sexta-feira, 10 de outubro de 2014

O PT ESQUECEU AS LIÇÕES DO VELHO BARBUDO E PODE NÃO PASSAR DE ANO...

Várias vezes já bati na tecla de que os companheiros do PT parecem ter esquecido tudo que aprenderam no início da caminhada, quando a familiaridade com os clássicos do marxismo era, praticamente, uma condição sine qua non para a militância esquerdista.

Isto é algo que não consigo engolir, em termos não apenas racionais, mas também emocionais.

P. ex., continuo encarando a prosperidade escandalosa dos bancos como sintoma do fenômeno que Lênin dissecou em Imperialismo, a fase superior do capitalismo; o predomínio da oligarquia financeira sobre os setores produtivos caracterizava, segundo ele, a passagem do capitalismo para seu estágio terminal, "parasitário, ou em estado de decomposição". 

Então jamais me passou pela garganta estar vendo, desde 2003, o Bradesco e o Itaú a anunciarem mês a mês seus maiores lucros líquidos de todos os tempos. Soou, aliás, anedótico o PT tentar associar Marina Silva aos bancos por meio de uma falsidade (herdeira nunca foi sinônimo de banqueira) quando jamais os interesses dos ditos cujos estiveram tão bem servidos quanto nos três governos petistas.

O MENSALÃO E O PROPINODUTO

Desde os idos de 2005, quando surgiram as primeiras denúncias do mensalão, nunca deixei de pensar com meus botões na velha polêmica entre os utilitaristas e os dialéticos. 

Os primeiros, acreditando que os fins justificassem os meios. Os segundos, contrapondo que há uma interação entre ambos, de forma que quem adota meios sórdidos para atingir um fim teoricamente nobre, acaba tornando sórdido também o seu grande objetivo.

Exemplificando: Stalin matava sistematicamente em nome do socialismo, mas seu socialismo, com isto, deixou de ser o descrito por Marx (a penúltima etapa da marcha para o comunismo), tornando-se, isto sim, genocida e totalitário. A quantidade de sangue derramado determinava uma mudança na qualidade do regime que se construía.

Então, nunca duvidando de que os petistas recorreram às práticas nauseabundas da política brasileira para garantirem a governabilidade e não para proveito pessoal, ainda assim eu via como uma heresia o que fizeram. 

1988: O OVO DA SERPENTE.

O digno Paulo de Tarso Venceslau...
Aliás, orgulho-me muito de haver sido um dos poucos que, em 1988, tentaram evitar o pior, assumindo publicamente a posição correta quando o dilema entre os princípios elevados e a politicalha rasteira pela primeira vez foi colocado dramaticamente para o partido.

Tratou-se de um momento de decisão. Seu péssimo desfecho escancarou as portas para os mensalões e propinodutos que adiante destruiriam a imagem de superioridade moral do PT. Vale a pena lembrar como isto aconteceu.

Ex-militante do movimento universitário e antigo combatente da ALN, o economista Paulo de Tarso Venceslau foi a única voz no partido a se rebelar contra o primeiro grande esquema de desvio de recursos públicos para financiamento partidário, por meio de uma firma chamada CPEM - Consultoria para Empresas e Municípios.

Tendo sido secretário das finanças de duas prefeituras petistas no interior paulista, em ambas ele resistira às pressões, seja para contratar a CPEM, seja para pagar-lhe valores superestimados pelos serviços prestados, acabando por ser exonerado da última delas, a de São José dos Campos.

Depois de dois anos de denúncias infrutíferas aos dirigentes máximos do PT, Venceslau tornou público o favorecimento escuso à CEPM em corajosa entrevista ao Jornal da Tarde.

...e o inqualificável Teixeira.
Como resposta ao escândalo, o partido submeteu o assunto a uma Comissão de Ética presidida por Hélio Bicudo, cuja salomônica decisão foi a de que Venceslau deveria ser expulso por haver vazado um assunto interno para a imprensa burguesa; e o empresário Roberto Teixeira, da CPEM, por ter pilotado um mais do que evidente (e evidenciado no relatório final da Comissão) esquema de corrupção, bem ao estilo daqueles que depois celebrizariam Marcos Valério e Paulo Roberto Costa. 

