(o início desta série do Celso Lungaretti está aqui)
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O compositor, cantor e multi-instrumentista Egberto Gismonti deu sequência ao trabalho do grande Heitor Villa-Lobos, de fazer uma releitura erudita das raízes musicais brasileiras; com a vantagem de ser também o intérprete de suas criações e de atingir os admiradores de uma MPB mais sofisticada, enquanto o maestro Villa-Lobos ficava mais restrito aos apreciadores da música clássica.
Ambos, inclusive, realizaram magníficos trabalhos com canções indígenas. Em 1978, Gismonti chegou a morar durante algum tempo com os índios Iaualapitis, do Alto Xingu, com os quais dialogava sobretudo através da música, tendo tal vivência marcado profundamente seu álbum Sol do meio-dia.
Ele despontara para o grande público no Festival Internacional da Canção de 1968, com a belíssima "O sonho", interpretada pelos Três Morais. Era, ainda, uma canção com letra, mas Gismonti se voltaria cada vez mais para a música exclusivamente instrumental.
Durante algum tempo a Emi-Odeon lhe garantia o lançamento de pelo menos um álbum por ano, mas a fonte foi secando, ao mesmo tempo em que gravadoras jazzísticas europeias lhe davam guarida, tanto para realizar discos solos como para projetos conjuntos com outros artistas de vanguarda de vários países.
Daí resultou, p. ex., o pungente álbum Mágico (1979), cuja melancolia parece refletir o próprio clima gelado de Oslo, onde foi gravado – mas, claro, se deve em maior parte à performance superlativa do saxofonista norueguês Jan Garbarek (o baixista estadunidense Charlie Haden completou o trio).
A faixa "Bailarina" é a melhor do álbum, na minha opinião.
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Mal alcançando o microfone aos 11 anos... |
Sua interpretação visceral de "Arrastão", no Festival da Excelsior de 1965, escancarou-lhe as portas do sucesso, tendo sua condição de apresentadora e atração maior do principal programa de TV dedicado ao gênero (O fino da bossa) feito dela o grande nome da MPB na segunda metade dos anos 60.
...e já no tempo do furacão Elis. |
Após a assinatura do AI-5, quando a intimidação e a censura esvaziaram aquele movimento musical, Elis aprimorou-se na técnica do seu ofício, fez belos álbuns, conseguiu emplacar mais de 1.200 apresentações com seu show Falso brilhante... mas nunca voltou a emocionar tanto aos que a tínhamos visto despontar para o estrelato. Até porque a emoção havia sido praticamente suprimida da arte e da vida dos brasileiros.
Sua morte como consequência de overdose em 1982 lembrou muito a tragédia de grandes roqueiros (Janis Joplin, Jim Morrison, Jimi Hendrix, etc.) que pareceram sair do palco da vida quando já não conseguiam igualar seus fulgurantes desempenhos anteriores e arrancavam os cabelos por isto.
Eis o que aficionados conseguiram reconstituir da atuação que transformou Elis numa estrela:
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Nascido e criado no sertão, conseguiu formar-se arquiteto em 1964, lançou seu primeiro compacto em 1968 e o primeiro LP em 1972. Encarava a música como sua principal ocupação, buscando na arquitetura apenas um "suporte financeiro".
Caracterizava-se por manter o visual sertanejo na carreira artística e por utilizar o jargão regional nas suas letras, que mostravam o cotidiano sofrido dos nordestinos e questionavam as injustiças sociais (algo como um Vandré dizendo as mesmas coisas no linguajar do povão).
Ao mesmo tempo, partia para experimentos musicais sofisticados, compondo óperas e gravando discos com expoentes eruditos como Arthur Moreira Lima. É o caso desta versão mais sofisticada de "O peão na amarração":
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Prostrou-se ao mercado e, aderindo ao som banal que a indústria fonográfica martela dia e noite na cabeça de suas vítimas, tornou-se mais um dentre tantos e tantos fabricantes de ruídos populares (como disse Paulo Francis a respeito de Caetano Veloso). Antes era artista e era único.
