"Descobri que biografar alguém significa, a partir de certo ponto, abdicar da própria vida e se mudar para a vida do biografado", avaliou Ruy Castro, numa interessante coluna sobre um jovem estadunidense que veio ao Brasil rastrear a trajetória do avô (morto em 2000) para escrever-lhe a biografia.
Foi exatamente como me senti quando, a pedido do dono de uma agência de comunicação empresarial na qual eu trabalhava, tentei escrever a biografia (com jeitão de memórias póstumas) de um grande amigo dele.
Tratava-se de um imigrante que, percebendo uma boa oportunidade de negócios no Brasil, criou uma indústria que inexistia por aqui, aproveitando os incentivos fiscais para a região amazônica.
Acabou vendendo-a por algumas dezenas de milhões de dólares, comprando uma cobertura que lhe permitia vislumbrar um dos cenários mais belos do mundo e... tendo azar pelo resto dos seus dias.
Quando o entrevistei, fiquei sabendo que os filhos adultos o haviam decepcionado e que estava com os dias contados (sofria de câncer a as várias operações só lhe causaram sofrimento, sem curá-lo).
Vivia no imenso apê com profusão de luxos inúteis e um filho que comprara -- tinha engravidado sem querer uma aventureira e fechou então o acordo de recompensá-la regiamente para lhe entregar o nenê e sumir para sempre da vida de ambos.
O menino era cuidado por uma governanta. O velho não tinha muito jeito para lidar com ele.
Senti-me tão oprimido naquele ambiente esquisito -- fazia-me lembrar o Cidadão Kane, cercado por tesouros de todo tipo mas carente do maior de todos, o calor humano -- que decidi não mais me mudar para a vida do biografado.
Entreguei minhas fitas para um amigo especializado em biografias e, dando uma desculpa educada, transferi a tarefa, com um suspiro de alívio. Profundo.
Mas, nem sempre foi tão deprimente para mim o ingresso na vida de outras pessoas.
Tendo de escrever longas matérias jornalísticas sobre dirigentes empresariais, fiquei sabendo como era o capitalismo de outros tempos, quando as grandes individualidades ainda tinham papel decisivo.
Um, ao perceber que o produto fabricado na sua indústria não estava sendo atrativo para o mercado brasileiro, pegou uma mala de amostras, voou para os EUA e, como se fosse um caixeiro-viajante, saiu garimpando pedidos de porta em porta. Acabou não só salvando a empresa como se tornando um dos nossos principais especialistas em comércio exterior.
Outro, quando sua fábrica inundou, passou a comandar pessoalmente os trabalhos de emergência, dormindo numa cama de campanha, arrastando máquinas pesadas como se fosse um peão, sujando-se de graxa e encharcando-se de suor. Resultado: três décadas depois os veteranos ainda se referiam com carinho ao patrão que não era esnobe e almofadinha como quase todos os outros.
Filmaço sobre a Resistência holandesa; lembra o francês Exército das sombras |
Com os primeiros, dava ao menos para eu manter uma conversa agradável; com os segundos, eu queria esgotar o quanto antes o motivo do contato para dar o fora.
Nada se aproveitava. Pareciam clonados, todos iguais, oriundos das mesmas faculdades, com especializações idem, jogando o mesmo tênis nos mesmos clubes chiques, falando os mesmos lugares comuns do seu meio. Conhecia um, conhecia todos.
Dos veteranos que tinham passado fascinante, o mais insólito era o de um medalhão da indústria papeleira.
Muito jovem, participara da resistência holandesa ao nazismo, comandando, inclusive, a sabotagem à bomba atômica alemã.
Tornou-se herói de sua pátria e lá casou com uma princesa.
Ao invés de se deitar sobre os louros, veio tentar a sorte no Brasil. E venceu.
Fazendo parte da família real, ainda era convidado para casamentos e festas da corte. Mesmo assim, poucos brasileiros conheciam sua história de vida, pois não a ostentava.
3 comentários:
Me lembrei do Daniel Ludwing, do Projeto Jari
http://www.tijolaco.com/tucanos-a-jobim-vem-praca-a-casa-e-sua/
O link está errado! É este aqui, sobre o Jari de Ludwing
http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/02.023/787
É, mas o holandês é tão discreto a respeito do seu passado que não consegui nem encontrar o nome dele no Google.
Estava ligado à implantação de uma nova fábrica papeleira, na década de 1990.
Escrevi sobre ele para a revista "Celulose e Papel".
Ficou lá pra trás. Só retive a história dele na memória, talvez porque gosto muito do filme SOLDADO DE LARANJA.
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