O Lula, que Venceslau apontou como responsável pela montagem de tal esquema e maior beneficiário (seria graças a tal dinheiro sujo que sua tendência teria mantido a supremacia no partido), ameaçou sair do PT juntamente com Teixeira --que, além de tudo, era seu compadre e lhe fornecia um apartamento de cobertura em São Bernardo para morar de graça.

Face ao risco de o partido perder sua maior estrela, a direção estadual decidiu desconsiderar o parecer da Comissão de Ética, expulsando somente Venceslau. Foi o instante em que se assumiu como um partido igual aos outros, capaz até de sacrificar um militante honesto (e revolucionário!!!) para preservar uma maçã podre. 

Segundo Venceslau, o tal Teixeira havia sido, inclusive, "torturador do delegado Fleury". E em 2006, quando era advogado da Brasil Telecom e foi convocado para depor na CPI dos Bingos, admitiu "conhecer" Daniel Dantas, dizendo-se impedido de dar mais detalhes por haver cláusula de confidencialidade

Ao contrário do que os petistas querem nos fazer crer, no caso deles o  ovo da serpente  não foi o mensalão mineiro, mas sim as maracutaias da CPEM. E eu cantei a bola de que as consequências do precedente então aberto seriam terríveis. Foram. Há nove anos corroem as entranhas do PT.

A NOVA CLASSE MÉDIA E OS GROTÕES

Dilma Rousseff, à luz da tradição marxista, viajou feio na maionese ao enaltecer recentemente a criação de uma nova classe média nos governos petistas. Afora ser extremamente discutível a pretensão de que cidadãos com renda mensal a partir de R$ 291 já pertençam à dita cuja, Marx jamais aplaudiria o inchaço dos estratos intermediários entre a burguesia e o proletariado, até por tenderem a quase sempre alinharem-se com os exploradores (que almejam ser) contra os explorados (dos quais tentam, a todo custo, se distanciarem). 

É o que talvez aconteça agora: os que tiveram uma pequena melhora de vida nos dois primeiros governos petistas parecem estar migrando para o lado adversário por quererem mais, sem que Dilma os tenha conseguido atender. 

De resto, o velho barbudo sonhava é com a extinção das classes, fronteiras e todas as barreiras artificiais antepostas à realização universal e plena dos seres humanos no reino da liberdade, para além da necessidade.

Finalmente, se os grãos petistas falam com sinceridade ao regozijarem-se pelo bom desempenho eleitoral nas regiões menos pujantes do País, esqueceram o que, para Marx, era um chamado óbvio ululante: sob o capitalismo, são os polos economicamente mais avançados que determinam para onde toda a sociedade irá, e não o contrário. Quanto mais próximo o PT estiver dos grotões, mais estará se aproximando da irrelevância. Não é pra rir, é pra chorar.

9 comentários:

Anônimo disse...

de João Brandão, um petista desmotivado: Essas práticas do PT vem de longe antes mesmo de Lula chegar ao poder.

Quando Pallocci era prefeito de Ribeirão Preto houve um caso escandoloso. Uns dos itens de uma uma concorrência para merenda escolar era o ganhador fornecer molho de tomate com ervilha. Só tinha um fabricante de tal produto. A concorrência foi anulada. Era evidente à justiça o direcionamento da concorrência. E não é que Pallocci vai ser ministro e se não faz as tramóias conhecidas seria o candidato do Pt à presidência e poderia estar no lugar de Dilma.

Outro caso: o Sindicato dos bancários de São paulo criou uma cooperativa para fazer apartamentos. Muitos projetos ficaram no esqueletos do prédios com prejúiso a centenas ou milhares de bancários que receberam os imóveis. Houve desvios de verbas para o partido [foi a finalidade da cooperativa].Não se sabe por que os responsa´veis não estão presos. Um deles o Sr. João Vaccari foi "nomeado" por Lula tesoureiro do PT. Está envolvido nas propinas da Petrobras.

