segunda-feira, 4 de junho de 2018

O GIGANTE ACORDOU REACIONÁRIO, IRRACIONAL E MANIPULADO – 1

JUNHO DE 13 FOI DE SONHO 
DEMOCRÁTICO A PESADELO AUTORITÁRIO

Francisco Bosco afirma que a pintura romântica de cinco anos atrás parece dar lugar a retrato de Dorian Gray


jornalista Rachel Sheherazade, o MBL e o general Eduardo Villas Bôas foram atacados em suas redes sociais por terem criticado a greve dos caminhoneiros.

A turba acusou a princesa do conservadorismo e o militar de serem vendidos, declarou-se decepcionada com Kim Kataguiri (cofundador do Movimento Brasil Livre) e, pasmem, tachou a posição deles de... comunista.

Aquilo que até 24 horas antes era percebido por muitos como uma direita imoderada agora é deslocado de sua posição no espectro ideológico —rumo à esquerda!— pela ação de uma força tão extremista que já não cabe nos limites do quadro político democrático.

A coisa é desconcertante. Sheherazade, para quem não se lembra, é aquela que alegou legítima defesa coletiva em favor dos justiceiros que não somente espancaram um adolescente negro acusado de assalto como também o prenderam num poste, pelo pescoço, com uma tranca de bicicleta.
Greve dos caminhoneiros revelou a existência de uma turba neodireitista tão radicalizada...
O MBL é, na definição do professor Wilson Gomes, uma startup que promove o ódio político. E, pode-se acrescentar, produz e dissemina fake news como estratégia de convencimento.

Villas Bôas, além de representar o Exército, é o general que tuitou, na véspera de o Supremo Tribunal Federal julgar a possibilidade de Lula ser preso após decisão em segunda instância, que os militares estavam atentos e zelando pelas instituições.

Que essa turma seja percebida, por outra turma, como insuficientemente radical, isso ajuda a compreender o estado da arte da nova cultura política brasileira.

Durante os anos do lulismo, assistia-se com perplexidade renovada às alianças do Partido dos Trabalhadores com personagens notoriamente corruptas e/ou regressivas do sistema político nacional. De Sarney a Renan Calheiros, de Severino Cavalcanti a Eduardo Cunha, passando por Maluf, a conciliação do inconciliável desenhava uma lógica, fartamente descrita: a estratégia (...) de dirigir as forças conservadoras, em vez de confrontá-las.
...que tacha de comunistasvendidos os gurus do seu lado.

O filósofo Marcos Nobre nomeou de peemedebismo essa força conservadora e fisiológica que se instalou à larga no Parlamento e funcionou como o fiel da balança desde o começo da Nova República.

Tanto Fernando Henrique Cardoso como Lula foram capazes de no máximo dar algum sentido ao país sem entrar em choque com o peemedebismo. O governo Lula, de conservação e mudança, reprodução e superação, como escreveu André Singer em Os sentidos do lulismo (2012), realizou transformações à custa da manutenção e até do aprofundamento da lógica peemedebista.

Essa seria uma das contradições que levariam ao fim da pax lulista em junho de 2013. Não faltaram, como se sabe, bases materiais para os protestos. Apesar do pleno emprego e do PIB ainda em expansão, a classe média, protagonista dos atos, saíra perdendo nos anos anteriores.

Laura Carvalho, em Valsa Brasileira (2018), mostra os números que permitem falar de um squeezed middle, um miolo espremido financeiramente entre o crescimento da renda da elite e o dos mais pobres: "Os 50% mais pobres aumentaram sua participação na renda total de 11% para 12% entre 2001 e 2015" e "os 10% mais ricos subiram a sua parcela de 25% para 28%".
Lula e FHC evitaram choques com os fisiológicos e conservadores
Enquanto isso, "os 40% intermediários reduziram sua participação na renda de 34% para 32% naqueles anos".

Mas me parece correto dizer que o sentido geral de junho de 2013 era a revolta acumulada contra a tendência progressivamente privatista da democracia liberal (tiveram o mesmo sentido o Occupy Wall Street, em Nova York, e os Indignados, em Madri), que comprimia cada vez mais o espaço do comum, e contra um sistema institucional endógeno, blindado, que asfixiava a participação política, reduzindo ao mínimo possível sua intensidade.

A pauta original do aumento da tarifa do transporte público o atesta. Não era só por 20 centavos. Estava em jogo o poder empresarial submetendo o poder público e o interesse dos cidadãos; um péssimo serviço a preço alto; péssimas condições de circulação. Estava em jogo, em suma, o direito à cidade.

A proximidade da Copa do Mundo e da Olimpíada do Rio, por sua vez, adensava a sensação de um sistema político encastelado. 

Os custos exorbitantes das obras eram por si sós absurdos, da perspectiva orçamentária, diante da precariedade dos serviços públicos.
Mundial de 2014: "um fedor de corrupção no ar"

Além disso, os gastos crescentes com estádios, muitas vezes feitos sem licitações, deixavam um fedor de corrupção no ar. E o autoritarismo ainda mostrava a sola da bota nas remoções compulsórias de pessoas pobres.

Tudo isso já foi muito repetido.

A democracia sob aparelhos sofreu então um choque de alta intensidade. O começo do fim do lulismo deflagrou o que chamo de passagem da cultura à política na autoimagem social do país.

As pessoas foram para as ruas. As redes sociais digitais haviam se consolidado como uma vasta mídia (e metamídia), contando já àquela altura com dezenas de milhões de usuários no Brasil. Sua natureza de autocomunicação fez surgir nelas um novo espaço público marcado pela polarização e pela explicitação de todas as tensões.

No lugar do país do futebol, nos tornamos o país da política: lá onde se dizia que todo brasileiro era um técnico, agora todo brasileiro se revelava um analista de conjuntura. Em suma, o gigante acordou.

Escrevendo em cima do lance, muitos celebraram a explosão das ruas (eu entre eles).

Houve setores que se opuseram. A chamada grande imprensa tentou diminuir o acontecimento num primeiro momento, em seguida criminalizou os vândalos e por fim procurou capturar o sentido da irrupção... 
"Um coletivo horizontal e heterogêneo"
Os governistas também foram contra, é claro, pois rapidamente perceberam o risco envolvido. Afinal, não importava o caráter difuso das pautas; no limite, a conta sobraria no colo dos mandatários de turno (foi o que aconteceu).

Por outro lado, tanto uma esquerda marxiana crítica ao PT quanto uma esquerda filiada às ideias de Negri apoiaram e participaram dos atos. A primeira viu em junho uma amostra grátis de democracia participativa. A outra viu a materialização da experiência política da multidão.

Diferentemente da noção de povo (unívoca e coesa) e de classe operária (restritiva, sem correspondência com a realidade contemporânea do trabalho e da luta de classes), o conceito de multidão designa um coletivo horizontal e heterogêneo, cujo agenciamento é capaz de acolher singularidades e se transformar em potência. Com efeito, o que se viu em junho de 2013 foi a transformação da massa em multidão. (por Francisco Branco, poeta, compositor e filósofo)
(continua neste post)

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