2011 está sendo implacável com as excrescências autoritárias que teimavam em permanecer na cena política.
Além dos ditadores de países árabes, uma bola da vez é o mais atrabiliário e grotesco mandatário europeu: os italianos parecem enfim dispostos a dar ao novo Duce, pelo menos em termos simbólicos, o mesmo tratamento que ministraram a Mussolini.
Daí a oportunidade deste ótimo artigo de Marco Aurélio Nogueira, professor titular de Teoria Política da Unesp, que foi publicado em O Estado de S. Paulo e eu reproduzo na íntegra:
A ITÁLIA DE BERLUSCONI, ENTRE O PASSADO E O FUTURO
A regra é sábia e deve ser usada com frequência: certos eventos políticos estranhos, por vezes escabrosos, somente podem ser compreendidos quando mergulhados na história das sociedades em que ocorrem. É nas águas profundas da vida social que se escondem as maiores verdades.
Não fosse assim, seria difícil compreender, por exemplo, o que leva um país como a Itália - terra de tradições grandiosas, de história e cultura riquíssimas, de pensadores, políticos e humanistas da estatura de Maquiavel, Gramsci e Bobbio, de partidos como o PCI - a ser governado por Silvio Berlusconi. A "grande Itália" parece paralisada pela "pequena Itália", das máfias e do fascismo, que se move e mostra sua força.
Grosseiro, exibido, bufão, fascista de estilo e convicção, Berlusconi não é certamente um desconhecido. Preside desde 2008 o Conselho de Ministros, mas influi no Estado há pelo menos duas décadas. Megaempresário das telecomunicações, é um milionário poderoso. Controla boa parte da mídia italiana.
Fundou em 1993 o partido Forza Italia, que disseminou uma mixórdia de "teses" em defesa dos valores tradicionais, da liberdade pessoal, da identidade nacional contra os imigrantes, do combate à corrupção, da redução do déficit público, numa mistura oportunista de neoliberalismo e fascismo. Impulsionado pela televisão e abusando do imediatismo e da demagogia, ganhou espaço entre pequenos e médios empresários, profissionais liberais, gente das cidadezinhas e das classes médias urbanas. Venceu as eleições de 1994 e governou com uma aliança abertamente de direita (neofascistas do MSI, separatistas da Liga Norte, correntes cristãs). Demitiu-se sete meses depois, mas se tornou líder e fator de unificação das forças mais direitistas e conservadoras do país.
Combateu encarniçadamente os governos Amato, D"Alema e Prodi, de centro-esquerda, entre 1996 e 2001. Começou, então, a acumular denúncias e processos legais: conluio com a máfia, lavagem de dinheiro, evasão fiscal, participação em homicídio, corrupção e suborno de policiais, financiamento ilegal de partidos. Não chegou a ser condenado, mas as acusações foram compondo sua persona.
Voltou à presidência do Conselho de Ministros em 2001. Foi derrotado por Romano Prodi em 2006, mas retornou ao posto dois anos depois. Forza Italia já havia então virado Povo da Liberdade.
O populismo histriônico e autoritário de Berlusconi, seu poderio midiático, os interesses econômicos que representa e o sistemático desprezo que nutre pelos ritos, pela Constituição e pelas instituições políticas italianas são uma ameaça permanente à democracia. A Itália decaiu muito no período em que ele tem dado as cartas. A estagnação econômica, o desemprego, o empobrecimento dos trabalhadores são hoje evidentes. A política está corroída pela compra de parlamentares e magistrados, pelo cerceamento das oposições, pelo monopólio da informação. O sistema democrático sangra por todos os poros.
Berlusconi cresceu impulsionado pelo uomo qualunque, o italiano médio, fascinado pelo poder e com certo cafajestismo intrínseco, como observou Geraldo Di Giovanni, da Unicamp. A "pequena Itália" - com sua pequena política, seu localismo provinciano, sua resistência à vida cívica superior e ao Estado democrático - lhe tem fornecido bases e oxigênio. O Cavaliere é uma espécie de alter ego desse universo de italianos, escreveu o professor José Claudio Berghella: "introduziu no Estado italiano um modo camorrístico de fazer política e estruturar instituições."
Sua ascensão, porém, não teria ocorrido sem o esfacelamento ético-político e cultural da esquerda italiana, em particular a de extração comunista, que hoje, desgastada intelectual e organizacionalmente, não é sequer sombra de seu passado. Tem baixa competência operacional, não consegue se unir nem definir um rumo programático. O Partido Democrático, seu maior subproduto, tem sido incapaz de atuar com vigor, coerência e credibilidade. Os diversos grupos que florescem à sua esquerda, menos ainda.
Berlusconi também foi auxiliado pela emergência da "vida líquida" na Itália, pelo capitalismo globalizado e pela disseminação da cultura do espetáculo, que contribuíram para desorganizar as forças do trabalho, minar os partidos políticos e embaralhar a relação entre representantes e representados.
Trata-se de um político pequeno, sem nenhum traço de estadista. Seria uma figura entre o folclórico e o patético, que passaria despercebida não fosse a irrupção em praça pública de suas taras e perversões privadas. Como escreveu Sérgio Augusto no Aliás (20/2/2011), o Cavaliere "abusou do poder, do fisco, da propriedade privada, da coisa pública, do sistema bancário, mas só depois que abusou do sexo virou um caso de polícia promissor".
Acossado por denúncias e revelações sórdidas, Berlusconi está sendo mais uma vez levado aos tribunais, agora por abuso de poder, extorsão e prostituição de menor (a marroquina Karima "Ruby" el Mahroug). Declarou que não está preocupado, mas não pôde permanecer indiferente nem à fixação de seu julgamento para o dia 6 de abril nem ao protesto de centenas de milhares de pessoas que saíram às ruas de todo o país, em 13 de fevereiro, para exigir sua renúncia e sua condenação em nome de "mais respeito pela liberdade e pelos direitos das mulheres". Acusou-as de subversivas a serviço da esquerda, valendo-se de um surradíssimo chavão antidemocrático.
Agora é saber como o futuro mostrará sua face. As reservas democráticas do país podem estar adormecidas e desorganizadas, mas pulsam a todo momento. A sociedade civil mostrou força nas manifestações de rua. Poderá crescer com isso e ajudar a que as oposições democráticas e de esquerda saiam do marasmo, acertem o passo e façam algo para projetar a "grande Itália" no lugar que merece ocupar.
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