segunda-feira, 24 de agosto de 2015

DITADORES NÃO MERECEM LÁGRIMAS

No dia 24 de agosto de 1954, aos 72 anos de idade, o presidente Getúlio Dornelles Vargas se matou com um tiro no coração, após uma tensa reunião com seu ministério, quando teve de assumir o compromisso de licenciar-se do cargo.

Suficientemente perspicaz para saber que era apenas uma fórmula para dourar a pílula de seu definitivo afastamento, preferiu uma saída digna. Como os hermanos diriam, ao menos cojones ele tinha...

Sendo os mandatários bananas uma expressiva maioria nestes tristes trópicos, não há como deixarmos de admirar a coragem de Vargas e Allende, embora o segundo tivesse muitos outros méritos e o camaleão gaúcho, quase que apenas o de ter sacrificado a vida para assestar um último golpe nos seus inimigos, a famosa carta-testamento que acabou abortando os planos da UDN para assenhorar-se do poder sem eleição nenhuma.

Na maré autoritária subsequente à 1ª guerra mundial e à aguda crise econômica que varreu o mundo na década de 1920, Vargas topou encabeçar um golpe de estado e tornar-se ditador do Brasil a partir de 1930. Exímio equilibrista, manteve-se no poder durante 15 anos, apoiando-se na esquerda contra a direita e vice-versa, ao sabor das circunstâncias.    

Como um Napoleão Bonaparte em miniatura, ficava no centro e manobrava com as extremas, não hesitando em afundá-las para manter-se à tona. Foi o que fez com os integralistas de Plínio Salgado, apesar das evidentes afinidades ideológicas que tinha com eles.

Suas mais sinceras simpatias, assim como as dos principais militares golpistas de 1930, iam para o fascismo de Mussolini, do qual Vargas copiou descaradamente a legislação trabalhista. E, na repressão aos comunistas depois da fracassada Intentona, deu carta branca ao carrasco Filinto faltou-alguém-em-Nuremberg Muller para desencadear um verdadeiro festival de horrores, trailer do que os militares nos imporiam nos anos de chumbo.

Também como equilibrista, ele optou por fazer o contrário do que gostaria, alinhando o Brasil com os Estados Unidos na 2ª guerra mundial; curvou-se à evidência do fato de que o nosso país era um quintal dos EUA. E usou o limão para fazer limonada, arrancando algumas concessões do grande irmão do Norte e obtendo algumas vantagens econômicas.

Mesmo assim, terminado o conflito, os estadunidenses moveram os fios nos bastidores para que sua ditadura fosse deposta por um espécime raro em nossa fauna: um golpe militar redemocratizador.

Continuou influente, fazendo eleger o poste Eurico Gaspar Dutra para tomar conta da cadeira presidencial e retornando depois ao Palácio do Catete pelo voto popular.

A mágoa com os EUA foi determinante na posição nacionalista-estatista que assumiu desde a campanha presidencial, contando com o apoio aberrante do PCB (algo assim como nossa esquerda apoiar o Médici, caso ele tivesse sido apeado do poder e depois pedisse votos colocando uma pele verde-amarela sobre os pelos escuros de lobo...).

Acabou sendo levado à beira do abismo como consequência de uma lambança do aloprado Gregório Fortunato e do famoso mar de lama no qual seu governo, segundo os opositores, teria se transformado.

O verso do poeta-compositor Peter Sinfield cai como uma luva para ele: "confusão será meu epitáfio".

Teve muitas vezes como aliados aqueles que o destruiriam.

Não passou de um conservador e direitista, cujo fim, paradoxalmente, foi precipitado pelas tramoias dos seus iguais.

Pilotou uma ditadura durante 15 anos e acabou recebendo o golpe fatal das mãos de aspirantes a ditadores.

Massacrou a esquerda e foi velado pela esquerda. 

8 comentários:

Eduardo Rodrigues Vianna disse...

A minha cidade de Jundiaí, perto da capital, tem, ou teve, uma grande tradição operária. Quando Vargas se suicidou, os trabalhadores ocuparam uma tremenda metalúrgica, a extinta Vigorelli, de onde saíam algumas das melhores máquinas de costura do Brasil, com a palavra de ordem que não era palavra de ordem: ELES MATARAM NOSSO PAI! Não seria difícil encontrar, entre os que se ressentiam da morte do "pai" ao ponto de promoverem uma rápida ocupação da fábrica, muitos trabalhadores filiados ao Partido Comunista, forte no sindicalismo operaŕio àquela altura.

