domingo, 16 de agosto de 2009

SOCIOPATOLOGIA DA VIDA COTIDIANA

Um livro marcante de Sigmund Freud foi Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901), no qual o criador da psicanálise revelou as motivações inconscientes de acontecimentos banais na vida das pessoas. P. ex., esquecimentos geralmente não são casuais e atos falhos expõem algo que o indivíduo reprime.

Há mais de um século, isso era novidade das mais surpreendentes. Hoje, nem tanto. Esses conceitos já foram muito difundidos por filmes, livros, textos publicados, sessões de análise, etc.

Mas, continua sendo estimulante a postura de analisar o dia a dia na sociedade capitalista com olhar mais crítico. Eis alguns exemplos que me ocorreram.

FUTEBOL: O IMPORTANTE É FATURAR

O Corinthians foi ao purgatório em 2007, rebaixado para a 2ª divisão do futebol brasileiro. Recuperou-se no ano passado, formando um time que começou a ser vitorioso em todas as competições.

Conquistou, um após outro, os títulos de campeão da série B do Brasileirão, do Campeonato Paulista e da Copa do Brasil. Foi a melhor equipe nacional no semestre passado.

De repente, vendeu três dos seus principais jogadores e emprestou um quarto. Com isto, mais uma contusão do Ronaldo Fenômeno, o Corinthians desabou. O técnico jogou a toalha, admitindo que o Campeonato Brasileiro de 2009 já era, mesmo faltando disputar todo um um turno.

O dirigente responsável pelo futebol admitiu explicitamente que agora será assim: o Corinthians vai formar equipes utilizando jogadores adquiridos em parceria com empresários. Atingido um objetivo, alguns atletas são vendidos e é iniciada a montagem de um novo elenco.

Trata-se do que acaba de acontecer. Havia uma grande meta, a participação na Copa Libertadores da América de 2010. Esta meta foi atingida com o triunfo na Copa do Brasil. Então, desmanchou-se a equipe e os empresários obtiveram seu sagrado retorno.

Com isto, foram para o espaço as chances no Campeonato Brasileiro de 2009. Agora, a meta é apenas evitar novo rebaixamento, enquanto se monta um novo time para a Libertadores.

E, se for vitorioso em tal competição, já está previsto mais um desmanche e, consequentemente, nova campanha ridícula no Brasileirão. A torcida que se conforme: agora, na sequência de um semestre bom, virá sempre outro ruim

O dirigente que faz e diz essas coisas levou uma cadeirada de um torcedor incapaz de aceitar a submissão total do futebol à repulsiva racionália capitalista. Coitado, ainda é da fase em que os clubes, quando montavam times campeões, tentavam mantê-los a todo custo...

O cartola dos novos tempos, entretanto, já afirmou, com todas as letras: o objetivo principal do Corinthians hoje não é mais encher a sala de troféus, mas sim encher os cofres de dinheiro.

O PASSO A PASSO DA DESUMANIZAÇÃO

Veio-me à lembrança minha infância na Mooca, bairro paulistano em que tudo girava em torno de uma grande indústria, o Cotonifício Crespi.

Fabriquetas e lojas estavam instaladas ao redor, para atender as necessidades do Crespi e de seus funcionários. Estes residiam preferencialmente no bairro, como meu pai, que levava uns 20 minutos no trajeto até o serviço, a pé.

Hoje dificilmente os fornecedores dificilmente estão próximos das empresas a que seus artigos se destinam e os trabalhadores dificilmente moram nas redondezas.

Pelo contrário, chegam a perder duas horas para ir e duas para voltar, servindo-se de um transporte coletivo que seria cruel até para animais; ou de carros próprios que se arrastam pelas vias congestionadas, espalhando poluição.

Falar em perda de qualidade de vida é pouco. Melhor dizer, em português claro, que a vida de quem trabalha fora de casa se tornou um inferno.

Também me lembro do tempo em que muitos gostavam do que faziam, identificavam-se com o resultado do seu trabalho e tinham orgulho em ser bons profissionais.

Como meu avô, que exigia perfeição em todos os móveis saídos de sua marcenaria, pois era dele o sobrenome gravado na etiqueta.

Tinha a morada na frente e a fábrica nos fundos. Os funcionários veteranos tomavam café na cozinha dele, eram tratados como pessoas da família. A partir de certo tempo de casa, sabiam que o emprego era pelo resto da vida.

Era uma sociedade de classes, sim. Havia exploração, sim. Muitos homens eram machistas, racistas e homofóbicos, sim.

Mesmo assim, não há termo de comparação com a sociedade da ganância e da competitividade exacerbada em que hoje mais penamos do que vivemos.

E existia a família. Pai e filhos trabalhavam, obtendo o suficiente para uma existência austera mas digna. As mulheres tratavam de dar à prole um bom começo de vida.

Crianças tinham pelo menos seis anos inteirinhos para serem crianças, numa cidade em que podiam ser crianças, pois os negócios e os carros não tinham ocupado todos os espaços.

EMANCIPAÇÃO OU TROCA DE SENHORES?

Depois, as mulheres também foram engolidas pela engrenagem do trabalho alienado. E a renda familiar ficou exatamente a mesma, se não menor, do que quando trabalhavam apenas os homens.

A mágica besta foi vendida como emancipação. As mulheres agora orgulham-se de pagar suas contas, ter seu espaço, não depender de ninguém, etc.

Na verdade, apenas trocaram a dependência do marido (um ser humano) pela dependência do sistema (uma estrutura desumana e desumanizante).

De quebra, as crianças, jogadas desde muito cedo em creches e escolas, tornaram-se carentes de afeto e atenção, frágilizadas, agressivas, neuróticas, problemáticas.

Uma excelente frase do filme Os Suspeitos (d. Bryan Singer, 1995) : o maior truque do diabo é fazer-nos crer que ele não existe.

Da mesma forma, o maior truque do capitalismo decadente é fazer-nos crer que tudo tem de ser dessa maneira, inexistindo alternativa.

É falso: só depende de nós continuarmos presos individualmente nesse pesadelo ou dele nos libertarmos, em conjunto com os outros seres humanos.

Pois, como dizia o grande Bertold Brecht, onde vivem os homens, a ajuda só pode vir dos homens.

Um comentário:

Lavinia Yiyuan disse...

Adorei, Celso!
Um abraço,

Lavínia

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