Ele já aceitou servir como exemplo de bom menino |
Creio ter escrito alguns dos textos mais compassivos (vide aqui, aqui e aqui) sobre o que Geraldo Vandré se tornou após haver pactuado com a ditadura militar para poder voltar ao Brasil "sem ter na chegada/ que morrer, amada,/ ou de amor, matar", como antevia em sua pungente "Canção primeira".
Não tenho dúvidas de que sofreu lavagem cerebral quando esteve internado numa clínica psiquiátrica sob a vigilância de agentes da repressão, impedido até de falar com outros pacientes, entre 14 de julho e 11 de setembro de 1973.
Mas, de alguma forma ele contribuiu para sua desgraça: foi ao não suportar a barra do exílio e assumir o risco do regresso, mesmo conhecendo muito bem o inferno no qual desembarcaria. É isto, e só isto, que lhe recrimino. Com relação a tudo que se passou depois, ele tem minha compreensão, valha o que valer.
Foi um episódio bem na linha do que Paulo Francis alertava sobre os artistas: por mais que os admirássemos por sua arte, jamais deveríamos levá-los muito a sério quando se manifestassem sobre outros assuntos ou se aventurassem em outros projetos (principalmente os revolucionários).
Eu não levava muito a sério aquele Chico Buarque que, no olho do furacão dos anos de chumbo, lançava músicas inofensivas e nada tinha a declarar quando a direita enchia sua bola, erigindo-o em bom exemplo enquanto tudo fazia para denegrir os músicos engajados.
Em 1969 caiu-lhe a ficha e ele próprio reconheceu que o Chico de 1967/68 não merecia mesmo ser levado a sério.
A censura deste disco era ruim. A das biografias é boa? |
Fez, então, sua veemente autocrítica: "Agora falando sério/ Eu queria não cantar/ A cantiga bonita/ Que se acredita/ Que o mal espanta/ Dou um chute no lirismo/ Um pega no cachorro/ E um tiro no sabiá/ Dou um fora no violino/ Faço a mala e corro/ Pra não ver a banda passar/// Agora falando sério/ Eu queria não mentir/ Não queria enganar/ Driblar, iludir/ Tanto desencanto...".
Por admirarmos demais a grande arte que ele produziu a partir de então e até o fim da ditadura, passamos uma borracha na sua vacilada anterior e seguimos em frente. A Geraldo Vandré e a Chico Buarque devemos ser imensamente gratos por terem composto as duas músicas mais emblemáticas do repúdio à ditadura: "Caminhando" e "Apesar de você". Não dá para exigirmos que o criador esteja sempre à altura das criações.
Mas, o Chico não deveria exagerar. É simplesmente estarrecedor vermos um dos artistas outrora mais censurados tornar-se um tardio apologista da censura, defendendo a aberração antidemocrática de que a liberdade de expressão deva ser cancelada em benefício de figuras públicas que não querem ver expostos os aspectos desagradáveis de suas biografias. Só falta ele agora cantar Pai, aproxima de mim esse cálice!...
Paulo Francis certamente daria um de seus característicos sorrisos sarcásticos se lesse a declaração do Chico à Folha de S. Paulo desta 6ª feira, 18 (talvez acrescentando um previsível como queríamos demonstrar):
"Posso não estar muito bem informado sobre as leis e posso ter me precipitado, mas continuo achando que o cidadão tem o direito de não querer ser biografado, como tem o direito de não querer ser fotografado ou filmado".
Ora, o cidadão com o qual ele se preocupa e cujo direito quer ver priorizado não é um cidadão qualquer, mas sim uma celebridade. Quem escreve as biografias dos coitadezas anônimos?
E quanto ao direito do cidadão comum, de ser informado sobre o que realmente são e fazem aqueles que ganham rios de dinheiro por terem os holofotes da mídia voltados em sua direção, onde é que fica?
E quanto ao direito do cidadão comum, de ser informado sobre o que realmente são e fazem aqueles que ganham rios de dinheiro por terem os holofotes da mídia voltados em sua direção, onde é que fica?
Se o Chico sempre consentiu em que as gravadoras e editoras buscassem de todas as formas maximizar os espaços a ele dedicados pelos veículos escritos e eletrônicos, concedendo obedientemente as entrevistas que marcavam e posando pacientemente para as fotos que recomendavam, o que nos está pedindo é isto: que só levemos em conta o retrato em branco e preto que ele e seu staff querem projetar. Que nos atenhamos à imagem manipulada que os profissionais de comunicação forjam, expurgando tudo que é inconveniente para os objetivos comerciais (coincidentemente, o mesmo que incomoda os egos superinflados dos artistas).
