De vez em quando O Estado de S. Paulo faz verdadeiro jornalismo, honrando suas tradições centenárias.
É o caso do ótimo trabalho investigativo desenvolvido por Marcelo Godoy, A tortura e a morte, pela voz dos porões, cuja leitura integral recomendo enfaticamente.
Como o texto é longo, vou reproduzir aqui o mais chocante, qual seja a sistemática de assassinatos introduzida pela ditadura militar nos estertores da luta armada (os intertítulos e a edição -- corte de trechos dispensáveis -- são meus):
"Pela primeira vez uma dezena de agentes do Destacamento de Operações de Informações (DOI) de São Paulo decidiu falar. Diretamente envolvidos nas operações contra a guerrilha urbana, eles trabalharam na mais secreta das seções do órgão: a Investigação. (...) O que eles relatam aqui ao Estado são detalhes de como funcionou a estrutura que possibilitou a prisão, a tortura e a morte de dois casais de militantes da Ação Libertadora Nacional (ALN), um dos grupos de esquerda que pegaram em armas contra o regime militar.
São dois casos exemplares, que representaram o fim de uma era e o início de outra no DOI. Ninguém mais que estivesse marcado para morrer teria a execução justificada com a encenação de um tiroteio: o segredo e o desaparecimento se tornariam regras....
A "ERA USTRA": EXECUTAVAM OS RESISTENTES E DAVAM-NOS COMO MORTOS EM TIROTEIO
Em segundos, outros cinco homens armados se atracaram com o guerrilheiro enquanto dois passageiros se levantaram e detiveram Sônia. Quatro dias depois, a morte do casal foi noticiada pelos jornais. O comunicado do Exército dizia que haviam resistido à prisão, na zona sul de São Paulo, sendo alvejados num tiroteio.Filha do então tenente-coronel do Exército João Luiz de Moraes, Sônia [Maria Moraes Angel Jones] fora casada com o líder do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8) Stuart Edgar Angel Jones.
[Antônio Carlos Bicalho] Lana, seu companheiro, era (...) era um dos últimos cabeças da ALN ainda vivos.
"Eles estavam em um ônibus, que parou num posto de venda de passagens, perto do Canal 1, em Santos", conta o agente Alemão. Lana desceu e foi comprar os bilhetes para São Paulo - Sônia ficou no ônibus. Enrolada em uma toalha, ele carregava uma pistola.
O guerrilheiro recebeu uma coronhada, assim como [o capitão do Exército Ênio Pimentel da Silveira, vulgo Doutor] Ney, ferido acidentalmente por um subordinado. No ônibus, dois agentes prenderam Sônia. Lana subiu a Serra do Mar no Corcel do Doutor Ney. Ele e Sônia foram levados a um dos centros clandestinos de detenção da Investigação: o Sìtio, no Cipó, na zona sul - o outro era a Boate, em Itapevi, na Grande São Paulo. "O Ney queria os cabeças. Ele não matou o Bruno (Lana) porque queria informação (...)", disse um oficial. O destino de Bruno, no entanto, estava selado. Ele ia morrer. Sua companheira também não ficaria viva.
No Sítio e na Boate, os presos ficavam acorrentados em argolas presas às paredes. O acesso a eles era restrito até para integrantes da Investigação.
Antes de executar o casal com tiros no tórax, cabeça e no ouvido, era preciso justificar as mortes. O teatro simulando a perseguição e o tiroteio foram encenados na zona sul. Uma tenente da PM fez o papel de Sônia e um agente, o de Lana.
...[o tenente-coronel Aldir Santos Maciel, que dois meses depois passaria a chefiar o DOI/SP] reafirmou a versão de que o casal morreu em tiroteio, "o último na rua que houve em São Paulo". De fato, em seu comando no DOI (1974-1976), não houve mais teatro. O método acabou com a saída de [Carlos Alberto Brilhante] Ustra [o comandante no período 1970-1974). A partir de então, todos desapareceram, sem explicações.
A "ERA MACIEL": EXECUTAVAM OS RESISTENTES EM SEGREDO E SUMIAM COM SEUS CORPOS
Foi o que ocorreu com o segundo casal dessa história: Wilson Silva e Ana Rosa Kucinski. Os agentes contam que, sob o comando de Maciel, eles foram presos em São Paulo, em 22 de abril de 1974, e levados ao Rio. "O casal foi morto no Rio", disse o agente Fábio. Lá, em Petrópolis, havia outra prisão clandestina.
As prisões ocorreriam (...) quando Wilson desceu de um Fusca, no Anhangabaú, no centro [de São Paulo]. Olhou para os lados e, ia atravessar a Avenida 23 de Maio, quando foi agarrado por Zé. Mais adiante, outros agentes detiveram Ana Rosa. O casal foi entregue ao Doutor Ney.
Oficialmente, o casal nunca foi detido. Seu sumiço foi o prenúncio do que ia ocorrer com metade do Comitê Central do PCB.
