segunda-feira, 3 de abril de 2017

MÚSICOS E CANÇÕES QUE ILUMINARAM A MINHA VIDA (parte 3)

(os posts anteriores desta série do Celso Lungaretti estão aqui aqui)
.
Jards Macalé chamou a atenção do grande público em 1969, com sua experimental "Gotham City", muito vaiada no decadente 4º FIC da TV Globo (poucos notaram que o refrão "Cuidado! Há um morcego na porta principal!" era uma alusão velada ao terror ditatorial). 

Cantor, compositor, arranjador, violonista e produtor musical, o carioca Macalé crescera num ambiente muito ligado à música (filho de um acordeonista com uma pianista) e fizera vários cursos de aprimoramento. 

Já em 1965 aparecia no lendário Show Opinião, como violonista na temporada paulistana. Depois integrou o movimento tropicalista como músico e produtor, tendo atuado com Caetano Veloso e Gal Costa, principalmente. 

Sua grande fase de deu na década de 1970, quando lançou LPs memoráveis, em especial o de estréia: Jards Macalé (1972), com canções que fundiam na medida exata o samba do morro, a bossa-nova, o blues e o brega (seresta, samba-canção e outras reminiscências dos anos 50). Dele constam as clássicas "Vapor barato", "Movimento dos barcos", "Rua Real Grandeza", "Mal secreto", "Anjo exterminado" e "Let's play that". Um arraso!

Mas, a canção do Macalé que mais mexeu comigo foi "Soluços", de um compacto duplo que ele lançou em 1969 e continuava sendo intensamente curtido nas rodas e comunidades alternativas quando fiz parte de uma, em 1972. 

Era a fase em que, após a derrota da luta armada, tentávamos sobreviver espiritualmente nos nossos refúgios, amparando-nos uns aos outros e buscando nas drogas uma alternativa à realidade devastadora. 

Está tudo em "Soluços": as referências à maconha (os "lenços de papel" que "se desfazem quando molham", os olhos "vermelhos, irritados", os "óculos escuros" para disfarçar) e também o desespero que nos deixava com ganas de gritar e de chorar.
.
*   *   *
.
Jorge Ben Jor despontou no cenário da bossa-nova como um sambista diferente, com muito swing na música e uma cativante ingenuidade nos versos.

Carioca nascido em Madureira e criado no Rio Comprido, ganhou seu primeiro violão aos 18 anos e logo estava se apresentando nos bares e boates do famoso Beco das Garrafas.

Daí para o primeiro grande sucesso foi um pulo: "Mas que nada", por ele definida (na própria letra) como um "samba que é misto de maracatu", o projetou até nos Estados Unidos...

Muito prolífico, conseguia inventar músicas para cada uma de suas incontáveis namoradas, sem tornar-se repetitivo. Vale até lembrar um episódio de 1983, quando minha amiga Rosi Campos, que ainda se dividia entre sua vocação de atriz e o ganha-pão na gravadora Som Livre, encomendou-me o press release de um LP ao vivo do Jorge Ben Jor que não trazia absolutamente nada de novo. 

Quebrei a cabeça até encontrar um gancho: como nele havia canções de todas as suas fases, inventei que seria um disco comemorativo dos 20 anos de carreira e explanei longamente sobre sua trajetória. Colou, jornais do Brasil inteiro entraram na minha onda, publicando textos enormes. Mas, o artista se queixou à Rosi: "Pô, esse cara entregou a minha idade. Agora as namoradas ficaram sabendo que eu não sou tão jovem como dizia..."

E, ao enveredar por assuntos sérios, era capaz de criar um clássico como "Charles Anjo 45", reverenciando um tipo de marginal estimado pela comunidade ("Robin Hood dos morros/ Rei da malandragem/ Um homem de verdade/ Com muita coragem") que foi sumindo a partir do boom das drogas pesadas, mas deixou saudades entre o povão e na música – em 1933 já era imortalizado por Wilson Batista em "Lenço no pescoço".