Qualquer tentativa de furar tal bloqueio deverá ser encarada como invasão da privacidade. Ou, verbalizando o que realmente sentem tais pavões mas não têm coragem de proclamar, como um crime de lesa-majestade.
Tendo o Chico feito uma autocrítica tão contundente por suas omissões em 1967/1968, aguardo ansioso a que fará por suas falações de 2013. Isto se ainda lhe restar humildade para tanto.
12 comentários:
Olá,
Infelizmente, só conheço o Paulo Francis preconceituoso, racista e conservador da TV Globo dos anos 80. Nunca esqueço dos comentários dele sobre o nordeste naquele programinha da Globo que ele participava "direto de Nova York, demonstrando aversão ao seu próprio país.
Sobre Chico, Caetano, Djavan e Cia defenderem a censura sobre biografias não autorizadas, realmente é muito estranho e triste.
Meu caro Ismar,
eu, pelo contrário, só acompanhei o trabalho do Paulo Francis n'O Pasquim, na Folha e no Estadão. Nunca fui muito chegado à TV, exceto para ver filmes e esportes.
De início, era um ex-trotskista desiludido, mas ainda um homem de esquerda. Fez textos memoráveis sobre a Guerra do Vietnã. Lembro-me que o Francis, n'O Pasquim, foi o primeiro a informar os leitores brasileiros do massacre de My Lay.
Depois ficou um cínico que debochava de tudo e, finalmente, um inimigo tão extremo das estatais que acabou se deslumbrando com o início do neoliberalismo.
Acredito que, se vivesse mais tempo, ele teria percebido que aqueles avanços tecnológicos todos acabaram reforçando a dominação capitalista, ao invés de contribuírem para a emancipação da humanidade.
Um abração!
A liberdade de uns não pressupõe a dos outros? Liberdade de expressão é a de escrever algo sobre minha privacidade? Não me venham com essa palhaçada de censura. A ditadura militar distorceu (infelizmente), nas mentes revolucionárias ou não, completamente o sentido da palavra censura. Ela sempre existiu e sempre existira toda vez que dissermos não a alguma coisa!
Querem publicar a vida pública de alguém? Concordo plenamente, do contrário pode incluir-me nesse rol que você denominaria de reacionário.
Não sobre a sua privacidade, meu caro Haroldo, mas sim sobre a de quem optou por tornar-se figura pública, procurou tal condição e colhe enormes benefícios com a exposição permanente.
Essa gente tudo faz para ser notícia, mas quer vetar o direito de informarem ao público aquilo que não lhe convém. Quer que se divulguem apenas os press releases.
Negativo. Para esses há o caminho da Lei. Se não gostaram do que fui publicado, que recorram à Justiça, tentem obter indenizações, o recolhimento do livro nas prateleiras, etc.
Mas, o veto antecipado seria, sim, censura, como bem disse o Jânio de Freitas: http://naufrago-da-utopia.blogspot.com/2013/10/xeque-mate.html.
E que tudo mais vá para o inferno, com o Roberto Carlos puxando a fila...
"Primeiro falaram dos artistas, mas danem-se, não sou artista!"
Celebridade quer audiência sim e para isso tem as revistas, sítios e colunas de fofoca. Escrevam sobre o que ele faz na vida pública, se ela der em coluna policial, tudo certo, pois nesse caso ela influencia na vida dos outros de alguma forma. Nada tem a ver com liberdade de expressão, é um dever jornalístico que defenderei com minha vida.
Que droga de criatividade tem alguém de romancear sobre a vida de quaisquer cidadãos? Uma celebridade não é cidadão ou cidadã?
Cara, depois da pedra atirada...
Haroldo,
quem opta pelo anonimato tem todo direito à privacidade.
Já quem procura deliberadamente os holofotes, faz de sua imagem uma mercadoria.
Nós, consumidores, temos o direito de saber se tal mercadoria é o que parece ser ou não passa de uma falsidade.
Se o pastor Feliciano fosse pedófilo, p. ex., seus seguidores não deveriam ser informados disto? Claro que sim, pois estariam engolindo gato por lebre!
Então, há detalhes da vida privada de figuras públicas que devem, sim, ser conhecidos. Outros não.
Ocorre que, se tudo for censurado, o manto do segredo esconderá não só o que não interessa a ninguém, como o que interessa a todos. Não serve.
A melhor forma é a que se usa nas nações civilizadas: o biógrafo tem liberdade para escrever e o biografado, a possibilidade de o processar.
Simples assim.