A melhor memória que guardo da oposição a Getúlio, aqui comigo, ou antes da independência em relação a Getúlio bem como a qualquer governo, é a de Monteiro Lobato. Recusou-se como se deve àquilo que faz tanta gente "boa" de hoje ficar trêmula das pernas, borrar os fundilhos e afinar a voz: uma boquinha, ou uma bocona, muito bem remunerada, no governo de Getúlio. O presidente exigiu a Lobato que fosse trabalhar para ele, como propagandista. Lobato desprezou com solenidade o "convite", e Getúlio passou a nutrir por ele um ódio pessoal, de maneira que o caso do petróleo fosse apenas um componente da prisão de Lobato, um pretexto. Ao sair do xadrez, Lobato proclamou, aos quatro ventos, que a única atitude digna dos brasileiros em relação a Getúlio seria expulsá-lo do palácio a socos e pontapés. Mas govaza de um prestígio imenso no meio do povo, e não foi preso novamente.

Depois, Lobato desferiu sonora bofetada em Dutra, ridicularizando o que chamou Estado Novíssimo, quando o general encarregou-se de dar a sua fechadinha no regime político. Sofreu intensa perseguição econômica, por parte dos órgãos governamentais, e propriamente ideológica, por parte da poderosa direita católica. E morreu como os verdadeiros homens, que não se dobram para obter vantagens. Escreveu, certa vez, que as pessoas íntegras podem se dobrar, ou podem entregar os pontos, porque estão cansadas, porque estão fragilizadas, porque estão sem esperanças, ou porque padecem algum temor genuíno, pois homem que é homem é aquele que tem todos os sentimentos de um homem. Mas nunca para obter vantagens! "A nossa gente se vende barato demais." Que coisas extraordinárias a serem ditas a uma criança!

Na atualidade, alguns dos que pretendem até agora censurar Lobato, acusando-o de ser o autor de uma obra racista (alguns, não todos!), como aquele inqualificável Paulo Henrique Amorim, são justamente os tipinhos, os pequenininhos, que vão para o lado que paga. E falam em nome da dignidade humana.

celsolungaretti disse...

Meu pai também chorou. Assim como milhões choraram por Stalin e outros tantos chorariam por Mussolini e Hitler, se tivessem morrido alguns anos antes.

Daí eu não aliviar para ditador nenhum; sei que é uma erva daninha que precisa ser arrancada periodicamente do coração das pessoas.

Eduardo Rodrigues Vianna disse...

Sim. Mas a figura de Dutra merece atenção: era realmente um "poste" plantado ali para disputar as eleições, pois nada tinha de mobilizador, nem nada que o distinguisse como político além da sua franca oposição à proximidade do Brasil com os Aliados. Mas foi ele quem desferiu, ali trabalhando dia e noite com Getúlio, o golpe do Estado Novo: foi um artífice a serviço de Vargas, como Góis Monteiro. Se Felinto Muller era o prócer dos porões de 64 em diante, Dutra era o seu superior, encarregado que estava de chefiar a repressão política, marechal em defesa da "família cristã" conforme apregoava, com o espírito de Caxias.

Também aqui a figura de Monteiro Lobato é do maior interesse, e eu sempre quero me referir a ela. Nas eleições, a após o fim do "Primeiro Getúlio", a UDN tinha um candidato sem muita expressão, que assumiria interinamente a Presidência após o suicídio de Vargas, e o PC, nunca entendi o motivo disto, saiu-se com o fraquíssimo Iedo Fiúza, que nem militante do partido era. Mas Prestes havia tido longas discussões com Lobato, exortando o escritor a se filiar ao PC, pensado nas eleições. É muito provável que Lobato tivesse sido o candidato a presidente se quisesse, certamente com chances de se eleger. Não quis, mas foi trabalhar numa editora pequena, empresa conduzida por gente do PC, para publicar o Zé Brasil.

Lobato podia ter levado uma vida de rei como propagandista de Getúlio, e não quis. Podia ter chegado à Presidência da República se se filiasse ao PC e as aspirações de Prestes se concretizassem, e não quis, os olhos dele não brilharam. Mas encontrou uns tipos interesses, cuja amizade foi viabilizada em grande parte pelo Caio Prado Jr., numa editora pequena, de militantes, "gente como a gente", que queria alguém da estatura dele para fazer propaganda pela reforma agrária, sem fortuna e sem poder politico envolvidos, sem jogada nenhuma. Aí, ele quis!