E em 1971, quando o Mohammed Ali era um símbolo da luta pela afirmação social dos negros, compôs esta notável "Cassius Marcelo Clay", vergastando os racistas com versos insolentes como "Sucessor de Batman, Capitão América e Superman", "Tem a postura da Estátua da Liberdade e a altura do Empire State", bem no espírito do homenageado.
.
*   *   *
.
Luiz Vieira, natural de Caruaru, é outro superlativo compositor pernambucano que mostrou ao Sul Maravilha a realidade sofrida e a riqueza musical do Nordeste, tão importante na época quanto Luiz Gonzaga, embora o rei do baião hoje seja mais lembrado porque os baianos tropicalistas enchiam a sua bola e colocavam o outro em segundo plano.

Foram injustos, talvez porque os grandes sucessos de Luiz Vieira tenham sido canções românticas e/ou singelas, inclusive a que não pode faltar  em nenhuma relação das 10 melhores músicas brasileiras de todos os tempos: "Menino de Braçanã". As outras: "Prelúdio pra ninar gente grande", "Paz do meu amor", "Inteirinha" e "Balada do amor sublime"

Mas, Luiz Vieira compôs grande parte de suas músicas com ritmos nordestinos, só que elas geralmente não aconteceram, inclusive "Catira" (aquela da qual mais gosto) e a politizada "Carcará de botina e chapelão" ("Quero ver o lavrador/ Plantar e poder colher/ E o sertanejo menino/ Sorrindo poder crescer/ Fazer conta de somar/ Dividir, multiplicar/ E quando receber carta/ Não ter que pedir pros outros ler").
Meu companheiro de luta armada José Raimundo da Costa, o Moisés, também de Pernambuco, contou que o Luiz Vieira chegara a ser um agitador de feira do PCB: cantava suas músicas subversivas e fugia correndo pelo meio da multidão quando a polícia getulista chegava.

Mas, como também tive lá minhas separações dolorosas, a canção do Luiz Vieira que mais me marcou foi "Riram tanto", na qual lamenta a intromissão dos que tudo fizeram para arruinar seu romance com uma mulher de condição social superior ("Pensaram tanto em você/ Mas ninguém desejou ver/ O que acontecia a mim"). Tinha tudo a ver com o que sucederam comigo, salvo que os protetores em questão agiram assim por outro tipo de preconceito...
.
*   *   *
.
Maria Bethânia foi um caso de amor à primeira vista: adorei sua interpretação rústica e agressiva de "Carcará", magra como uma flagelada do Nordeste. Foi a primeira canção de protesto pela qual me apaixonei, em 1965, antes mesmo de me tornar marxista (a "Canção nordestina" do Vandré é cronologicamente anterior, mas só vim a conhecê-la lá por 1967). 

Soube depois que a Bethânia participava de espetáculos semi-amadores desde a juventude, ao lado do irmão Caetano e outros futuros expoentes do movimento tropicalista, como o Gilberto Gil e o Tom Zé. 

Chamou a atenção de Nara Leão, que a indicou como substituta quando problemas de saúde a impediram de continuar atuando no Show Opinião. "Carcará" fazia parte do repertório, tanto que a Nara também gravou, mas no estilo balançado da bossa-nova.

Muito marcante também é a inclusão de "É de manhã", cantada por Bethânia, na trilha sonora do filme O Desafio, do Paulo César Saraceni; e a sua versão de "Eu vivo num tempo de guerra", a adaptação que o Teatro de Arena fez da poesia "Aos que virão depois de nós", do Brecht.

Tal fase durou pouco. Talvez para não ficar conhecida como cantora de uma música só, ou porque sua personalidade a predispusesse mais para a doçura do mel do que para a rudeza do Agreste, Bethânia engaiolou o carcará e partiu para outra, resgatando Noel, gravando pontos de umbanda, idealizando o grupo Doces Bárbaros, etc.

Contudo, assim como no caso da Elis Regina, quanto melhor cantora ela se tornava em termos técnicos, mais saudade eu sentia do seu estilo contundente e impactante de outrora. 
.
*   *   *
.
Maria Odette é até hoje lembrada como a cantora de voz forte e interpretação empolgada que defendeu em festivais de MPB duas das melhores composições de Caetano Veloso em todos os tempos: "Boa palavra" e "Um dia".