Vários líderes do Partidão morreram na Boate. Corpos esquartejados foram amarrados a mourões e lançados de madrugada num rio. "Era perto de Avaré", disse um oficial. "O Marival é um traidor, mas não mentiu (Marival foi o primeiro a falar da Boate, em 1992; nas buscas feitas num rio em Avaré, os bombeiros só acharam pedaços de concreto)", contou Zé. O método só acabaria com nova troca do comando. Maciel e o general Ednardo D?Ávila Melo, chefe do 2º Exército, foram substituídos após a morte do operário Manoel Fiel Filho, nas dependências do DOI de São Paulo, em 1976."
7 comentários:
Me impressina a imparcialidade de Lungaretti, mesmo sendo de esquerda cita jornais de direita e mostra uma realidade ocultada e omitida pela mídia. Leio seu blog diariamente, Lungaretti, estou juntando dinheiro para comprar seu livro =].
Felipe, não devemos deixar de levar em conta certas nuances do inimigo.
P. ex., o "Estadão" é mesmo de direita, mas uma direita aristocrática, que seguia alguns princípios, como o de posicionar-se sempre contra o totalitarismo.
Então, embora houvessem participado desde o primeiro momento da conspiração que redundou no golpe de 1964, os Mesquita (a família proprietária) não aceitaram a eternização da ditadura, nem sua radicalização a partir do AI-5.
Então, como era contra as atrocidades já na época, faz todo sentido que continue a sê-lo até hoje, produzindo uma matéria dessas.
Além de fazer questão de que o público soubesse quais os espaços de seus jornais em que notícias haviam sido mutiladas pela censura, o Estadão mostrou dignidade em dois episódios célebres:
1) quando o DOI-Codi quis entrar para prender um jornalista na redação da r. Major Quedinho, o Mesquita de plantão mandou a segurança barrar a entrada. Telefonemas tensos foram trocados com o 2º Exército e a decisão acabou sendo respeitada. Depois, ele armou um esquema para o jornalista sair de lá num porta-mala e ficar abrigado no próprio seu sítio. Disse uma frase bem característica da mentalidade da casa: "Ele pode ser comunista lá fora, mas aqui dentro é meu funcionário".
2) Depois que o Vladimir Herzog foi "suicidado", os Mesquitas decidiram que os jornalistas da casa sempre teriam a companhia de um diretor, quando intimados por qualquer órgão da repressão política. E isto foi religiosamente cumprido.
Enfim, o comportamento desse clã foi bem diferente do de seus concorrentes da rua Barão de Limeira...
Me corta o coração ler essas notícias/descrições da selvageria que foi cometida contra esses jovens idealistas.
É repugnante o STF ter validado a anistia para esse tipo de crime.
NADA justifica. Que não queiram punir, que não queiram prender, mas pelo menos que tenham a DIGNIDADE de fazer um papel decente.
Validar a isso descrito nessa reportagem é validar tudo.
Intolerável essa decisão do STF.
E a corte da OEA?
Vai ser solenemente ignorada?
Contínuo impressinado, cada texto seu é uma verdadeira aula de história, imparcialidade e política! Parabéns por esse grande blog e saiba que você possui leitores fiéis!
Felipe,
nosso dever, como sobreviventes, é tornar conhecidas essas Histórias, até para ajudarmos a criar anticorpos contra o totalitarismo.
Há muitos outros veteranos fazendo o mesmo.
Um abração!
Boas tardes:
Como nosso país é marcado por tais coisas pesadas/fortes_DITADURA/POLÍTICA/ENTRE OUTROS!
Encontrei o blog por acaso: pesquisava por uma pessoa de nome Danielle Wilhelms, e acabei na tal imagem em preto & branca...
Até acho essa parte da história meio que inoportuna - pois são coisas sempre discutidas e que parecem não chegar à (nenh)uma conclusão.
O Brasil vive abordando sobre políticas/eleições; nota-se na evolução das URNAS ELETRÔNICAS!
E mencionar coisas assim geram um certo perigo...
Obrigado,
Rodrigo Rosa
http://rodrigo-arte.blogspot.com/
Meu caro Rodrigo,
como você não conhecia o blogue nem (provavelmente) a mim, está supondo que se trate de uma má escolha de tema.
No entanto, eu sou parte dessas histórias: atuei no movimento estudantil, na luta armada, fui preso político, quase me mataram nos porões (além de me lesionarem para sempre) e, por alto, calculo que uns 20 companheiros que conheci pessoalmente foram assassinados pela repressão da ditadura, inclusive um amigo desde o curso primário (Eremias Delizoicov).
Então, o que você leu não é especulação de leigo, mas sim informação de quem conhece profundamente o que aconteceu nos anos de chumbo.
Sobrevivente de jornadas nas quais tantos morreram, eu considero que seja meu dever lançar luzes sobre tais episódios.
Um abração!
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