Um crime esquecido e pouco percebido: quando instituido o crédito consignado com desconto na folha do aposentado era cobrado uma taxa de 3,5% a título de cadastro. Cadastro do quê, se não havia risco? Quando Lula vai disputar a reeleição em julho/2005 a taxa é abolida. Entretanto o montante emprestado pelos bancos e financeiras até julho/2005 e descontado em folha do INSS era R$ 12/14 bilhões. Essa porcentagem de 3,5% foi pedaços de pão tirado da boca dos necessitados. É claro que parte da taxa foi repassada ao partido.

Política do governo federal com os empregados de suas estatais: O que diferencia um empregado do Bradesco/Itau com os empregados do Banco do Brasil e Caixa é que nos últimos não ocorre a demissão imotivada.

Quanto ao mais é tudo idêntico: cobrança de metas absurdas, assédio moral, salários baixos. Inflexibilidade nas negociações salariais. Hoje o salário inical do Banco do Brasil está perto dos bancos particulares.

Correios: uma vergonha o que ganham os carteiros. Lula/Dilma entregou a empresa a aliados corruptos. O serviço é uma droga. Tentem postar um carta ou uma pequena encomenda nas lojas franqueadas do Correio. No Haiti devem prestar melhor serviço.

Pisos salariais das campeãs nacionais: Entrem no google e vejam os pisos salariais do trabalhadores das usinas de álcool, frigoríficos, supermercados: apenas algumas dezenas de reais acima do salário mínimo. E para esses grandes grupos, "as campeãs nacionais" bilhões de reais emprestados a perder de vista pelo BNDES sem nenhuma contrapartida nas melhores dos trabalhadores.

Não fiquemos surpreendidos com a votação que o partido teve principalmente em São Paulo. Se Aécio vencer o principal culpado já sabemos quem é: o próprio PT

Eduardo Rodrigues Vianna disse...

Conheço a obra de Lênin. Se, por um lado, continua válida como referência, obrigatória em mais de um sentido, deve ser tomada com muita crítica, para assimilarmos somente o que deve ser assimilado. Lênin, e não Stálin, conduziu a dissolução da primeira Assembleia Constituinte porque o seu partido havia perdido algumas votações (sobre liberdade de imprensa, entre outras), já sem a desculpa da perseguição da polícia czarista, sempre usada para justificar as linhas mais autoritárias assumidas pelo Partido, a "direção natural" do povo, como se pudesse existir uma linha política "naturalmente" justa. A saída, tão fantasiosa quanto eficiente do ponto de vista propagandístico, encontrada por Lênin, foi culpar o distante social-democrata alemão Karl Kautsky dos "desvios liberais" de que a revolução vinha padecendo, e assim o regime soviético fechou-se, de fato, pela primeira vez.

Trótski, e não Stálin, exigiu a certa a altura a militarização do trabalho nas fábricas, isto é, que os operários trabalhassem vigiados por policiais armados, e tanto Lênin como Trótski levaram adiante o massacre dos marinheiros de Kronstadt quando estes manifestaram uma séria divergência com a "direção natural", uma questão até muito prosaica sobre abastecimento, com direito a um boçal Leon Trótski ridicularizando-os porque "se penteavam como americanos". Stálin não despencou de alguma árvore e deve, desde que conheçamos a história da URSS, ser inocentado de muita coisa, embora tenha cometido crimes: todos eles cometeram-nos, e ainda assim defendemos e reivindicamos revolução soviética.

Quanto ao PT, tenho para mim que não basta encontrar no caso tão corretamente lembrado por você, que passou-se em 1988, a fonte de tudo que é mensalão e petrolão nos dias atuais, mas nas relações a dinheiro que o PT SEMPRE estabeleceu nos sindicatos, e dentro do próprio partido. Por este motivo, tão evidente desde há muito e muito tempo, eu mesmo nunca fui do PT.