Paulista de Itapira, já aos sete anos de idade participava de uma programação artistico-musical de sua cidade. Em 1959 a família se mudou para a capital e ela, após vencer uma competição de calouros, foi contratada pela TV Paulista - Canal 5 (emissora depois vendida para a Globo), na qual atuou também como tele-atriz juvenil. Chegou a conquistar um Prêmio Roquete Pinto, em 1961.

Foi exatamente "Boa palavra" que a projetou, em 1966, quando obteve o quinto lugar no Festival da TV Excelsior. Seguiram-se participações nos congêneres da Record e da Globo, vários compactos lançados e a diminuição das atividades artísticas a partir da metade da década de 1970, cujo motivo desconheço.

Mas, tinha bom gosto na escolha da repertório e gravou belas canções daquele período, inclusive algumas pouco conhecidas, como "Canção do cangaceiro que viu a lua cor de sangue", "Dia da vitória", "Espanto", "João e Maria", "Levante", "O canto do homem só", "Quibundo", "Trapiá" e "Ultimatum". Mereceu este espaço.
.
*   *   *
.
O carioca Milton Nascimento morou da infância à mocidade em Minas Gerais, tendo aí recebido as influências determinantes em sua arte.

Filho de uma domestica que foi seduzida e abandonada pelo namorado, logo ficou órfão e a avó, uma pobre viúva, teria muita dificuldade para o criar se não recebesse uma oferta providencial: uma professora de música recém-casada não conseguia engravidar e se ofereceu para adotar Milton, que partiu com o casal para Três Pontas, MG.

A mãe, que estudara com Villa-Lobos, presenteou-o com uma sanfona logo aos quatro anos de idade, estimulando-o a aprender música e explorar sua voz. 

Aos 13 anos já era crooner nos bailes de sua cidade. Estudava contabilidade ao mesmo tempo em que aprendia a tocar piano com a mãe de Wagner Tiso

Aos 20 se mudou para Belo Horizonte, onde prestou vestibular de Economia, passando a trabalhar num escritório de contabilidade e a participar de conjuntos de jazz e samba, como cantor e contrabaixista. Acompanhando um desses grupos, o Sambacana, quando foi gravar o LP de estréia no RJ, Milton se transferiu com armas e bagagens para o Sul Maravilha.

Os grandes festivais de MPB o projetaram. No de 1966 da TV Excelsior, interpretou "Cidade Vazia" (de Baden Powell e Lula Freire), a 4ª colocada. Mas, a consagração viria ao classificar três músicas de sua autoria no FIC de 1967 da Globo, uma das quais belíssima: "Travessia" (dele e do Fernando Brant). Foi 2º lugar, mas quem era do ramo a considerou infinitamente superior à campeã, a carnavalesca "Margarida", de Gutemberg Guarabyra.

Aí sua carreira engrenou de vez: passou a lançar álbuns todos os anos, a ser gravado por intérpretes de primeira linha (Elis Regina em especial) e a magnificar a MPB com clássicos inesquecíveis como "Aqui é o país do futebol", "Caçador de mim", "Canção da América", "Canção do sal", "O cio da terra", "Comunhão", "Em nome do Deus", "Fé cega, faca amolada", "Maria, Maria", "Milagre dos peixes", "Morro velho", "Nada será como antes", "Nos bailes da vida", "Pablo", "Para Lennon e McCartney", "Paula e Bebeto", "Pelo amor de Deus", "San Vicente"... (ufa!)

Por último, um episódio pitoresco: em 1973, quando a censura proibiu quase todas as letras do álbum que viria a ser o Milagre dos peixes, os realizadores decidiram não as alterar e submeter de novo às otoridade, mas sim manter apenas as músicas, os lamentos vocais do Milton e o experimentalismo do Som Imaginário (sons latino-americanos + rock progressivo) e de Naná Vasconcellos (ritmos africanos). Ficou um arraso!

A música em destaque aqui não poderia ser outra além de "Sentinela", o emocionante tributo a Che Guevara, na versão sofisticadíssima de 1980, com a participação de Nana Caymmi.   
.
*   *   *
.
Quando, no finalzinho da música "Eles", Caetano Veloso exclamou "Os Mutantes são demais!", não estava exagerando. O trio formado por jovens do bairro paulistano da Pompéia – Rita Lee Jones, filha de um dentista estadunidense e neta de italianos, mais os irmãos Arnaldo e Sérgio Dias Baptista – caiu como uma luva para o tropicalismo.