Penso que Lobato é a grande figura desse período ainda que nunca tenha pretendido isto em termos políticos. Educador popular, a quem Anísio Teixeira apontava como o seu mentor intelectual, avesso a tudo que é ditadura, e avesso também a tudo que cheire a oportunismo.

celsolungaretti disse...

Eu não conhecia tão bem a história do Lobato, mas sabia que nunca se curvara à ditadura e fora preso por isto. E que ele sinceramente acreditou que extrair petróleo do solo brasileiro seria um passo na direção de nossa independência econômica. Se tivesse visto no que a Petrobrás se transformou, choraria lágrimas de sangue!

Quanto à sua literatura infanto-juvenil, que li inteirinha, consegue, magnificamente, colocar a visão de mundo da esquerda ao alcance da compreensão dos pequenos. Fez-me prezar as grandes mentes criativas e desprezar os meros ganhadores de dinheiro. É anticapitalista em essência e, claro, igualitária e humanista.

Daí eu ter soltado todos os meus cachorros retóricos contra os cricris pedantes que tentaram censurar a sua obra, sem se darem conta da própria insignificância e da grandeza inalcançável (para eles) de Lobato.

É o mesmo tipo de gente que hoje garante que não diria um pio sob tortura, mas que, percebemos claramente, não aguentaria uma hora do que os milicos nos infligiram por semanas e meses.

Eduardo Rodrigues Vianna disse...

E existe isto de interessante em relação à linha política que Lobato seguia. Muito se especulou quanto a este assunto (desinformados há na atualidade que o classificam como um "fascista"); foi muito acusado ainda em vida de pertencer secretamente ao Partido Comunista, especialmente pela direita católica, a qual fugia dele como o Cão foge de água benta. Mas tratava-se, realmente, de um georgista. O georgismo foi um pensamento social desenvolvido de um modo bem peculiar, reformista, concebido, ou muito incrementado, pelo economista norte-americano Henry George, no fim do séc. XIX.

Consistiria na realização de uma reforma agrária permanente, capaz de sempre experimentar novas estruturas e meios de trabalho, em consonância com a ideia de que o campo e a cidade devem ter a produção orientada para a inovação tecnológica de um modo pensado, estudado. As demandas sociais e tecnológicas seriam pagas com a implementação de um imposto único, sobre a terra, para concentrar um planejamento econômico flexível sobre a produção de alimentos e demais "commodities" provenientes do campo. Haveria pois a implementação de um imposto apenas, para todos os cidadãos, mínimo para os trabalhadores de um modo geral, e maior para os produtores rurais -- e crescentemente maior para quem possuísse terras, conforme o campo fosse se mecanizando, e o volume de dinheiro crescesse. Os recursos naturais, petróleo e ferro no caso do Brasil, seriam, quanto à produção e os negócios, um meio de vender matéria prima no mercado internacional, mas de um modo secundário, uma receitazinha a mais, pois a ideia era transformar o petróleo e o ferro nos bilhetes de entrada a uma sociedade baseada em alta tecnologia, produtora de alta tecnologia, para dentro do país, para o enriquecimento do povo.

Outros georgistas proeminentes foram o Mahatma Gandhi, e Leon Tolstói, o maior deles. Um dia desses, tive o desprazer indescritível de topar com um jovem burocrata, e não existe nada pior que um jovem burocrata, desses que valem o quanto pesam e nada mais, dirigente do PC do B, dizendo as maiores idiotices a respeito de Lobato: um desses que fazem política a peso de ouro, comprometidos, porque gostam e querem, com a filosofia de Sancho Panza. É preciso agradar a claque, cada vez mais numerosa, e portanto não pode restar ao nosso meninão qualquer outra coisa além de classificar Lobato como racista, elitista, misógino, homofóbico, a conversinha de sempre. Ele mesmo, o burocratinha, é sincero quanto ao seu posicionamento? Não sei, não faz diferença.

Ninguém tem mais razão que Monteiro Lobato quanto a este aspecto da paupérrima espiritualidade que prevaleceu no Brasil: "Quem mal lê, mal ouve, mal fala, mal vê".

celsolungaretti disse...

Eduardo,

outra constante no Lobato é a admiração pela Grécia antiga.Percebia-se que ele sonhava com uma volta ao passado em que a comunidade discutia seus problemas em praça pública e os decidia pelo voto.

E por que não? Se chegarmos a um mundo sem classes, sem nacionalidades, sem fronteiras e sem Estado, a comunidade poderá mesmo reger a si própria.

Abs.

Eduardo Rodrigues Vianna disse...

De fato, Celsão!

