelhante ao cometido décadas antes pelo Luiz Carlos Prestes, com suas famosas cadernetas. Enganaram a alguns por algum tempo. Mas, não todos por todo o tempo.
A pior carnificina que o cabo Anselmo preparou

Depois, as mesmas pessoas contaram versões igualmente adulteradas para a Judith Patarra, de forma que os mesmos vilãos foram inocentados e os mesmos inocentes vilificados no livro Iara.

Mais recentemente, tomei conhecimento também de que uma pessoa que teve grande responsabilidade nas quedas de abril/1970 foi submetida a um tribunal revolucionário no Chile, em fevereiro/1971, por não haver se comportado nos porões de maneira compatível com a sua posição na Organização. Por que isso foi tão bem escondido da esquerda e dos historiadores?

Não sei se disporei de oportunidade e meios para tirar esses assuntos a limpo. Mas, tendo ocorrido um complô para falsificar a verdade histórica, iludir historiadores e denegrir revolucionários (atirando-lhes culpas que não tinham), trata-se de algo gravíssimo. Espero que os historiadores de hoje, até por brio profissional, tentem elucidar estes fatos.

Por via das dúvidas, deixo este registro aqui.

É importante, sobretudo, que não pairem quaisquer dúvidas sobre Juarez Guimarães de Brito, um companheiro exemplar, cuja memória não deve jamais ser atingida por (faço questão de repetir) UMA INFÂMIA. De sordidez inqualificável.

* depois de ter escrito este registro, tomei conhecimento de que havia sido, sim, acusado de responsabilidade por "dezenas de quedas", no livro Os Carbonários, de Alfredo Sirkis. Trocamos e-mails e ele renegou o que dissera sobre mim no seu texto original de 1978, informando que já se posicionara melhor, fazendo uma espécie de mea culpa numa edição posterior da obra. Além disso, dispôs-se a incluir doravante minha incisiva refutação deste e de outro absurdo (uma imputação de colaboração com a repressão, totalmente estapafúrdia e sem fonte declarada). Aceitei suas justificativas e dei por encerrada a questão.

2 comentários:

ismar disse...

Amigo Celso,

Este assunto me comove muito e eu acredito totalmente em suas palavras.

Li muito a respeito: o livro do Sirkis, depois Judith Patarra.

Tenho certeza de que tudo que você descreve aqui é verdade.

Eu queria muito ser a pessoa responsável por levar adiante esta pesquisa, porém não sou historiador e conheço muito pouca gente na área.

Montei um quadro num caderno meu com muitas anotações, dúvidas sobre as mentiras e inconcistências encontradas no livro do Sirkis e da Judith, (Sirkis - OS Carbonários foi o livro que emitiu opinião mais sórdida contra sua pessoa).

Pelas minhas pesquisas eu acredito sinceramente que a Maria do Carmo Brito foi a pessoa responsável principal pela queda da área de treinamento da VPR em Registro.=, até pelo posto de comando nacional que ela tinha: registro SÓ CAIU IMEDIATAMENTE APÓS A PRISÃO DELA

E, acredito também em outra coisa muito mais grave: Maria do Carmo Brito foi uma das principais responsáveis pelo desaparecimento de grande parte da fortuna em dólares que foi expropriada dos cofres do Adehmar em 1969 pela Var-Palmar, pois foi ela quem entregou parte da grana para o embaixado da Argélia para que fosse guardada, e foi ela quem recebeu de volta a grana já na Argélia. Este é o ultimo registro desta grana em livros que li onde é citado este assunto (livros: LIA e IARA), depois disso a fortuna some e não se conhece mais o paradeiro.

- QUE FIM LEVOU AQUELA FORTUNA?

- EM 1971 A VPR SOFRENDO INÚMERAS BAIXAS AQUI, PQ A GRANA NÃO FOI USADA PARA SALVAR A VIDA DOS COMPANHEIROS, LEVANDO-OS PARA LONGE DAS GARRAS DO CABO ANSELMO?

- PORQUE NÃO FOI FEITA UMA HONESTA E DIGNA "ATA FINAL DA VPR", DESCREVENDO INCLUSIVE O FIM QUE TEVE TODO O DINHEIRO QUE CUSTOU O ESFORÇO DE VÁRIOS COMPANHEIROS DELA?

- TERÁ SIDO ALI O COMEÇO DOS MENSALÕES E ROUBALHEIRAS QUE DEIXAM PERPLEXOS BRASILEIROS COMO EU QUE PASSARAM A VIDA INTEIRA VOTANDO NA ESQUERNA COMO ÚLTIMA ESPERANÇA DE TORNAR O BRASIL UM PAÍS MEHLOR?

- SE O HÉLIO SIRKIS OU A PRÓPRIA MARIA DO CARMO BRITO SABE O QUE FEITO COM A GRANA, PQ NÃO INFORMAM ISSO?

