domingo, 2 de novembro de 2008

ARAGUAIA: "O MANDANTE DAS BARBÁRIES ESTÁ NA REGIÃO ATÉ HOJE"

"Quando eu me banho no meu Araguaia
E bebo da sua água sangre fria
Bichos caçados na noite e no dia
Bebem e se banham eles são comigo

Triste guerrilha companheiro morto
Suor e sangue, brilho do corpo
Medo só

Mas se o corpo desse pó é pó
Um círio da luz dessa dor
Violento amor há de voar"
("Araguaia", Ednardo)


Minha grande companheira Taís Moraes, co-autora de Operação Araguaia, escreveu um texto maravilhoso sobre o assunto que domina como ninguém. Infelizmente, não fez uma divulgação mais ampla. Ele pode ser encontrado, p. ex., no site da Geração Editorial, que publica os livros de nós dois.

Ou aqui, pois faço questão de repartir essa preciosidade com vocês.

ARAGUAIA - UMA GUERRILHA AINDA EXISTENTE

Taís Moraes (*)

A guerrilha do Araguaia, empreendida entre 69 militantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e mais de 7.200 homens das Forças Armadas e das polícias militares dos estados do Pará e Goiás, acabou, oficialmente, em 25 de outubro de 1974, quando a última guerrilheira, Walkíria Afonso Costa – a Walk – foi delatada e presa.

Segundo depoimentos, os militares permaneceram com ela durante três dias, depois a executaram, como aconteceu com pelo menos 35 guerrilheiros.

Ora, se a nossa Constituição reza que nenhuma pessoa, em poder ou guarda do Estado, pode ser torturada, imaginem se pode ser executada.

A pena de morte, segundo a Constituição Federal, só poderá existir em tempos de guerra. Mas durante a guerrilha, o País não estava em guerra, pelo contrário, vivíamos a época do “milagre econômico” e da abertura gradual do regime.

Pesquiso a ditadura militar, especialmente a guerrilha do Araguaia, há quase dez anos. Quando publiquei o livro Operação Araguaia – os arquivos secretos da guerrilha, poucos eram os documentos oficiais conhecidos. No livro há 1167 páginas escritas por militares, isso prova o registro das operações realizadas pelas Forças Armadas.

Os militares negam existência de mais arquivos, mas quem pesquisa e conhece muitos militares, sabe tratar-se de falácia. Podem não existir provas dos excessos de autoridade, mas sabe-se que todas as mortes foram registradas, mesmo com informações falsas como a situação do óbito.

Trinta e quatro anos depois do término da caçada aos exaustos, desarmados e famintos militantes do PCdoB, vez por outra vemos nos noticiários reportagens rememorando os fatos. Pedidos de “devolução” dos corpos dos desaparecidos são feitos aos militares, e a recusa é sempre repetida.

Ora, não creio que eles consigam devolver corpos. Quem conhece a região onde ocorreu o conflito sabe que tudo ali foi modificado. Não existem matas, nem floresta. Não existem mais as fazendas, nem os pontos de referência aos quais se poderiam reportar para localizar corpos.

De mais a mais, a região do sudoeste do Pará é inundada no verão. Durante os meses de janeiro a março tudo ali é água. Além disso, há vários animais que fuçam as terras, o que impossibilita ainda mais a conservação das ossadas.

Anos atrás, durante pesquisa em Xambioá, encontrei a equipe do ex-secretário Nacional de Direitos Humanos, Nilmário Miranda, escavando as proximidades do local onde funcionou a base aérea militar. Escavando? Sim, escavando, vejam só, e destruindo, com máquinas, qualquer possibilidade de encontrar qualquer prova.

Essa mesma equipe, anos antes utilizou serviços de antropólogos argentinos para ajudar na exumação das ossadas dos guerrilheiros no cemitério de Xambioá. Retiram três ossadas jamais identificadas. A equipe, que deixou a caixa com os ossos dentro de um armário de ferro no Ministério da Justiça, sempre ignorou as claras indicações de que uma das ossadas seria a de Bérgson Gurjão Farias, primeiro guerrilheiro morto em combate.

Enviaram parte desse esqueleto para a Argentina pedindo a identificação do médico gaúcho João Carlos Haas Sobrinho, a resposta? Negativa, evidentemente.

Minha opinião, como pesquisadora e cidadã, é que este movimento em busca de corpos deveria se transformar na responsabilização dos culpados pelo crime continuado, do qual não se fala, o seqüestro de 58 guerrilheiros.

Sabemos os nomes dos oficiais participantes da Guerrilha. Sebastião Curió de Moura, o mandante das barbáries, está na região até hoje. Depois de enriquecer tomando conta da Serra Pelada, ele vive na isento de qualquer responsabilidade por seus crimes, inclusive do assassinato de um jovem guardador de carros, em Brasília. Ele comanda com mão de ferro a pequena cidade de Curionópolis/PA, de onde foi prefeito por três vezes. Curiosamente, perto da cidade há uma grande árvore com uma placa a denominando como o “Pau da Mentira”. Por qual razão?

A guerrilha do Araguaia ainda é um mistério. Ela continua a existir nos pormenores. Quase todos os sobreviventes foram indenizados, falta Danilo Carneiro, escalpelado pela roda de um jipe, quando os militares utilizaram sua cabeça para desatolar o carro da lama.

A guerrilha hoje empreendida pela verdade deve permanecer enquanto perdurar o silêncio.

Acredito que no dia em que as Forças Armadas se responsabilizarem pelo sumiço dos guerrilheiros, a luta ficará mais justa. Em 2003, a juíza Solange Salgado determinou a abertura dos arquivos da ditadura, no entanto, o governo recorreu da decisão e a adiou. Permanece ainda, o inaceitável silêncio por parte das Forças Armadas e a omissão do governo federal em relação à abertura dos arquivos que poderiam esclarecer de vez os fatos ocorridos durante o regime de exceção brasileiro.

* Taís Morais é jornalista e pesquisadora. Co-autora de Operação Araguaia – Os Arquivos secretos da Guerrilha, ganhador do Prêmio Jabuti de melhor livro-reportagem em 2006.

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