Celso, se o Feliciano fosse pedófilo, estaria incorrendo em um crime! Isso nada tem a ver com eu escrever uma biografia dele. é uma questão de polícia, das páginas policiais! Agora, quando você fala sobre um personagem da vida pública, todos a sua volta, que não o são e que possuem ligações de amizade ou laços familiares terão suas intimidades divulgadas/devassadas, e aí como fica a vida dessas pessoas? Inocentes úteis? Quem seria o ditador? Você já escreveu diversas vezes que não confia na justiça, como fazer valer os direitos a outra liberdade pela qual você lutou e até hoje carrega as marcas: a "minha" (sua, do João, do Zézinho...) liberdade? Biografias não autorizadas editadas são coisas do capitalismo desenfreado, do mercado de livros ávidos por sangue e por fazerem best sellers, pois assim se ganha mais dinheiro!!!
Era só um exemplo. Troquemos, p. ex., por frequentador de sites de S&M, o que não é crime. Mas, seria algo a ser informado ao rebanho dele.
O Zé Dirceu não tentou embargar a publicação de sua biografia. Li partes dela fazendo hora na Livraria Cultura, enquanto minhas filhas se divertiam por lá. Jamais a compraria.
Encontrei uma informação que pode parecer irrelevante, mas me causou profunda decepção: a de que o Zé, quando era chefe da Casa Civil, aceitou, como oferenda de um lobbista, uma noitada com uma modelete do BBB e ainda saiu dizendo que havia sido o melhor presente da vida dele.
Se for aprovada a CENSURA PRÉVIA (a única palavra que cabe é esta) das biografias, nunca tomaremos conhecimento desses pequenos tijolos que nos ajudam a montar um painel.
O Chico Buarque deveria é agradecer aos céus por nós, jornalistas, sempre quebrarmos o galho dele.
Já no fim da ditadura, quando o Chico estava na Ariola, certa vez compareceu a uma coletiva caindo de bêbado e acabou não dando entrevista nenhuma, só desculpas. Éramos uns seis TRABALHADORES que perdemos tempo e nos deslocamos à toa. Nenhum de nós publicou o papelão dele.
É óbvio que, numa biografia autorizada, ele não deixaria constar algo assim.
Nem faria referência ao fato de haver pedido à Ariola que construísse um campo de futebol na sua propriedade, para jogar peladas com outros artistas. A direita adorava noticiar essas exibições de frivolidade, com fotos e tudo, para desmoralizar os envolvidos. E isto em plena ditadura.
Sou jornalista, conheço muito bem o que essa gente é na realidade. Sua arte pode ser bela, mas como seres humanos deixam muito, muitíssimo a desejar.
E levam todos vida de burguesões. Acho risível você criticar o capitalismo para defender caras tão perfeitamente entrosados com o capitalismo.
As questões reais são: ricos e poderosos têm o direito de esconder o que quiserem de sua vida? Sobre eles só podemos publicar os press releases? As únicas biografias a respeito deles devem ser as louvaminhas?
Se nos batemos pela democratização da informação, não podemos admitir tais PRIVILÉGIOS.
Se tanto sofremos e tantos companheiros perdemos para nos livrarmos da ditadura, não podemos admitir a VOLTA DA CENSURA.
A coisa toda está claríssima. E não vale a pena perdermos tempo com este debate sobre algo que já sabemos como vai acabar: derrota total do Roberto Carlos e seus escudeiros. Tá na cara. As votações no Congresso vão ser por goleada.
Eu paro por aqui.
Celso e as pessoas em torno do "biografado", como ficam?
Com o direito de recorrerem à Justiça se lhes for imputada alguma inverdade.
Mas, quem reivindica o direito de exercer a censura prévia não está verdadeiramente pensando nelas...
Náufrago da Utopia é um dos pouquíssimos blogs/sites que acolhe os comentários dos leitores.Não faz
pratica o disfarce como o Emir Sader(quanta diferença em relação ao irmão Eder Sader).Este,quando não concorda com os argumentos do leitor,simplesmente não o publica.Aquí,Celso Lungaretti publica,comenta,argumenta.Ou seja,dialoga com o interlocutor.
Além disso,podemos assistir filmes escolhidos a dedo,todos,com reflexões de natureza política,ética,social e culturalParabéns Celso. José Costa
Obrigado, José. Eu respeito o direito de me contradizerem, desde que o façam de forma respeitosa (sem insultos nem grosserias) e desde que o comentarista esteja falando por si próprio (e não recortando textos alheios para vir colar aqui).
Tenho o maior prazer em contribuir para elucidar as pessoas, propondo-lhes novos aspectos para reflexão. Considero que isto seja até um dever para quem passou situações tão dramáticas e trágicas. A missão dos sobreviventes é repassarem às novas gerações os conhecimentos que sua geração adquiriu na luta.
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