- PORQUE O SILÊNCIA DA ESQUERDA A RESPEITO DO JULGAMENTO QUE FOI SUBMETIDA MARIA DO CARMO BRITO NO CHILE EM 1971? QUEM PARTICIPOU DAQUELE JULGAMENTO? EXISTE RELATÓRIO SOBRE AS ACUASÕES CONTIDAS CONTRA ELA NESTE JULGAMENTO?

- PARA MIM ESTES DOIS SÃO OS PRINCIPAIS SUSPEITOS....

Tentei encontrar ela por e-mail, achei o e-mil do mário japa que é atualmente o marido dela, enviei uma soliciação de entrevista on line, porém dada a minha insignificância perante este pessoal (não sou historiador e nem pesquisador famoso), nem resposta tive.

Tenho certeza que este assunto vai encontrar um bom historiador pela frente e eu estou disposto a cooperar com minhas humildes pesquisas iniciais.

Te respeito muito pois você foi a única pessoa deste período que se aproximou do gente simples como eu para contar toda a história possível da época, quase todo que aprendi sobre aquele período foi conversando contigo por e-mail.

Por isso meu respeito é imenso por você.

grande abraço.

celsolungaretti disse...

Ismar,

a esquerda acreditou que eu fosse culpado pela queda da escola de guerrilha de Registro quando eu estava preso e não podia apresentar meu lado da História.

Quando saí, a versão falaciosa já tinha sido tão espalhada e martelada que ninguém estava disposto a me ouvir. A grande maioria, por acreditar que fosse verídica. E os que sabiam o que realmente se passara, por considerarem que a verdade era inconveniente.

Só depois de 35 anos pude provar a minha inocência. Espero que um dia seja reconhecido meu mérito de haver passado todo esse tempo sem aceitar acordos podres. Já em meados dos anos 70 poderia ter sido reabilitado se aceitasse me queixar apenas das torturas que sofrera, omitindo que havia levado a culpa por algo que não fizera.

Também me orgulho de, apesar de toda a estigmatização que sofria, ter conseguido levar à vitória a greve de fome dos quatro de Salvador e haver sido um dos raros homens de esquerda a me posicionar na grande imprensa contra a expulsão do Paulo de Tarso Venceslau, uma das maiores infâmias cometidas pelo PT no século passado. Na minha interpretação, foi quando o partido optou por jogar no lixo a moral revolucionária e adotar a moral de conveniência que conduziria a todos os mensalões e petrolões.

Em 2005, Quando finalmente tive nas mãos a prova de que não havia sido eu o causador da queda da área de Registro, refleti sobre se deveria contar toda a história (apontando quem o fora) ou só a parte que mais me afetava, a da minha inocência.

Foi uma decisão difícil, pois tal pessoa me prejudicara imensamente. Mas, conclui que seria indigno transformar-me em seu acusador. Afinal, face às bestialidades a que éramos submetidos no inferno dos porões, eu jamais poderia, em sã consciência, recriminar tal pessoa por não haver resistido. Sempre avaliei como imensamente pior o fato de ela, em liberdade e sem sofrer pressão nenhuma, por mero oportunismo, haver-me deixado carregar sua culpa por 35 anos.

Mesmo assim, dei-lhe a chance de vir finalmente a público reconhecer a verdade. Mas, como enxadrista que sou, levei em conta também os lances futuros. Sabia que, mais dia, menos dia, o gênio sairia da garrafa. E que, se nem mesmo depois da carta do Gorender atestando a minha inocência tal pessoa se pronunciasse, apenas estaria enganando a si mesma, pois a verdade acabaria inevitavelmente vindo à tona.

É o que acontecerá muito em breve, com o lançamento de um livro que esmiúça rigorosamente os acontecimentos de 1970 em Registro, dando o nome aos bois. O autor foi fundo no escarafunchar de arquivos e coleta de testemunhos, o que torna sua obra praticamente irrefutável.

Nada como um dia depois do outro, meu caro Ismar.

É uma pena que, segundo a mentalidade das grandes editoras, você não preenchesse os requisitos para apostarem num livro seu sobre os anos de chumbo. Gostaria de lê-lo.

E, como agora você poderia lançá-lo na internet, por que não o escreve, mesmo assim? Afinal, desde que te conheço, você recolhe informações sobre a luta armada. Dê o uso que você sempre sonhou dar para tudo isso!

Lembre-se do Vitor Nuzzi, que passou também uma eternidade esmiuçando a história do Vandré, apesar das dificuldades que se erguiam contra as biografias não-autorizadas. Escreveu seu livro mesmo assim e fez edição para amigos, com tiragem irrisória.

De repente o STF mudou o enfoque jurídico das biografias não-autorizadas e o livro dele finalmente pôde ser lançado em grande estilo.

Quem sabe se você também não tem um lance de sorte desses?

Um forte abraço!



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