Quem quiser saber quão grande ele foi um dia, deve escutar o álbum que gravou em 1981 na Espanha, Traduzir-se, com a participação de monstros sagrados do flamenco como Joan Manoel Serrat e Camarón de la Isla; e seu superlativo LP de 1975, Ave noturna, trazendo pérolas como "Astro vagabundo", "Beco dos baleiros", "Estrada de Santana" e esta dilacerante "Última mentira".
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Ela era assim em 1967... |
Gatos escaldados, ambos não quiseram mais expor-se à imbecilidade ululante. Então, para surpresa geral, quem apareceu para defender a composição que ambos haviam inscrito, "Divino maravilhoso", foi uma desconhecida com visual agressivo e cabelos desgrenhados, introduzida como Gal Costa.
Passada a surpresa, espalhou-se a notícia de que se tratava de uma transfiguração da meiga e tímida Maria da Graça Costa Penna Burgos, que ainda no ano anterior estreara em LP dividindo com Caetano Veloso os vocais de canções suaves, com arranjos acústicos.
...e ficou assim no ano seguinte. |
Surpreendentemente, ela não só tinha voz potente, como desandou a usá-la até quando não deveria. Sua fase tropicalista é marcada por interpretações gritadas (quase arrebentava nossos tímpanos em "Meu nome é Gal"!), como se tentasse ser a Janis Joplin brasileira. Não passou nem perto, mas, sem dúvida, deixou uma forte marca na MPB.
Uma das canções que melhor se adequaram ao estilo que ela estava tentando adotar foi "Vapor barato", um clássico de Jards Macalé e Wally Salomão.
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"O que foi que fizeram com ele? Não sei. |
Cantores/compositores correndo na faixa do protesto político e social havia outros, como Sérgio Ricardo e Gilberto Gil; eu percebia, contudo, algo diferente na forma como Vandré dizia praticamente as mesmas coisas: a emoção.
Seu canto passava a impressão de que ele acreditava profundamente na mensagem transmitida em cada verso.
Caso do grito que ele solta no meio da "Canção nordestina", começando lá embaixo e subindo até nos arrepiar até o fundo da alma ("E essa dor no coração/ aaaaaaAAAAAAIIIIIIIII, QUANDO É QUE VAI SE ACABAR?!"). Não se faziam tais coisas na música popular daquele tempo.
Também suas canções de amor sofrido são tocantes ao extremo. "Pequeno concerto que ficou canção" é um arraso: "Ah, eu vou voltar pra mim,/ seguir sozinho assim,/ até me consumir ou consumir toda essa dor,/ até sentir de novo o coração capaz de amor!".
Ele era o único dos compositores revolucionários que se colocava invariavelmente como personagem de suas músicas, o que lhes aumentava muito o impacto. Mas, não percebia o perigo embutido em versos como "Se um dia eu lhe enfrentar,/ não se assuste, capitão:/ só atiro pra matar/ e nunca maltrato, não": o de os ouvintes passarem a ver mesmo nele um guerrilheiro e dele cobrar uma postura de guerrilheiro. Noblesse oblige, Vandré até tentou corresponder a tais expectativas.
"Só sei que esse trapo, esse homem foi um rei" (Benito Di Paula) |
Como no tempestuoso 1968, quando ele ousou o que nenhum outro ousara nem ousaria: atirar uma estrofe na fuça dos milicos, lançando-lhes um desafio altaneiro: "Há soldados armados, amados ou não,/ quase todos perdidos de armas na mão./ Nos quartéis lhes ensinam antigas lições,/ de viver pela pátria e morrer sem razões".
Teve de deixar o País e, no exílio, percebeu como lhe fazia falta a firmeza ideológica de um autêntico revolucionário. Era um artista dos melhores, mas, ainda assim, apenas um artista. E não aguentou a barra de ser estranho em terra estranha, com a saúde debilitada e cheio de problemas psicológicos, amplificados pelas drogas.
Tomou a decisão desastrosa de negociar com os militares a volta ao Brasil, tendo, na chegada, sido praticamente sequestrado e confinado durante 58 dias numa clínica carioca. Não tenho a mais remota dúvida de que sofreu uma lavagem cerebral e reprogramação mental. O resultado é que nunca mais foi o mesmo.
Considero-o um caso similar aos de Garcia Lorca e Victor Jara, que foram abatidos como cães pelos fascistas; a Vandré causaram a morte espiritual, que talvez seja pior ainda.
