terça-feira, 6 de setembro de 2016

LACERDA, GETÚLIO E EU.

Por Apollo Natali
Menino jornaleiro do começo do século 20 era visto assim: uma pequena alma demasiado sofredora, trajes em frangalhos, um punhado de jornais debaixo do braço.

Mantenha-o debaixo de chuva e terá, pronto e acabado, o cenário sombrio.

Alguém com imensa compaixão dos meninos jornaleiros fez um melodrama de música expressando pesar choroso pela sorte daqueles primeiros batalhadores, de algum modo, sim, primeiros batalhadores, da difusão de notícias. Nem se pensava nas empresas distribuidoras de jornais e revistas de hoje.

Eu era menino jornaleiro.

Com um nó na garganta, postura, claro, de autocomiseração, olhos súplices, oferecia jornais nas ruas. Cantava baixinho, com pena de mim, a misericordiosa música:  "Olha A Noite!/ Olha A Noite!/  Eu sou um pobre jornaleiro/ que não tenho paradeiro,/ ninguém tem pena de mim".

Jovenzinho depois, subi de posto. Passei a varar as madrugadas escuras da Mooca até a rua José Bonifácio, no centro de São Paulo. A pé. 

Da antiga agência da Vasp partia eu com um abarrotado carrinho-de-mão de longos varais e distribuía nas bancas do centro os jornais cariocas Diário do Comercio, Diário Carioca, Correio da Manhã, Tribuna da Imprensa. O dono dessa tribuna era Carlos Lacerda. Ano 1952. Tudo o que se matraqueava então sobre Getúlio Vargas se acumulava empilhado no carrinho de longos varais.

Ano 1954, as manchetes: Getúlio suicidou-se.

Tomada de cena: ajuntamento dos filhos do pai dos pobres, desolados, paralisados diante das bancas de jornais.  

Este filho daquele pai morto se deteve, angustiado diante de uma banca da hoje extinta rua Santa Tereza, engolida que foi, com a implosão de seus prédios, pela praça Clóvis Beviláqua.

Acariciava, um pouco ofegante, afogado de tristeza, a menor moeda que circulava no país com a efígie de Getúlio Vargas. Com uma porçãozinha delas eu levava para minha casa, num cortiço, mas recheada de pai, mãe, irmãos, irmãs, uma gorda cesta de bananas da quitanda do seu Alexandre, na rua Coronel Cintra.

Corta para quase uma década depois, quando o jornal O Estado de S. Paulo recebe a visita de Carlos Lacerda. Em plena redação, o pequeno jornaleiro, agora jornalista, é cumprimentado pelo visitante com um aperto de mão. 

Atestavam meus sofridos vizinhos de cortiço (no qual vivi 33 anos, desde bebê), imigrantes italianos, turcos, árabes, portugueses, espanhóis, que o caráter de uma pessoa está no firme aperto de mão. É isto mesmo? Lacerda apertou forte minha mão, me olhou nos olhos. Fez isso com todos lá. Ele se comunicava. Ano: 1964.

Quis o destino que em 31 de março de 1964 o pequeno jornaleiro, agora jornalista, estivesse de plantão no jornalão ao qual as más línguas se referiam como vetusto ou coisa pior; ainda ficava na rua Major Quedinho nº 28, com a redação ocupando o 5º andar.  
Lacerda, após ser ferido no atentado da rua Toneleiro.

Passava um pouquinho da meia noite. Era, então, 1º. de abril. O trim-trim do telefone, que naquele momento eu não imaginava histórico, tirou-me da sonolência e anunciou o começo de duas décadas de regime militar no Brasil e tudo mais que se sabe. O trim-trim era o correspondente de Juiz de Fora a mandar notícia.

Em Minas Gerais, o general Olympio Mourão Filho, por iniciativa própria, diz-se,  sem conhecimento de seus iguais conspiradores,  despejava as tropas na rua em direção ao Rio de Janeiro, bradando que havia chegado a hora de acabar com o que ele chamou de baderna da esquerda. Desfechava-se na prática o golpe militar de 1964.  Lacerda cassado.

Ele havia pedido uma intervenção dos Estados Unidos na política brasileira. Sua atitude causou uma crise política com os ministros militares, que impuseram o estado de sítio e decretaram sua prisão.

Incrível que Lacerda não soubesse, poucos sabiam (pasmem!), que o pai do golpe de 1964 e de todos os demais golpes na América Latina eram justamente os EUA. Leia aqui  quem quiser saber o que Lacerda e muitos não sabiam: como os EUA implantaram as ditaduras sul-americanas, de cuja passagem estripadora somos herdeiros até hoje. 

O pequeno jornaleiro é kardecista. Sou espírita por um único motivo, apenas um: porque acredito que, quando meu corpo morrer, meu espírito (ou alma, para quem quer dizer melhor) vai continuar vivendo.
Tropas de Mourão Filho na então BR-3

Nada mais. Não me perguntem onde nem como. Uma coisa é certa, a meu ver: mesmo o maior dos céticos abriga uma pulga atrás da orelha. Acredita, no fundo de sua alma, que quando morrer aqui, vai acordar de algum modo em algum lugar por aí.

Pois bem. Num dos meus devaneios pelas páginas de livros espíritas, descobri a história de um antiquíssimo rei absolutista que maltratava o povo e que perseguiu, torturou e matou um jovem contestador de suas atrocidades. [Desde menino jornaleiro me pergunto por que reis e governantes sempre têm de  maltratar o povo...]

Em suas últimas palavras, o jovem revolucionário prometeu que voltaria numa encarnação qualquer para se vingar do rei.    

Em 1954, diz o livro, o rei malvado estava reencarnado no Brasil com o nome de Getúlio Dornelles Vargas. O jovem contestador também, com o nome de Carlos Lacerda. Deu no que deu, para quem acredita na reencarnação.

Leia aqui a saga do rei maldoso e do contestador do seu trono. Começa assim: era uma vez um velho rei muito malvado, num país muito distante, que maltratava seu povo, não deixava barato nenhuma crítica ou oposição ao seu governo e reservava o cárcere, a tortura e a morte para quem ousasse fazer-lhe frente. Eis que dos casebres daquele povo maltratado e faminto surge um jovem forte e impetuoso, trajes esvoaçantes, inconformado com as injustiças e desmandos do rei.

A respeito de Getúlio, Lacerda e o menino jornaleiro, por hoje é só.

                       

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