Por fim, lembro-me daquela hilariante argumentação do José Genuíno, de que a riqueza crescente dos banqueiros sob o governo Lula era equiparável à instauração da Nova Política Econômica, NEP, na Rússia revolucionária. Lênin teria sido igualmente amigo dos banqueiros, segundo Genoíno. Veremos, a seguir, a crise francamente avassaladora que se abaterá sobre o PT se de fato perderem as eleições. Muita coisa leva a crer que perderão, e que a política do Brasil, durante um período, se tornará ainda mais reacionária, tal como já se vê em São Paulo. São palavras de Lênin, das que podemos e devemos assimilar: "Não tem direito à vitória aquele não for capaz de defendê-la", ainda que ele mesmo tenha defendido a sua vitória por meios que não temos motivo para aplaudir.

celsolungaretti disse...

Eduardo,

a URSS estava com a economia em frangalhos depois da I Guerra Mundial e da revolução, sob ataques de 14 exércitos estrangeiros e dos reacionários internos.

A nascente república soviética só não foi destruída porque os invasores não atuavam de forma coordenada, permitindo que Trotsky, pelas vias férreas, deslocasse seus efetivos, bem inferiores, para os palcos onde eles se faziam mais necessárias em cada momento.

Então, por mais que nos choquem as medidas autoritárias ordenadas por ele e Lênin, ambos tinham a atenuante de que agiam numa situação crítica.

Já o carniceiro Stalin fez da União Soviética um país sob estado de sítio permanente, tornando corriqueiras as medidas excepcionais.

Não há comparação possível entre os líderes da revolução e o seu coveiro.

Eduardo Rodrigues Vianna disse...

Celso, a revolução russa não teve um coveiro — Stálin não cumpriu esse papel, como querem alguns, nem Krushov, como querem outros, e nem Gorbachov como querem todos.

Os problemas mais graves da URSS têm a sua gênese em outro momento, anterior ao chamado stalinismo, e se trata da relação entre a república soviética e o capital: enquanto os bolcheviques dissolviam a Constituinte e criminalizavam os primeiros dissidentes da linha justa, taylorizavam as fábricas, em nome de um resoluto "americanismo comunista" segundo palavras de Lênin. "Americanizar" o trabalho foi o melhor a fazer? Provavelmente sim, mas desde um primeiro momento a obediência ao Partido/Estado tornou-se a norma. Quando Stálin venceu a disputa, muito depois, o lema "PRIMEIRO, O PARTIDO" já estava pintado nas paredes das fábricas. O primeiro partido comunista declarado ilegal dentro do que veio a ser a União Soviética foi o oriental Partido da Liberdade (sigla: ERK), no final de 1920, e a primeira campanha de calúnias contra um adversário de esquerda foi levada a cabo contra o revolucionário ucraniano Nestor Makhno, que venceu os fascistas brancos na Ucrânia, e que também tinha o penteado questionado por Trótski. Esse Trótski prestava-se a um papel tão ridículo apontado os penteados e os modos pessoais dos outros, que sinceramente não pude deixar de me lembrar dele aos ler aqueles apelidos tão irritantes postos em Marina Silva um dia desses.

E adversidade por adversidade, as tarefas mais árduas da sobrevivente URSS couberam sem dúvida nenhuma à direção de Stálin. Se a Rússia estava em frangalhos antes, permaneceu isolada e pobre durante um longo período, devendo os trabalhadores soviéticos comer o pão que o diabo amassou para desenvolver as forças produtivas e os meios para a integração nacional no imenso território russo, e foi exatamente o que fizeram. Debaixo de ditadura? Sim, desde 1918, e, se as adversidades a justificam, então não faz sentido dizer isso ou aquilo a respeito de Stálin. Por sua vez, Trótski animava a IV Internacional, quebrada em aproximadamente 60 pedaços até hoje, um pedacinho mais revolucionário que o outro (é extraordinário como se odeiam entre si), embora totalmente incapazes de cumprirem uma simples "tarefa tática", que seria a de disputarem as eleições como gente grande no Brasil do séc. XXI.

