Êpa! Mas, pessoas sofisticadas devem perder tempo com os rudes folguedos da plebe ignara?!
No Congresso em Foco, um leitor protestou:
"Desgraça total! Até aqui o opio brasileiro invadiu. A desgraça do futebol veio para um fórum serio..."Pior aconteceu no Centro de Mídia Independente. Os fascistinhas de sempre, incomodados com meus textos políticos, questionaram um artigo no qual abordei o futebol, apontando-o como contrário à política editorial do CMI.
Um aprendiz de censor (lá são chamados de voluntários), ingenuamente, entrou na jogada da direitalha. Tirou do ar meu artigo (lá se diz esconder).
Resultado: por coerência com meus princípios, tanto como revolucionário (defensor da liberdade irrestrita e plena) quanto como jornalista (censurado durante a ditadura e decidido a nunca aceitar situações idênticas numa democracia), encerrei longa colaboração com o CMI.
Só por causa do futebol?
Não: por acreditar que todo e qualquer assunto admite enfoques consistentes, críticos e desmistificadores, revelando o insólito que se oculta sob a aparência da normalidade.
Sérgio Ricardo, num festival de música popular brasileira de 1967, defrontou-se com a mesma rejeição esnobe e preconceituosa.
Sua "Beto Bom de Bola" falava de tantos e tantos futebolistas usados, abusados, espremidos e jogados fora pela engrenagem capitalista do futebol; Garrincha, em primeiro lugar.
A horda intolerante/ululante o impediu de cantar até que, perdendo a calma, ele quebrou o violão e o arremessou contra o público, desistindo da disputa.
Mas, não desistiu de continuar compondo e interpretando canções focadas nas dores, alegrias e ilusões do povo sofrido.
Assim como eu não desisto de escrever num dia sobre Cesare Battisti, noutro sobre cinema, depois sobre Israel e em seguida sobre o carnaval.
Sei muito bem que, numa sociedade de massas, a receita de sucesso é você fixar uma imagem e ater-se a ela. Paulo Coelho tem de ser sempre místico, o Bolsonaro sempre brucutu, e assim por diante.
Mas, todo meu ser se rebela ante a possibilidade de me ver reduzido apenas ao ex-guerrilheiro, apagando meu passado de hippie, de roqueiro, de enxadrista, de crítico de cinema, de poeta, de fã da ficção-científica e das novelas policiais, de colecionador de HQ, de admirador do dr. Sócrates e de Muhammad Ali.
Sou hoje a síntese de todas essas personas. E é isto mesmo que eu quero ser. Se assim estiver diminuindo minhas chances de chegar aos pináculos do sistema, azar. Passo muito bem sem os holofotes e os privilégios.
Enfim, vamos falar de futebol.
O que hoje se pratica no Brasil me faz lembrar um dos trechos mais marcantes do “Manifesto do Partido Comunista” de 1848. Peço aos leitores que tenham um pouco de paciência, pois explicarei adiante. Primeiro, relembremos Marx e Engels:
“Onde quer que tenha conquistado o Poder, a burguesia calcou aos pés as relações feudais, patriarcais e idílicas. Todos os complexos e variados laços que prendiam o homem feudal a seus ‘superiores naturais’ ela os despedaçou sem piedade, para só deixar subsistir, de homem para homem, o laço do frio interesse, as duras exigências do ‘pagamento à vista’.
"Afogou os fervores sagrados do êxtase religioso, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-burguês nas águas geladas do cálculo egoísta. Fez da dignidade pessoal um simples valor de troca; substituiu as numerosas liberdades, conquistadas com tanto esforço, pela única e implacável liberdade de comércio. Em uma palavra, em lugar da exploração velada por ilusões religiosas e políticas, a burguesia colocou uma exploração aberta, cínica, direta e brutal.
“A burguesia despojou de sua auréola todas as atividades até então reputadas veneráveis e encaradas com piedoso respeito. Do médico, do jurista, do sacerdote, do poeta, do sábio fez seus servidores assalariados.
"A burguesia rasgou o véu de sentimentalismo que envolvia as relações de família e reduziu-as a simples relações monetárias.”
O INFERNO PAMONHA
Nós, que vivemos o antes e o depois, sentimos a mesma perda de qualidade em todas as esferas da nossa existência ao ingressarmos plenamente na sociedade de consumo, a partir de 1970.O que ainda havia de nobre, belo e digno nestes tristes trópicos foi esmagado pelo rolo compressor do mercado, atirando-nos no “inferno pamonha” a que se referiu Paulo Francis: uma vida sem reais gratificações, na qual ninguém consegue verdadeiramente realizar-se como ser humano e como cidadão, além da danação de suportar a tirania dos medíocres.
Até no futebol esse fenômeno se verificou. Bem ou mal, o Brasil conseguia evitar o êxodo de seus talentos. Um ou outro ia deslumbrar os europeus, mas tínhamos capacidade de manter times memoráveis como o Santos bicampeão do mundo (1962/63); e formávamos nossas seleções com quase todos os craques atuando no País.
Os campeonatos estaduais eram pujantes, os times do Interior às vezes conseguiam contestar a hegemonia dos grandes. Havia campinhos de terra batida em todo lugar, crianças correndo horas a fio atrás de bolas de meia.
Futebol era arte e paixão, não apenas competição. O chapéu bem aplicado valia quase tanto quanto o gol. Os dribles infernais de Garrincha desmoralizavam mais os adversários do que os placares elásticos. Os torcedores ainda eram capazes de reconhecer e aplaudir as belas jogadas do time rival.
Lembro-me de um episódio emblemático. O grande Gento, ponta-esquerda do fantástico time do Real Madri do final da década de 1950 (aquele com Puskas e Di Stefano), era o cobrador oficial de pênaltis. Certo dia, um árbitro viu infração num lance em que, o estádio inteiro percebeu, nada de errado acontecera. Gento calmamente encaminhou-se para a bola... e chutou-a na direção da bandeira de escanteio, desprezando a oportunidade de marcar um tento imerecido.
Outro gênio, Nilton Santos, arriscou-se a uma longa suspensão, que acabaria antecipando sua aposentadoria, por uma questão de dignidade. Num Corinthians x Botafogo no Pacaembu, ele foi repreendido espalhafatosamente pelo folclórico Armando Marques. Com altaneiro desprezo, Nilton Santos aplicou um tapa de mão aberta na face do árbitro, atirando-o ao chão. E calmamente se dirigiu para o vestiário, sem esperar que o expulsasse.
Um repórter o interceptou, perguntando por que fizera aquilo. Respondeu que o filho dele estava assistindo à partida. “Como é que eu iria explicar-lhe que deixei um homem encostar o dedo no meu nariz, sem reagir?”
O último dessa nobre linhagem foi Sócrates, que recebera uma oferta irrecusável da Fiorentina, mas, discursando num comício das diretas-já, assumiu um compromisso solene com os brasileiros: se a emenda Dante de Oliveira fosse aprovada, ele ficaria no Brasil para contribuir com a redemocratização.
Times, seleções e craques do chamado futebol romântico serão lembrados para sempre. Já os atuais amontoados de novatos e refugos, os selecionados formados à base de milionários enfastiados e os jogadores que preferem ajeitar a meia do que marcar o adversário, sobreviverão apenas enquanto estiverem no noticiário e forem úteis como garotos-propaganda.
Não têm grandeza para impregnar o imaginário das gentes.
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