terça-feira, 23 de março de 2010

SOBRE MENINAS E ABUTRES

Entre o 1º e o 2º dias do Big Brother Justice... digo, do julgamento do Casal Nardoni, nada tenho a acrescentar ao artigo que escrevi sobre o Caso Isabella há quase dois anos (abaixo), salvo que a única decisão justa seria anularem o inquérito policial por violação do segredo de Justiça e o reiniciarem da estaca zéro, sem a aberrante espetacularização com que foi conduzido. Mas, claro, não o farão. E também não se fará justiça no sentido real do termo, mesmo que sejam culpados os condenados.

Se o comissário Maigret, mestre em desvendar crimes a partir de um profundo conhecimento das motivações e fraquezas humanas, se pusesse a investigar o caso Isabella, provavelmente concluiria ter sido a menina vitimada pelo descontrole emocional da madrasta, com o pai tentando, canhestramente, acobertar a companheira.

E, com seu olhar compassivo para os seres humanos, mestre Georges Simenon decerto fecharia em clima melancólico essa novela de personagens destruídos num momento de fúria e reações insensatas. Não o primitivismo vingativo do “olho por olho, dente por dente”, mas o lamento civilizado pelo sofrimento inútil que os homens infligem a si mesmos.

Maigret cumpriria com pesar sua obrigação de entregar o imaturo casal à Justiça. Mas, decerto, seu sentimento seria bem outro em relação aos abutres que ultrapassam todos os limites da dignidade e do decoro para utilizar uma tragédia em benefício próprio.

O comportamento da imprensa neste episódio foi o de oferecer a dor extrema de algumas pessoas como espetáculo para a coletividade, sem jamais levar em consideração os efeitos que isso provocaria: desde os traumas causados em outras crianças cujos pais são separados até a possibilidade de que as turbas por ela incitadas linchassem os suspeitos ou se ferissem na tentativa. Revirou o lixo e emporcalhou-se com o sangue.

Além disso, ao persuadir maus agentes do Estado a vazarem laudos técnicos e depoimentos que estavam sob segredo de Justiça, trombeteando-os nos jornais nacionais, inviabilizou um julgamento justo, já que a opinião pública foi levada a condenar previamente os réus.

Nossa polícia sempre teve vezo autoritário, atuando mais como força repressiva e punitiva. Seus inquéritos tendem a ser peças de acusação e para a acusação, com o objetivo implícito de convencer promotores a denunciarem os suspeitos.

O espaço de atuação da defesa é a fase judicial, quando tenta desmontar a peça acusatória. Revelar prematuramente seus trunfos pode ser fatal para os advogados, que precisam contrabalançar nos tribunais a tendenciosidade com que muitas investigações policiais são realizadas.

Então, se o inquérito é escancarado para o público, os pratos da Justiça se desequilibram, pois a defesa fica seriamente prejudicada e até (como neste episódio) praticamente inviabilizada.

A polícia substitui a promotoria, a opinião pública toma o lugar do tribunal e a malta está sempre pronta para cumprir a função do carrasco. Quando, além de tudo, esse rolo compressor leva a uma falsa conclusão, inocentes são esmagados, como no caso da Escola-Base.

Há algo de podre num país em que filmes justificam a tortura e a mídia contribui para submeter a Justiça à voz das ruas, por ela manipulada e arregimentada.

Não se sabe aonde este processo chegará, mas salta aos olhos que marcha na contramão da democracia brasileira, a tanto custo restabelecida.

Um comentário:

jose carlos lima - meu blog disse...

"Nossa polícia sempre teve vezo autoritário, atuando mais como força repressiva e punitiva. Seus inquéritos tendem a ser peças de acusação e para a acusação, com o objetivo implícito de convencer promotores a denunciarem os suspeitos."

Concordo plenamente, e falo por experiência própria:

Quando integrei um Juri durante uma temporada de julgamentos em Goiânia - Rio Meia Ponte, vi o despreparo dos policiais e peritos.

Vi que a polícia trabalha de forma autista, somente para ela mesma ou, como você aponta, para a acusação e não para a sociedade que, é claro, far-se-á presente através do Corpo de Jurados.

A polícia tem que saber que trabalha para o corpo de jurados, para a defesa e para a acusação, e não apenas para esta.

Por isso tem que colher e resguardar, adequadamente, as provas, bem como conduzir o processo de forma correta, afastando da peça processual este 4º Poder da República, ou seja, a imprensa.

Por isso as provas materiais, bem como a condução do processo não podem, como você aponta, virar espetáculo midiático.

Você sabia que no caso em pauta o material que era tido como sangue humano era na verdade resto de alimentos, partículas de tomates por exemplo? As provas materiais são importantes porque não deixam dúvidas na cabeça dos jurados.
Caso contrário, pautar-se-á pela emoção ou pelo clamor popular causado pela mídia.

Um dos casos que participei como membro do Juri, lembro-me que havia um caso que fiquei em dúvida, e isso por causa do trabalho incompetente da polícia. Vou relatar de forma sintética:

Um garajeiro foi assassinado próximo a Praça do Avião, área nobre de Goiânia.

No local do crime as pessoas informaram que o assassino estava usando uma blusa xadrez e carregando uma pasta.

Os policiais se dirigiram à casa do suspeito e lá, encontram-no usando as mesmas roupas e pasta ou, se não, pelo menos iguais as descritas pelas testemunhas.

Se a polícia fez a apreensão de tais peças? Não.

Tempo vai tempo vem, num belo dia o Juri reune-se para, como representante da sociedade, condenar ou absolver o assassino.

O problema é que, no dia do julgamento, não nos foi apresentado nenhuma prova material, isto porque a polícia não as colheu. O mais grave é que a polícia prefere torturar para obter confissões do que recolher provas. Deve ser preguiça destes que são pagos por nós para nos dar segurança. Preguiça ou ignorância. Tanto faz.

No caso em pauta, não me lembro qual foi meu voto, se a favor ou contra o réu. Senti-me arrasado naquele momento, isto por causa da dúvida que se abateu sobre mim naquele momento tão importante.

Por isso pedi para deixar de integrar o Corpo de Jurados. Não quis mais fazer parte deste faz de conta.

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