Em minha opinião, há apenas três coisas que podemos e devemos assimilar do marxismo-leninismo. Primeiro, a organização dos trabalhadores e do povo deve se originar e crescer para estabelecer um poder político de novo tipo, que tem o Estado como centro, até mesmo como um mediador. Segundo, as grandes lutas dão-se nos terrenos econômico, político, científico, artístico e militar, de maneira que é preciso ter gente dedicada a cada uma dessas áreas de atuação de modo integral, profissional. Terceiro, as forças produtivas são o centro do mundo real, e somente prevalecerá o socialismo, muitos anos à frente, quando nascerem e prevalecerem as forças produtivas adequadas. O resto, todo o resto, e eu incluo aí o trotskismo, desmoronou há bastante tempo.

celsolungaretti disse...

Eduardo,

o projeto bolchevique começou a fazer água no instante em que não ocorreram as revoluções nos países mais avançados, começando pela Alemanha.

Lembre-se que às vésperas da tomada de poder houve uma discussão dramática sobre se VALERIA A PENA o fazerem num país economicamente tão atrasado, sem os requisitos mínimos para o socialismo.

Venceu a posição de que a primeira revolução seria o estopim de outras e a cooperação com outras nações revolucionárias tornaria menos titânica a tarefa de modernizar a Rússia.

Stálin não foi culpado de a URSS ter ficado sozinha e ser obrigada a se virar como pôde. Mas, sem dúvida, um quadro realmente imbuído do espírito de 1917 não erigiria uma DESVANTAGEM TRANSITÓRIA (o isolamento revolucionário) em DESVIO PERMANENTE.

Tudo que deveria durar pouco (a burocratização, a hipertrofia do Estado, o totalitarismo, o terror, a satelização dos movimentos revolucionários de outros países e seu avassalamento aos interesses mesquinhos da URSS) eternizou-se e radicalizou-se muito além do que seria realmente necessário para garantir-se a sobrevivência da "pátria do socialismo".

Stalin, que Isaac Deutscher magnificamente definiu como um híbrido ideológico dos ideais socialistas avançados com a barbárie da Santa Mãe Rússia e o arcabouço religioso da igreja ortodoxa (o tirano fora seminarista), exacerbou ao máximo as piores características do regime, ordenando, p. ex., a liquidação da velha guarda nos infames julgamentos de Moscou, apenas em função de suas paranoias e por saber-se inferior aos Kamenevs, Zinovievs e Bukharins que, em qualquer reviravolta do destino, poderia sucedê-lo no poder.

Ou seja, sem Stalin teria existido o socialismo num só país, mas certamente não seria tão bestial, genocida, ritualístico e sinistro como foi. Ninguém melhor do que ele para personificar, se não o fracasso, pelo menos os aspectos mais odiosos que a revolução soviética assumiu à medida que se desvirtuava.

Eduardo Rodrigues Vianna disse...

Até aí, ninguém pode dizer o que teria ocorrido sem Stálin, nem o que teria se passado se Lênin tivesse vivido até, digamos, 1940. Conjecturas, e nada mais.

E é certo que os infames processos de Moscou não caíram do espaço: foram precedidos pelo infame processo de Kronstadt e pelo infame processo ucraniano, como sabemos. Eu também poderia citar o infame processo de Mir Galiev, sobre o longo conchavo do governo soviético contra uma parte importante da esquerda no que veio a se tornar mais tarde o Oriente Soviético, sempre em nome da SEGURANÇA NACIONAL (pois é...) e da santidade dos bolcheviques; é um daqueles assuntos que a esquerda, mais revolucionária ou menos revolucionária, sempre preferiu ignorar.

E o fato de o tirano haver sido seminarista tem tão pouca importância quanto o fato de Tróstski ter sido filho da pequena-burguesia judaica. O próprio Trótski, racista como convinha a um bom aristocrata europeu daquela época, chegou a "pardoar" a Stálin as suas características "orientais", um "quase mongol" segundo as piadinhas extremamente toscas que fazia circular contra o então adversário ("o que se poderia esperar de um asiático?", gostava ele de perguntar em público), sem que isto explique coisa alguma sobre Stálin, embora diga muito a respeito de Trótski.