O LP que gravou em 1973 na França, Das terras de benvirá, é com certeza o mais doloroso que escutei na vida – e, ainda, assim, de cristalina beleza. Ouçam a faixa-título e saibam por quê.
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No contato profissional que tive com ele certa vez, Gilberto Gil me causou ótima impressão. Boa gente como costumam ser os baianos da gema, brincalhão, aberto para abordar qualquer tema.
No final da maratona (eu colhia informações para escrever uma revista inteira sobre ele), a coisa parecia mais uma conversa de velhos amigos do que uma entrevista propriamente dita.
Por ele ser a simpatia em pessoa, até evitei mais tarde criticá-lo por haver aceitado ser ministro da Cultura sem real disposição para lutar contra os poderosos interesses que avassalavam o setor e o reduziam à inocuidade e mediocridade.
Sei que é ingenuidade, mas sempre sonho com músicos fazendo o que pregam nas suas letras. O Gil, com certeza, não cumprirá aquilo a que se propunha meio século atrás, lá no comecinho de sua trajetória: "Ainda viro este mundo/ em festa, trabalho e pão!".
São também da esquecida canção "Viramundo" estes versos que me inspiram até hoje: "Prefiro ter toda a vida/ a vida como inimiga/ a ter na morte da vida/ minha sorte decidida". Parece que eu acredito mais neles do que o autor.
Enfim, como ninguém é perfeito, mais vale lembrarmos a coragem que Gil teve para peitar a ditadura em 1968, lançando contra ela uma contestação global (política, ideológica, estética, moral, sexual, o escambau...); sua enorme contribuição para que os brasileiros nos percebêssemos como realmente somos, eternos explorados e irmãos siameses de outros explorados como os povos africanos, por mais que vivamos com a cabeça em Hollywood e Miami; e os muitos biscoitos finos que saíram do seu forno ao longo das décadas, inspirando-nos sonhos, ideias e ações.
Como esta sensível e nostálgica "A rua" (tomara que ele tenha mesmo voltado para matar a saudade!).
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O bruxo Hermeto Pascoal é outro dos grandes nomes brasileiros da música instrumental, misturando no seu caldeirão sonoridades da natureza, ruídos que extrai de utensílios caseiros ou instrumentos exóticos por ele inventados, raízes nordestinas, influências jazzísticas, etc.
O resultado é a alternância de passagens brilhantes e outras nem tanto.
Sua originalidade artística e figura bizarra o tornaram arroz de festa de festivais internacionais, principalmente o de Montreux, na Suíça. Mas, às vezes fica a impressão de que todas as suas esquisitices são mais pirotecnias para disfarçar uma falta de espinha dorsal nas suas músicas.
Como esta "Gaio da roseira", que começa e acaba com o mesmo refrão nordestino, tendo muito experimentalismo musical no meio (fórmula que até o rock já utilizou largamente, começando por "In-A-Gadda-Da-Vida", do Iron Buterfly, em 1968). Enfim, é interessante e chega a ser bem agradável em certos trechos, então vale a pena conhecermos, mas sem expectativas exageradas.
Itamar Assumpção entra aqui como representante dos artistas de vanguarda da capital paulista que, entre 1979 e 1986, se uniram num movimento para alavancar a produção independente e sacudir o monopólio das grandes gravadoras, tendo o teatro Lira Paulistana como seu quartel general. Também estavam nesta jogada o Arrigo Barnabé, Tetê Espíndola, Grupo Rumo, Premeditando o Breque e Língua de Trapo, entre outros.
O Arrigo Barnabé era o mais aclamado da turma, mas sempre me pareceu um genérico nacional do Frank Zappa & The Mothers of Invention.
Já o Itamar foi mais autêntico, com sua mistura de rock, funk e gafieira. "Nego Dito", auto-louvação de um marginal pé de chinelo, é uma graça.
O cantor, pianista e compositor Ivan Lins se tornou conhecido a partir do 2º lugar que obteve no decadente Festival Internacional da Canção de outubro de 1970, com "O amor é meu país". Ele e o Gonzaguinha foram as únicas revelações, cabendo a vitória à intragável "BR-3".