Fortemente influenciados pelos Beatles, eles chamaram a atenção de Ronnie Von, que os apresentou no seu programa dominical em outubro de 1966; acabariam sendo atração permanente por alguns meses, preferindo depois ficar livres para aceitar outros convites. 

Foi assim que conheceram o maestro Rogério Duprat, o gênio que produziria os arranjos primorosos dos álbuns e performances da turma tropicalista.

Em setembro de 1967, quando Gilberto Gil e Caetano Veloso se preparavam para lançar espetacularmente o movimento no 3º festival de MPB da TV Record, o primeiro não estava gostando do dos músicos que Duprat escolhera para "Domingo no parque", então o maestro lhe sugeriu os Mutantes como alternativa. 

Eles se saíram tão bem que se tornaram instantaneamente o principal conjunto tropicalista, que acompanharia os astros em álbuns, festivais e outras apresentações ao vivo, além de lançarem ótimos trabalhos como grupo. Eram roqueiros da geração iê-iê-iê, criativos, irreverentes e dados a se exibirem com fantasias bem boladas, bem no estilo Sgt. Peeper.

Foi uma dúvida cruel escolher a música a ser incluída aqui. Adoro a paródia que os Mutantes fizeram de "Chão de estrelas", porque veio ao encontro do que eu sempre achara da canção de Orestes Barbosa (aqueles versos enfeitados e pernósticos não têm absolutamente nada a ver com a crua realidade das favelas!) e porque deixaram o crítico José Ramos Tinhorão, musicalmente conservador até a medula, espumando de raiva. 

Mas, é fortíssima "Meu refrigerador não funciona", com seu impagável non sense: tanto desespero em clave bluesística (e que incrível performance a de Rita Lee!) por um motivo tão banal...
.
*   *   *
.
Capixaba que a família levou para o Rio de Janeiro quando ela tinha apenas um ano de idade, a cantora Nara Leão foi uma espécie de contraponto às interpretações arrebatadas de Elis Regina na chamada era dos festivais.

Discreta, charmosa, com voz sumida e uma ótima escolha de repertório, conseguiu ser uma musa da fase das canções de contestação política e social ("Acender as velas", "Berimbau", "Marcha da 4ª feira de cinzas", "Pede passagem", "Opinião") e uma ilustre coadjuvante do tropicalismo ("Deus vos salve esta casa santa", "Ladainha", "Lindonéia", "Mamãe coragem"), sem que ninguém ousasse chamá-la de traíra, acusando-a de dormir com o inimigo. Os cruzados da MPB sem guitarras elétricas foram mais condescendentes com ela do que com o Jorge Ben Jor...

Em 1957, aos 15 anos já estava enturmada com os artistas que criariam a bossa-nova... porque era no apartamento dos seus pais, em Copacabana, que a turma toda se reunia. Depois do golpe de 1964, como estrela do Show Opinião, sua carreira deslancharia de vez. Foi graças a ela que um sem-número de iniciantes talentosos tiveram suas primeiras composições gravadas, começando a tornar-se conhecidos.

É mais lembrada por sua interpretação de "A banda" no 2º festival da Record, quando a organização esdruxulamente permitiu que a mesma música fosse sempre apresentada duas vezes, uma com ela cantando e a outra na voz de Chico Buarque. Mas, prefiro destacar "A estrada e o violeiro", por ter uma das melhores letras da MPB em todos os tempos.
.
*   *   *
.
Descendente da filantropa Perola Byington. a cantora carioca Olívia Byington, com sua voz poderosa e interpretações agressivas, mereceria constar desta relação de qualquer maneira, mas tenho de reconhecer que chamou a minha atenção, principalmente, o seu LP de estréia, Corra o risco, que gravou no ano de 1978 em parceria com o lendário conjunto  A barca do sol. também do Rio de Janeiro.

Até porque as canções dos barqueiros nele incluídas se casaram às mil maravilhas com seu estilo agressivo, quase gritado. Caso desta superlativa "Fantasma da ópera".

Nenhum comentário:

Related Posts with Thumbnails