E, é claro, se pelo menos UMA das numerosas teses originais da tal IV Internacional tivesse se confirmado, por exemplo a afirmação de que as forças produtivas do capitalismo morreram durante a década de 1930 (hein?!?!?), haveria o que conversar a respeito do trotskismo. Mas não: os trotskistas foram a maioria numa revolução latino-americana, a boliviana de 1952, de tal maneira que a COB sob direção trotskista emprestasse armas ao Exército Bolíviano, e eram tão superiores a Stálin que conseguiram perder a revolução!

Mas tenho isto aqui a dizer sobre Lênin. Se alguém aqui fosse realmente leninista, isto é, trabalhasse como Lênin trabalhava, a primiera coisa que faríamos seria construir alguma coisa muito original e nova, de acordo com a realidade mundial, as condições locais e a etapa da cultura em que realmente se vive -- alguma coisa um bocado diferente, portanto, de qualquer partido bolchevique. Lênin passou a vida fazendo isso embora as condições fossem muito desfavoráveis, ao ponto de a revolução ser um sucesso por um lado, e um fracasso por outro.

(Quanto a mim, como eu disse em outra oportunidade, minha pequenina contribuição consiste em trabalhar sobre a construção de certas plataformas educacionais, que serão utilizadas no futuro. Não sou nenhum líder político, felizmente.)

celsolungaretti disse...

Eduardo,

você precisaria ler mais sobre os processos de Moscou, inclusive a obra-prima de Arthur Koestler, O ZERO E O INFINITO. Pela forma como foram montados, com os acusados sendo torturados implacavelmente até se submeterem aos papéis mais vexatórios, e pela importância histórica dos réus, são a culminância da degradação da Justiça na URSS. NADA se lhes compara.

Quanto ao fato de Stalin ter sido seminarista, a análise perfeita de Koestler infere que ele continuou mantendo uma mentalidade, postura e estilo sacerdotais pelo resto da vida. A RÚSSIA DEPOIS DE STALIN, no qual ele desenvolve esta tese, é uma obra-prima.

Temo que nestes assuntos não haja convergência possível de nossas posições. Talvez seja melhor pararmos por aqui, antes que o passado distante crie incompatibilidades que, afinal, não têm muito a ver com nosso presente.

Eduardo Rodrigues Vianna disse...

Tudo bem para mim pararmos por aqui, mas quero dizer apenas mais isto. Peço a você que publique.

Eu li alguma coisa sobre os processos de Moscou, e li OS PRÓPRIOS processos. Há lá o chefe da promotoria, o Procurador Vishinski, ele mesmo um ex-menchevique, acusando a não sei quantos de serem ex-mencheviques (acusação gravíssima, a de ex-menchevique): os arquivos chegariam a ser engraçados se não pertencessem à vida real.

Mas o que estou tentando dizer é que os tais processos, assim como todo o mal chamado "stalinismo", são culminações, resultados de uma ordem anterior, e vou agora mesmo provar o que estou dizendo.

Não sei se você conhece a biografia de um revolucionário tártaro, que aderiu aos bolcheviques, chamado Mir Said Sultan Galiev. Sujeito extraordinário, amante da poesia, conhecedor das línguas persas, tradutor do Alcorão, e de Tolstói. Esta é uma história longa, vergonhosa e que raramente alguém deseja contar, e vou resumi-la.

