Marco Aurélio Mello é o ministro mais brilhante e lúcido do Supremo Tribunal Federal. Foi o que constatei ao acompanhar, do começo ao fim, as quatro tensas sessões do Caso Battisti.
Na primeira, o parecer mais parcial e tendencioso da história do STF, perpetrado por Cezar Peluso, tinha convencido os ministros a revogarem, na prática, a Lei do Refúgio, segundo a qual Battisti deveria ter sido libertado tão logo o ministro da Justiça Tarso Genro lhe concedeu o direito de viver e trabalhar no Brasil.
O placar de 5x4 tendia a se repetir na votação sobre o mérito da questão e também no tocante a quem daria a última palavra, se o Supremo ou o presidente da República.
Estava 4x3 a favor dos linchadores e faltavam os votos de Mello e Gilmar Mendes. Então, o ministro carioca pediu vistas e interrompeu o julgamento, evitando que a decisão fosse tomada naquele 9 de setembro de 2009.
Em 12 de novembro o caso voltou à pauta, com Mello proferindo um voto irrefutável, no qual desmontou quase todas as falácias de Peluso. Chegou a indignar-se ao relacionar as dezenas de trechos do processo italiano nos quais estava explicitamente consignado que o crime atribuído a Battista era político (subversão contra o Estado italiano) -- e não comum, como alegava o relator, num contorcionismo para viabilizar a extradição, já que o Brasil, por lei, não extradita perseguidos políticos.
Depois do seu longo voto, empatando o julgamento em 4x4, Mello se desculpou e saiu para atender a um compromisso urgente. A sessão teve de ser interrompida por falta de quórum.
A retomada se deu seis dias depois. Gilmar Mendes, como era favas contadas, desempatou a favor da Itália. Por 5x4 foi autorizada a extradição.
Passou-se à última batalha: o presidente da República deveria apenas providenciar a entrega ou cabia a ele dar a última palavra?
Nos seis dias transcorridos entre a 2ª e a 3ª sessões, entretanto, o ministro Carlos Ayres Britto se deu conta de quão descabido seria usurparem uma tradicional prerrogativa presidencial num sistema presidencialista. E, neste quesito fundamental, frustrou o plano dos linchadores, de automatizarem a extradição.
Assim, também por 5x4, a decisão passou às mãos de Lula, que, todos sabíamos, jamais repetiria o trágico erro de Getúlio Vargas -- o qual, acatando recomendação do mesmo STF, acumpliciou-se com a entrega de Olga Benário aos nazistas, ao invés de salvar a vida da mãe de uma criança brasileira.
Foi nesse exato momento que a batalha se decidiu, encaminhando-se para uma das mais dramáticas e significativas vitórias da esquerda brasileira nas últimas décadas. A contribuição de Mello para que se evitasse uma injustiça e uma infâmia foi inestimável.
A CHANTAGEM DO SENADOR JECA
Ele também mostrou dignidade ímpar quando o senador estadunidense Frank Lautenberg chantageou o Brasil, exigindo a entrega, a toque de caixa, do menor Sean Goldman ao pai David, caso contrário embargaria a renovação de uma isenção tarifária que beneficiava as exportações brasileiras e estava prestes a expirar. O prejuízo estimado era de cerca de US$ 3 bilhões.
Agindo como jurista e não como um vil entreguista, Mello postergou a decisão para depois do recesso do STF, a fim de que os ministros pudessem ouvir o principal interessado na questão: o menino. Ou seja, mandou às favas o ultimato do senador de Nova Jersey.
Mas, abusando grotescamente do seu poder, Gilmar Mendes, plantonista durante o recesso, cassou a decisão do colega e despachou Sean para os EUA, tranquilizando os exportadores e envergonhando os brasileiros dignos. Passamos recibo de que, dependendo do montante que estiver colocado na mesa, entregamos até nossas crianças.
RELAÇÕES PERIGOSAS
Agora, um advogado requereu o impeachment de Gilmar Mendes sob a acusação de manter conduta inaceitável para um ministro, principalmente no que tange ao relacionamento com o escritório de advocacia que emprega sua esposa e patrocina suas viagens ao exterior.
O Supremo se preparava para arquivar discretamente o pedido -- o processo não foi relacionado na pauta mas, mesmo assim, entrou em julgamento; o sucinto parecer do relator nem sequer mencionou o nome de Gilmar Mendes como acusado; e os ministros proferiam votos curtos e grossos -- quando Mello desafinou o coro dos contentes: pediu vistas.
Aí a imprensa se deu conta do que estava sendo julgado na surdina. E, claro, noticiou a batota.
Agora, ainda que prevaleça o corporativismo togado, os cidadãos brasileiros estarão sabendo como agem os membros da mais alta corte do País quando um deles é colocado na berlinda.
Marco Aurélio Mello, este sim, honra a toga.
Um comentário:
Mas o Direito é realmente constraditório- e por isso mesmo fascinante, coisa que posso dizer perfeitamente enquanto advogado.
Marco Aurélio, logo ele, parente de Fernando Collor (!) e já chamado alhures de "Caetano Veloso do Judiciário" (!!) pelo seu amor aos holofotes durante o período de sua presidência no STF.
Esse mesmo Marco Aurélio, que, em sessão de julgamento, votou pelo concessão imediata do alvará de soltura de Cesare Battisti, que já tardava.
Não chegou a ter a coragem de Joaquim Barbosa, que votou pela -no primeiro julgamento- expedição da soltura, dado que Battisti se encontrava preso ilegalmente.
Ilegalmente, e quem cometia a ilegalidade era o próprio Supremo.
Marco Aurélio não chegou a tanto, mas o teor prático de seus votos foi o mesmo.
E não fica nisso: Marco Aurélio reiteradamente adota posições, as mais polêmicas possíveis, em prol dos direitos fundamentais. Se pelo mero amor à polêmica, não posso dizer; mas que, se não chega a "honrar" a toga, como diz o post, ao menos Marco Aurélio indiscutivelmente tem papel de relevo no STF de hoje.
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