(continuação deste post)
Depois veio a "regressão em massa dos seguidores de Bolsonaro" |
Marcos Nobre, no livro Imobilismo em movimento (2013), identificou uma tensão entre o conservadorismo do sistema político institucional e o desejo de transformação social de uma "nova cultura política", manifesta pela sociedade civil: "Essas reservas profundas de energia democrática são o que há de mais precioso para a libertação da sociedade".
Muitos apostaram nessa movimentação social como a esperança para pressionar, furar ou renovar a política institucional.
As mobilizações de junho lograram algumas conquistas imediatas. Em São Paulo e no Rio, o aumento das passagens foi revogado. Alguns processos de remoção encontraram forte resistência e foram suspensos. A demolição da Aldeia Maracanã (Museu do Índio) foi cancelada. No ano seguinte, também no Rio, a categoria dos garis realizou uma greve bem-sucedida, com o apoio de grande parte da população.
O legado de junho, porém, foi bem além e se desenvolveu com robustez em alguns movimentos sociais que se estabeleceram de modo eficiente.
Identitários: bem sucedidos no impacto de sua atuação |
Com efeito, surgiram e cresceram forças de sentido igualitarista na sociedade brasileira. Os movimentos chamados de identitários foram os mais bem-sucedidos na sua capacidade de organização e no impacto de sua atuação.
(...) Registre-se ainda o surgimento de novos movimentos sociais, à esquerda e à direita. Muitos deles têm reavaliado a natureza de seus papéis, passando a buscar um acesso direto à política institucional, em vez de uma relação de pressão com os governantes.
Atesta-o a presença, em todos os espaços do espectro ideológico, de movimentos voltados principalmente à disputa pelo Legislativo: Muitas, Bancada Ativista, Quero Prévias, Rede, Agora, Rede de Ação Política pela Sustentabilidade, RenovaBR, Livres, Novo, Vem pra Rua, MBL.
Apesar das diferenças ideológicas —e, pelo menos no caso do MBL, das estratégias baixas—, são todos sintomas da formação de uma nova cultura política, com o objetivo comum de transformar o sistema político institucional.
Mas os efeitos transformadores por ora não parecem ir muito além. O gigante rapidamente foi se revelando menos progressista do que reacionário. Menos esclarecido que irracional. Menos espontâneo que titerizado por setores poderosos. Por fim, menos democrático do que autoritário.
"Menos democrático do que autoritário" |
Junho de 2013 foi uma montanha que pariu um pato —e uma récua de cavalgaduras. Chega a quase dar saudade daquelas figuras de direita da Veja e até do delírio paranoico de Olavo de Carvalho, inofensivo perto da regressão em massa dos infantilizados adoradores de Bolsonaro.
Reinaldo Azevedo, epítome da direita conservadora há alguns anos, também levou um chega pra lá rumo ao socialismo ao se declarar mais liberal que conservador e criticar as arbitrariedades do juiz federal Sergio Moro no processo contra Lula.
Rodrigo Constantino, ao ver os frankensteins que ajudou a criar (a Veja foi uma empresa de fake news avant la lettre), expressou sua decepção. Olhando para a greve dos caminhoneiros, concluiu: "Não se trata de uma greve de trabalhadores de direita. Eles não leem Olavo de Carvalho, não se deliciam com os livros liberais, não estão dentro de uma concepção de Estado mínimo".
Os fracassos da democracia liberal (de resto, mundiais) naturalmente conduziriam as coisas para algum extremo —mas não é de espantar que tenha sido em boa medida para o reacionarismo e até para fora da democracia.
(...) A relação entre violência e sociedade do espetáculo já foi bem estudada. O Brasil é um caso agudo.
"Antipetismo é um afeto de ódio" |
A dominância do registro imagético facilitou a construção desse fenômeno midiático-jurídico-parlamentar que foi o antipetismo (obviamente facilitado pelas ilegalidades cometidas pelo PT). O povo brasileiro foi cevado de antipetismo durante quase uma década.
Aos que ainda não entenderam o conceito: o antipetismo é basicamente o apagamento da dimensão estrutural do problema da corrupção, em favor de sua atribuição exclusiva ao PT, que metonimicamente passa a ser responsabilizado por todos os males do Brasil.
A lógica metonímica, aliás, vai além e estende a culpa à esquerda como um todo. Não apenas a culpa da corrupção, mas toda culpa social (e tome venezuelização, bolivarianismo e vai pra Cuba!).
Laura Carvalho identifica e ironiza esse procedimento ao chamar a consensualmente desastrosa Nova Matriz Econômica do governo Dilma de agenda Fiesp, uma vez que as medidas de juro baixo, real depreciado e desoneração dos investimentos "foram referendadas por associações patronais que, posteriormente, abandonaram o barco e apoiaram o impeachment da presidente".
O antipetismo, portanto, é menos um conjunto de argumentos do que um afeto. Um afeto de ódio, já que fundado na substituição da estrutura por uma única instância concreta...
... Meu ponto, no fundo, é simples. Junho de 2013 representou para muitos a esperança de que uma nova cultura política havia se formado e irrompido, e que poderia cumprir a promessa ali vislumbrada de interromper o funcionamento do sistema político, transformando-o.
"Uma espécie de retrato de Dorian Gray" |
... Meu ponto, no fundo, é simples. Junho de 2013 representou para muitos a esperança de que uma nova cultura política havia se formado e irrompido, e que poderia cumprir a promessa ali vislumbrada de interromper o funcionamento do sistema político, transformando-o.
A tomada do Congresso Nacional por milhares de manifestantes era o afresco a retratar a luta da multidão esclarecida contra a tirania peemedebista.
Cinco anos depois, a pintura romântica parece dar lugar a uma espécie de retrato de Dorian Gray. As panelas seletivas, o impeachment farsesco, os quase 20% de Bolsonaro, o Escola sem Partido, os caminhoneiros militaristas, a histeria generalizada transformaram o sonho da democracia direta no pesadelo da regressão autoritária...
...Não é difícil entender as causas dos protestos, nem a sua legitimidade; isso parece pacificado. Mas talvez seja ainda cedo para avaliar o legado de junho quanto ao despertar da sociedade civil, aos ataques ao sistema representativo e às consequências políticas e sociais que esse acontecimento segue produzindo. Junho é o mês que não terminou.
Por ora, como escreveu o antropólogo Antonio Risério numa rede social, nosso retrato é esse: "Um país pirado, com elites podres e população perdida". Estamos espremidos, de um lado, por um sistema político completamente apodrecido; e, de outro, por uma nova cultura política que em larga medida não é nova —e chega a nem ser política. (por Francisco Branco, poeta, compositor e filósofo)
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