Mês e meio depois, a Globo lançava o programa semanal Som Livre Exportação, comandado por Ivan Lins e Elis Regina, que durou quase nove meses, tendo projetado, p. ex., Tim Maia, Aldir Blanc e César Costa Filho.
Músico cujas influências principais eram a bossa-nova, o jazz e o soul, destacava-se pelas performances empolgadas, sem ser particularmente original nem brilhante. Tinha como principal parceiro Vitor Martins, cujas letras muitas vezes eram de esquerda soft.
"Começar de novo", contudo, é uma bela canção da dupla que não poderia faltar aqui – até porque, nestes tristes trópicos, somos eternos Sísifos, obrigados a sempre recomeçar, sem que jamais a pedra se mantenha no topo da montanha.
Com os Mutantes, em 1967: "Domingo no parque". |
No final da maratona (eu colhia informações para escrever uma revista inteira sobre ele), a coisa parecia mais uma conversa de velhos amigos do que uma entrevista propriamente dita.
Por ele ser a simpatia em pessoa, até evitei mais tarde criticá-lo por haver aceitado ser ministro da Cultura sem real disposição para lutar contra os poderosos interesses que avassalavam o setor e o reduziam à inocuidade e mediocridade.
Sei que é ingenuidade, mas sempre sonho com músicos fazendo o que pregam nas suas letras. O Gil, com certeza, não cumprirá aquilo a que se propunha meio século atrás, lá no comecinho de sua trajetória: "Ainda viro este mundo/ em festa, trabalho e pão!".
Exílio londrino em 1971: o preço da coerência. |
São também da esquecida canção "Viramundo" estes versos que me inspiram até hoje: "Prefiro ter toda a vida/ a vida como inimiga/ a ter na morte da vida/ minha sorte decidida". Parece que eu acredito mais neles do que o autor.
Enfim, como ninguém é perfeito, mais vale lembrarmos a coragem que Gil teve para peitar a ditadura em 1968, lançando contra ela uma contestação global (política, ideológica, estética, moral, sexual, o escambau...); sua enorme contribuição para que os brasileiros nos percebêssemos como realmente somos, eternos explorados e irmãos siameses de outros explorados como os povos africanos, por mais que vivamos com a cabeça em Hollywood e Miami; e os muitos biscoitos finos que saíram do seu forno ao longo das décadas, inspirando-nos sonhos, ideias e ações.
Como esta sensível e nostálgica "A rua" (tomara que ele tenha mesmo voltado para matar a saudade!).
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O resultado é a alternância de passagens brilhantes e outras nem tanto.
Sua originalidade artística e figura bizarra o tornaram arroz de festa de festivais internacionais, principalmente o de Montreux, na Suíça. Mas, às vezes fica a impressão de que todas as suas esquisitices são mais pirotecnias para disfarçar uma falta de espinha dorsal nas suas músicas.
Como esta "Gaio da roseira", que começa e acaba com o mesmo refrão nordestino, tendo muito experimentalismo musical no meio (fórmula que até o rock já utilizou largamente, começando por "In-A-Gadda-Da-Vida", do Iron Buterfly, em 1968). Enfim, é interessante e chega a ser bem agradável em certos trechos, então vale a pena conhecermos, mas sem expectativas exageradas.
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O Arrigo Barnabé era o mais aclamado da turma, mas sempre me pareceu um genérico nacional do Frank Zappa & The Mothers of Invention.
Já o Itamar foi mais autêntico, com sua mistura de rock, funk e gafieira. "Nego Dito", auto-louvação de um marginal pé de chinelo, é uma graça.
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Mês e meio depois, a Globo lançava o programa semanal Som Livre Exportação, comandado por Ivan Lins e Elis Regina, que durou quase nove meses, tendo projetado, p. ex., Tim Maia, Aldir Blanc e César Costa Filho.
Músico cujas influências principais eram a bossa-nova, o jazz e o soul, destacava-se pelas performances empolgadas, sem ser particularmente original nem brilhante. Tinha como principal parceiro Vitor Martins, cujas letras muitas vezes eram de esquerda soft.
"Começar de novo", contudo, é uma bela canção da dupla que não poderia faltar aqui – até porque, nestes tristes trópicos, somos eternos Sísifos, obrigados a sempre recomeçar, sem que jamais a pedra se mantenha no topo da montanha.
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