Quando Stálin foi nomeado ministro das nacionalidades, o governo incumbiu Galiev de transmitir a linha de Moscou aos movimentos de libertação no Oriente da Rússia, Turquestão, Tchetchênia, esses lugares, porque havia um movimento comunista autônomo por lá, muçulmano, falante das línguas locais e do árabe, e muito desconfiado da Rússia européia. Mir Galiev ficou por ali, exercendo as profissões de jornalista e tradutor, um tremendo intelectual soviético a quem o povo respeitava. Ele reuniu todos os elementos para convencer a quem quer que fosse de que os comunistas muçulmanos do Oriente não eram beduínos muito loucos de ópio acometidos por delírios nacionalistas, como se pensava no Kremlin, mas um movimento genuíno, muito sofisticado do ponto de vista político, que opôs-se, por exemplo, à dissolução da Constituinte em 1918. Os muçulmanos de esquerda punham muita ênfase sobre a questão das nacionalidades e do Direito na URSS, eles eram sérios.

Pois muito bem. Galiev abastecia Moscou com todo tipo de informação a respeito do Oriente Soviético, assumindo-se ele mesmo um comunista do Oriente muçulmano que trabalhava com os bolcheviques, até ser preso por ordem de Lênin, em 1923, sob recomendação de Stálin conforme supõe-se, em sendo Galiev um subordinado de Stálin. Aconteceu que as muitas contradições entre Moscou e o Oriente manifestaram-se com força desde o Congresso de Baku, em 1920, e a saída encontrada por Lênin foi meter a sua mais prestigiada figura pública na cadeia, e proibir a linha política dos comunistas muçulmanos: "se o problema é o homem, dê um jeito no homem". O crime de Galiev foi o de divergir de Lênin, e de seu ministro Stálin, por meio da imprensa. O Partido Comunista do Turquestão, no qual Mir Said militava, foi dissolvido na base da bordoada, com direita a pé na porta em casa de militante e o diabo a quatro, e Galiev era agora um "inimigo do povo".

Mir Said foi formalmente acusado de "sabotagem religiosa" (?!), "chauvinismo nacionalista" e "expansionismo turco", seja lá o que isto signifique. Mas Lênin entrou em acordo com ele: se ficasse quieto, e se se comportasse como culpado, estaria seguro na prisão. Lênin morreu um ano após, e Galiev permaneceu trancafiado até ser morto a tiros pela polícia soviérica dezessete anos mais tarde, em 1940. O próprio Trotsky não deixou de assumir o seu consentimento à prisão de Said, tratando, é claro, de atribuir a responsabilidade apenas a Stálin, como se isto fosse possível. Se alguém acha que estou mentindo, procure ler o ensaio "Stalin", escrito por Tróstski, publicado em Nova York no ano de 1941.

Eis a história de Mir Galiev. Tire cada um a suas conclusões, e procure, se isto for interessante, a forte bibliografia a respeito dele, em inglês e outras línguas.

celsolungaretti disse...

Eduardo, símbolos têm grande importância para as pessoas menos informadas captarem algo das lições da História.

Embora Lênin e Trotsky tenham flertado com o totalitarismo num período dramático em que a república estava realmente em perigo, foi Stalin que o concretizou adiante, com a mão mais pesada possível, excedendo em muito a dosagem de violência necessária para atingir os seus objetivos.

Concordo totalmente com Deutscher: um monstro desses não pode ser explicado apenas a partir de categorias políticas, a origem de suas paranoias e de seu sadismo inerente só Freud seria capaz de explicar.

Percebe-se claramente, p. ex., que ele fazia questão de que as punições dos seus desafetos tivessem caráter ritualístico, como na Inquisição. Não cometeram erros políticos, pecaram contra a Santidade. Este é um traço revelador do peso que a formação religiosa continuou exercendo no indivíduo adulto.

Eu o vejo como uma personalidade tão insana quanto Hitler, grande responsável pelo totalitarismo soviético atingir a magnitude de uma aberração grotesca.

Finalmente, também em função dos símbolos, lembro que os bolcheviques mais lúcidos sempre temeram que a revolução devorasse seus filhos, como acontecera com a francesa.

Stalin se incumbiu de concretizar o augúrio sinistro, dizimando a velha guarda a golpes de torturas e assassinatos. A forma como ele triturou alguns dos melhores revolucionários que o mundo conheceu será sempre uma página de horror na história da esquerda.

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