O grego Péricles, na opinião de Lobato, falando com frequência pela boca da Dona Benta, devia ser uma fonte permanente de estudos para os políticos do séc. XX, assim como Lincoln, e também Jesus!

Em 1948, ano da morte, os jornalões de São Paulo convidaram-no a uma entrevista coletiva, que não foi publicada por nenhum, em que Lobato expunha a sua atualíssima visão sobre a geopolítica. Ele entendia que o império EUA havia de receber morte tão honrosa quanto a do império Grã Bretanha -- morte honrosa, em sendo pela mão de alguém como Gandhi, com a Independência da Índia.

Ele propunha que o pensamento mais progressista criasse todo um repertório para o período após a queda dos EUA, ao que chamou Socialismo Universal, assim com maiúscula, com muita influência da União Soviética segundo um pensamento previsível naquela época, mas mediante um renascimento para o mundo inteiro, coisa nova, em que as regiões e os continentes encontrassem por conta própria os seus rumos econômicos e sociais, com ou sem a opção por um governo mundial. Lamentou demais o fato de Einstein ter desdenhado o convite para candidatar-se à presidência de Israel.

Defendia, então, o que entendemos hoje como a instauração de uma ordem multipolar, para além da sociedade imperial que identificou e combateu.

Celso, meu velho. Você pode imaginar as dores no fígado que a conversa sobre Moteiro Lobato causou-me nos últimos anos. Pessoas romperam relações comigo (sou um "conservador" na opinião de muitas), após me dizerem que Lobato era alguém odiosamente empenhado em escrever livros para a grandeza do capital e pelo apequenamento do povo, e serem confrontadas com esta pergunta tão singela: "Vem cá, quantos livros dele você leu, para dizer com tanta autoridade que têm esse ou aquele conteúdo?"

Uma companheira a quem amo, com quem tenho um filho, adquiriu a opinião de que o povo brasileiro está se assumindo, e gostando muitíssimo de se assumir, como um amontoado de gente sem seriedade nenhuma em relação a assunto nenhum, orgulhoso da mediocridade, imensamente preguiçoso quanto a pensar com cérebro próprio. Ela se refere, por exemplo, a muitos estudantes universitários a quem conhecemos, cujo completo desleixo e o invencível desprezo pela leitura não merecem ser relevados segundo entende. São vítimas de muita coisa, observa, e são mesmo, mas quão confortável é a posição da vítima contumaz, vítima permanente, vítima de tudo! E eu, é uma pena, concordo com ela de modo integral.

Eduardo Rodrigues Vianna disse...

Perdão, Celso, não posso deixar de fazer mais este comentário se você me permite, sem a vontade de aborrecer alguém com tão comprida sequência de comentários.

É sobre a figura humana mais impressionante que existe na obra infanto-juvenil de Lobato em minha opinião. Trata-se de um sábio da espiritualidade brasileira, conhecedor do mundo visível e do invisível, chamado Tio Barnabé, verdadeiro PRETO VELHO, legítimo, doutíssimo em sua condição de xamã porque tratava-se disto em grande medida.

O autor dispensava a Tio Barnabé e Tia Anastácia um tratamento muito semelhante ao que os umbandistas dispensam aos pretos velhos e pretas velhas, a começar pelos títulos "Tio" e "Tia". Comunicou-se, segundo disse para todos ouvirem e sem temer uma opinião preconceituosa, taxativa ou irônica, com o espírito da preta velha Anastácia, que existira realmente, havendo sido a sua babá.

Pois um dos melhores livros com um conteúdo metafísico que alguém pode ler é "O Saci". O Tio Barnabé vê-se às voltas com as travessuras do Saci, e Pedrinho, a quem Teseu em pessoa classificou como um herói, decide capturar o nosso gênio, porque o Saci de Lobato é mais eloquente e mais belo que qualquer gênio da literatura árabe. E consegue, em meio a uma situação em que Tio Barnabé e o Saci abrem-lhe as portas do mundo grande das assombrações, das luzes estranhas que dão medo mas impelem à frente, da mata brasileira e sua noite repleta de sonho, da imortalidade, do mistério da vida.

Em passagens da obra infanto-juvenil, como em "A Reforma da Natureza", o termo "preto velho" aparece em itálico, para que todos saibam muito bem sabido que Barnabé significa a entidade principal da mais expressiva religião propriamente brasileira, a Umbanda. E como Lobato foi perseguido pela direita da época, ao introduzir as pobres criancinhas em mandingas de pretos africanos, por causa de "O Saci".

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