Mas, como tais hipóteses não resultaram, fui obrigado a encaixar-me de alguma maneira na sociedade que eu repudiava. Então, dos 21 aos 53 anos, atuei como jornalista profissional (depois, o macartismo à brasileira me expulsou da profissão...).
Se não podia ganhar meu pão de forma 100% coerente com meus ideais, pelo menos tentava fazer o mínimo de concessões possível. Brigava para noticiar a verdade, ao invés das versões convenientes para os poderosos.
Alguns editores me viam como um chato que não se curvava à evidência dos fatos; cheguei a perder empregos por ser (muito) mais realista do que o rei.
Pode parecer meio quixotesco mas, pelo menos um dos moinhos de vento contra os quais me batia era bem real: o ocultamento da notícia.
Cansei de perder tempo e esforços fazendo bem o meu trabalho, para depois vê-lo vetado por um poder mais alto que se alevantou...
Vou dar dois exemplos. Depois explicarei por que os escolhi.
Certa vez fui cobrir uma negociação entre o sindicatos dos trabalhadores de uma estatal e a respectiva administração. No intervalo, bati um papo com os sindicalistas e eles me entregaram provas de um crime eleitoral: a companhia admitira funcionários no período em que não podia mais fazê-lo por causa da proximidade das eleições.
Pior, tentando driblar as limitações legais, retroagira tais admissões a meses antes. Um subterfúgio pueril, que servia mais como agravante, já que acrescentava ao dolo a malícia.
Estava tudo lá, preto no branco. Voltei para a redação e entreguei para o editor. Nada foi publicado, nem me devolveram aquele material extra que obtive graças às minhas habilidades, embora a pauta fosse outra.
Explicaram-me que não convinha ao jornal desgastar a administração estadual às vésperas do pleito. A missão da imprensa, de resgatar a verdade e disponibilizá-la para o leitor, que fosse para o diabo...
PEDRAS NO MEU CAMINHO
Noutra ocasião, fui escalado para cobrir uma tentativa de greve geral que a CUT convocou. Coube-me o período da manhã, na região de Santo Amaro (zona sul paulistana).
Falando com os sindicalistas, percebi que havia um clima de confronto com a Caloi, indústria de bicicletas. Motivo: alguns deles haviam sido, dias antes, espancados pelos seguranças da empresa e queriam retaliar.
Então, a CUT fez um arrastão de fábrica em fábrica, parando-as e incorporando trabalhadores, até que conseguiu reunir uns 5 mil. Foram todos para a porta da Caloi, pressionar.
Depois de uma hora de discursos exaltados que o carro de som tornava ribombantes, com os sindicalistas acusando a indústria de estar mantendo seus funcionários trancafiados, houve uma negociação. A Caloi concordou que um representante da CUT e um repórter entrassem para indagar dos trabalhadores se eles estavam sendo mesmo coagidos.
Um dirigente do sindicato e eu fomos os escolhidos. Quando já íamos entrar, uns 20 membros da tropa de choque da CUT invadiram o pátio da fábrica, onde não havia objetivo nenhum para eles atingirem. Queriam mesmo era provocar uma reação da Polícia Militar.
E os PMs não se fizeram de rogado: investiram com cavalarianos, espancando manifestantes (inclusive uma mulher grávida).
Os trabalhadores, por sua vez, fugiram para cima de um morro e passaram a atirar pedras. Uma passou raspando minha cabeça; pedi abrigo na viatura da (finada) rádio Excelsior e os companheiros me acolheram.
Quando voltei para a redação, fui festejado como herói. O repórter escalado para o período vespertino não se dirigira à Caloi. O jornal soubera da pancadaria, mas não imaginava que houvesse alguém da casa lá. Eu estendera meu horário por iniciativa própria, pois meu turno havia terminado três horas antes da encrenca.
Recebi tapinhas nas costas, conglatulações. E o editor me pediu logo 50 linhas. Pelo sim, pelo não, fiz 60.
No dia seguinte, abri o Estadão... e só havia sido publicada a abertura da minha matéria, míseras 8 linhas!
A explicação do editor foi praticamente a mesma da outra vez: meu texto ia sair completo, mas, no final da jornada, o chamado mesão (o diretor de redação) mandou cortar, porque não interessava ao jornal municiar os adversários do Governo do Estado, favorecendo o PT.
Ou seja, trabalhei o dobro do que deveria e arrisquei-me a apanhar as sobras daquela batalha campal... para nada! Poderia ter escrito aquele abre sem sequer haver estado lá.
O restante da matéria, sim, traduzia as impressões de quem havia testemunhado os acontecimentos e até deles participado. Mas, fora para o cesto!
Por essas e outras, os jornalistas da minha época queriam mesmo era saírem logo da reportagem, passando a redatores -- ou seja, a burocratas de redação, que lapidam (e tecem elocubrações sobre) o que não viram.
Eu não pude escapar a esse destino, mas nunca o procurei. Pelo contrário, voltei para as ruas sempre que pude. É nelas que a notícia mora, não nos gabinetes do poder.
O BIGODE DOS PODEROSOS
De resto, chega a hora de contar por que selecionei exatamente estes dois episódios. A razão é simples: em ambos, o homem do mesão, responsável pela ocultação dos fatos, atendia pelo nome de Miguel Jorge.
Tão diligente antes em aplicar a censura interna contra as notícias que pudessem favorecer o PT, como mais tarde (2007/2010) o seria no exercício de sua função de ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior do Governo Lula, depois de ter trocado o batente da redação pelos gabinetes luxuosos da Autolatina e do grupo Santander Banespa, dos quais foi vice-presidente.
Só não foi o maior estranho no ninho no Ministério de Lula porque lá estava o Nelson Jobim, portador dos recados (para não dizer ultimatos...) da caserna para o governo.
E, sem ocupar nenhum cargo, mas sendo, verdadeiramente, o guru e eminência perda da equipe econômica, lá estava também o Delfim Netto, signatário do AI-5. Um dos que não derramaram pessoalmente o nosso sangue, mas fizeram pior: retiraram a coleira dos pitbulls, deixando que nos estraçalhassem à vontade.
Isto para não falar nos Sarneys, Collors e Renans da base parlamentar que, na base do toma lá, dá cá, garantiu a aprovação automática de quase tudo que Lula propôs.
Isto para não falar nos Sarneys, Collors e Renans da base parlamentar que, na base do toma lá, dá cá, garantiu a aprovação automática de quase tudo que Lula propôs.
Sartre dizia que fazer política era enfiar a mão no sangue e na merda. Estava certo.
Um comentário:
Uma das dúvidas no texto é saber quem de fato é um estranho no ninho. Pelo visto, o tal Miguel Jorge continua o mesmo; antes, como agora. E os outros? Será que realmente eram aquilo que aparentavam? O que vejo hoje são antigos dirigentes sindicais ocupando cargos de burocratas bem remunerados e fazendo praticamente as mesmas coisas que aqueles aos quais criticavam.
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