segunda-feira, 23 de novembro de 2015

REDUÇÃO DA POLÍTICA À EXACERBAÇÃO DE ANTAGONISMOS E SATANIZAÇÃO DOS ADVERSÁRIOS SATUROU ARGENTINOS

Por Clóvis Rossi
CRISPAÇÃO CANSOU A ARGENTINA

Não foi exatamente um modelo inteiro que ruiu nas urnas argentinas deste domingo, 22, mas, acima de tudo, a maneira rude de exercê-lo.

Que o modelo não foi inteiramente derrotado prova-o o fato de que seu antagonista, o vencedor Mauricio Macri, empenhou-se durante toda a campanha em jurar que não mexeria nos programas sociais que deram popularidade primeiro a Néstor Kircher e depois à Cristina Kirchner.

Essa fatia do modelo —o esforço de de inclusão social, sincero ou demagógico, a juízo de cada leitor— é um ativo que veio para ficar e não só na Argentina.

No Brasil, por exemplo, não houve, em 2014, e não haverá em 2018 ou depois qualquer candidato, por mais reacionário que seja, capaz de pôr em dúvida a permanência do Bolsa Família, para citar apenas um dos símbolos dos governos do PT, como o foi na Argentina, ainda que com outro nome (Asignación Universal por Hijo).

Macri se beneficiou da rejeição à dinastia Kirchner 
Outros aspectos do modelo, como o excesso de intervenção do Estado, podem ter sido rejeitados nas urnas deste domingo, mas é algo que só dirão as análises sociológicas que o tempo do jornalismo dificulta.

O que, sim, do meu ponto de vista, pode se afirmar com segurança que perdeu foi a maneira imperial de exercer a Presidência, a crispação permanente que Cristina, muito mais que Néstor, impôs ao país.

Produziu um estado de ânimo que só é adequadamente descrito por uma palavra espanhola, hartazgo. Em português, é cansaço, esgotamento, mas hartazgo, ainda mais com o forte acento portenho, soa definitivo.

Constata para El País, p. ex., o intelectual En­ri­que Va­lien­te Noai­lles: "A Ar­gen­ti­na se fartou de si mesma, de viver num ambiente que produz seu próprio monóxido de car­bono".

Reforça Ricardo Kirschbaum, que, como editor-chefe do Clarín, foi um dos alvos permanentes da crispação: "Hoje se acaba um ciclo político que fez do antagonismo sua razão de ser".

Presidência imperial é rejeitada pelos hermanos
Até Daniel Scioli, o candidato (a contragosto) de Cristina, admitiu na antevéspera da votação: "Talvez estejam [os eleitores] irritados com as brigas, mas comigo é diferente. Sou um homem de diálogo, como já demonstrou a minha vida".

É bom ressaltar que outros regimes que se dizem de esquerda na América do Sul, Brasil inclusive, adotaram o mesmo mecanismo de satanizar os adversários, tratando-os como inimigos da pátria.

Pode-se, por extensão, supor que o cansaço dessa confrontação permanente estender-se-á além da Argentina, quando houver eleições.

Aliás, Jorge Fontevecchia, diretor do grupo Perfil, outro alvo da crispação do kirchnerismo, dizia à Folha ainda antes da eleição:
"Creio que vivemos [Brasil e Argentina] ciclos parecidos. Essa mudança aqui [na Argentina] talvez tivesse ocorrido também na última eleição brasileira, caso ocorresse alguns meses depois".
O palpite parece correto: Dilma Rousseff ganhou a eleição com pequena diferença, mas depois dela sua popularidade mergulhou num infernal tobogã.

Como a Argentina, o Brasil parece cansado desse perene nós contra eles / eles contra nós.

4 comentários:

AF Sturt Silva disse...

Uai, e onde está acontecendo diferente? Veja os EUA, Venezuela, Europa. Engraçado um autor que se diz 'filho de 68' culpar o combate político em nome de diálogo (concessão) às classes dominantes, onde a esquerda nunca foi hegemônica, seja na política, seja na sociedade.

Lutero Mendes Santos disse...

Jorge Fontevecchia é o dono da revista Caras. Na Argentina tinha um diário "Perfil" com matérias do mesmo nível da revista Veja. É esta pessoa que foi alvo de "crispações no governo" de Cristina na Argentina.

Se exercesse mesmo o jornalismo não estaria a frente dessa revista Caras, bíblia ilustrada da classe média idiota.

A editora Abril vem transferindo para o controle acionário da Caras as revistas moribundas editadas pela empresa dos Civitas.

O jornalista Luis Nassif pergunta se essas revistas não lucros na Abril por que dariam na Caras. Há cheiro de salvamento dos bens particulares dos acionistas da Abril no caso de quebra geral.

Leio esse blog, Naufrago da Utopia e compreendo que Celso Lungaretti o edita sozinho, ás suas expensas, sem uma retaguarda para suportar uma dezena ou mais de processos em caso de denuncias veementes contra poderosas empresas ou corruptos com projeção pública.

Isto é uma prática corrente dos poderosos para calar os blogs independentes.

Mas nem por isso o editor, Celso Lungaretti, deveria colocar matérias de jornalistas comprometidos com uma mídia que é parceira e que dá sustentação ideológica ao capitalismo o que confunde os leitores do blog.

Quer dizer então, segundo Clóvis Rossi, que foi crispações o fato de Cristina Kirchner ter enfrentado a grande imprensa [El Clarin] e a regulamentado?

Foi crispações então Nestor Kirchner ter enfrentado o sistema financeiro e com base em auditorias ter feito negociações na base "aceitem isso ou nada?".

Ora Celso, como revolucionário que pegou em armas, deveria em seus artigos analisar o desastre que será para a nação argentina reabrir as portas para o neoliberalismo com a vitória de Macri.

Ou então fazer um paralelo do que foi o enfrentamento dos Kirchner frente ao capitalismo e sabujice desses 13 anos do governo petista frente ao mesmo. Seria mais educativo para seus eleitores.

celsolungaretti disse...

Lutero,

exatamente por ser revolucionário de verdade eu não apoio o mero reformismo. Conquistar governos pela via democrático-burguesa e depois tentar fazer pequenas mudanças, sem colocar em xeque a dominação da burguesa, dá nisso: a perda do apoio popular na Argentina e no Brasil, onde só o recurso à politicalha está impedindo a queda de Dilma.

Mas, o essencial já se perdeu: a rejeição à esquerda atingiu os píncaros e necessitaremos de anos e anos para resgatar nossa credibilidade.

Esse modelo ruiu, e já está indo tarde. Temos de voltar a lutar abertamente contra o capitalismo, proclamando que nosso objetivo é derrubá-lo e organizando a sociedade para tanto. Não infiltrarmo-nos nos Poderes e ficarmos praticando esse joguinho indigno de dissimulações.

O "nós contra eles" tem de ser o "nós contra o capitalismo", não o "nós contra rivais eleitorais", como fez a Kirchner e como faz o PT por aqui. Satanizar tucanos e abraçar banqueiros só confunde os explorados. Temos de recuperar a nossa alma.

celsolungaretti disse...

Af, o confronto que temos de travar é a luta intransigente contra o capitalismo, sob a bandeira revolucionária. Não esse joguinho de cena para perpetuar no poder partidos de esquerda aburguesados e domesticados que já desistiram de fazer a revolução, como o PT.

Não é nos palácios do governo que ganharemos a parada, é nas ruas. Quando voltarmos a elas.

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