sexta-feira, 10 de junho de 2016

DALTON ROSADO: "O ABSURDO ABSORVIDO".

"Dormia a nossa pátria mãe 
tão distraída, sem perceber 
que era subtraída, em 
tenebrosas transações"
(Chico Buarque, Vai passar)
.
Nos idos dos '80, conheci um renomado médico paulistano, o dr. Acácio Mancini, já quase octogenário, de quem me tornei amigo. Era uma pessoa agradável, com vasta cultura e experiência de vida, e tinha vivido uma história interessante e inédita, que me confidenciou reservadamente e me proibia de contar, temendo alguma repercussão midiática da qual ele queria distância. 

Agora, muito depois do seu falecimento, posso contar, não apenas pelo inusitado de sua história, mas por um detalhe particular que me chamou a atenção (e inspirou o título deste artigo).

O doutor Acácio, então um jovem paulistano filho de italianos bem sucedidos radicados em São Paulo, pôde ir estudar medicina na Itália em 1933, e lá se formou em 1939, no início da II guerra mundial. Como fosse considerado cidadão italiano, conseguiu fazer uma residência médica na Alemanha, na especialidade para a qual se direcionava (medicina psicossomática). 

Terminou tendo que se incorporar como médico às forças do Eixo, sendo transferido para o norte da África, onde o designaram para médico pessoal do famoso marechal de campo do exército alemão, Erwin Johannes Eugen Rommel, cognominado a raposa do deserto

Rommel lhe dizia que, caso a Alemanha perdesse a guerra (possibilidade àquela altura já admitida), gostaria de partir clandestinamente para o Brasil; daí querer incumbir o Dr. Acácio da compra de uma fazenda no interior paulista.
Rommel era um dos mais brilhantes oficiais alemães

Ele tergiversou, não assumindo explicitamente tal compromisso; outros nazistas acabariam mesmo vindo para a América do Sul, dentre eles o carrasco Adolf Eichmann, preso na Argentina e condenado à morte em Israel; e Josef Mengele, o anjo da morte de Auschwitz, que viveu na Argentina, Paraguai e Brasil, até morrer em 1979, aos 68 anos, em Bertioga, litoral paulista. 

O desejo de Rommel não se concretizou, pois foi suicidado em função do seu envolvimento, já no final da guerra, numa conspiração para assassinar Hitler, embora o atentado em si tivesse ocorrido num momento em que ele estava hospitalizado.

Ficou o fato de o dr. Acácio ter sido um brasileiro que prestou serviços médicos a um marechal de campo nazista na guerra e pelo lado adversário do Brasil (vale lembrar, contudo, que Getúlio demorou a se definir, pois tinha algumas identidades com o trabalhismo fascista, do qual copiou a legislação implantada no Brasil). 

O que mais me chamou a atenção nas reminiscências do médico foi este detalhe: de tanto ver pessoas mortas durante a guerra, os militares passavam a conviver com cadáveres em putrefação aos montes, incomodando-se mais com o odor insuportável do que propriamente com as mortes havidas. Então, apressavam-se em carregá-los nas caçambas e jogá-los em valas comuns.

Dizia isto impressionado com a capacidade que o ser humano tem de banalizar a morte. A guerra bestifica as pessoas; e não apenas a tradicional, pois a guerra urbana e suas mazelas têm a mesma consequência. O ser humano possui uma imensa (e negativa) capacidade de absorver o absurdo como natural. 
Assim estava Auschwitz na chegada do exército soviético
Numa sociedade na qual uma abstração se torna real e comanda a vida social, não é de se admirar que tudo o mais seja o absurdo naturalizado. E o mais absurdo é a inversão, pois o próprio absurdo se torna normal, e o que é normal passa a ser absurdo. 

Nas grandes metrópoles socialmente cindidas, o absurdo somente se torna visível para os olhos mais atentos de quem não embarca alegremente em conceitos de relação social como os que historicamente vimos desenvolvendo. 

É comum os mui sofisticados restaurantes e padarias dos bairros grã-finos cobrarem pelo café da manha algo em torno de R$ 40 per capita, que corresponde a um custo mensal de valor maior do que o salário mínimo nacional e 1/3 do salário médio de todos os brasileiros. 

Mais: neles se papeia sobre ganhos de milhões de reais num país de miseráveis, o que já é um primeiro absurdo. 

A discussão nesses locais sobre forma e conteúdo dos negócios envolvendo entes públicos é, para alguém que tenha um mínimo de senso social crítico e ético, o segundo e nauseabundo absurdo. Aliás, não se trata apenas de jogar conversa fora, pois frequentemente a distinta freguesia passa do palavrório ao ato, acordando as tenebrosas transações denunciadas na música famosa do Chico Buarque. 
O café da manhã nos restaurantes dos bairros grãfinos

Nenhum dos atores da Operação Lava Jato realizou suas maracutaias nos subúrbios esconsos. O que faz sentido, pois, para tais defensores convictos das virtudes capitalistas, suas práticas, ao invés de condenáveis, são necessárias para que haja progresso, prosperidade e modernidade. Eles sentem orgulho do papel que desempenham e não têm qualquer drama de consciência em função dos seus conteúdos nefastos para a sociedade como um todo.

Como a coexistência dos extremos:
  • de um lado, a cisão urbana causadora da existência de imensas favelas com falta de esgotamento sanitário e de coleta de lixo regular (pois os caminhões de lixo não conseguem sequer trafegar em suas ruelas fétidas, onde pululam barracos mal engendrados e próprios às estratégias de sobrevivência desesperada de trabalhadores historicamente explorados e agora tornados supérfluos), com a violência policial e civil atingindo os píncaros da barbárie, entre muitas outras mazelas;
  • do outro lado, os bairros luxuosos, repletos de superfluidades que custam os olhos da cara, nos quais os nababos se refestelam e os pobres só entram como serviçais.
E isto é encarado pelos algo natural, ou  como o preço da modernidade e do progresso

Como coexistir passivamente com assaltos diários a bancos? Com incineração em massa de presidiários no Ceará? Com as execuções aleatórias de grupos de pessoas em bares e favelas de todo o país? Com os estupros coletivos, etc., etc., etc.?! 

É absurdo absorvermos isso como algo tolerável, e não como uma afronta ao conceito mais elementar da pretendida justiça e igualdade sociais e à melhor postura humanista! É inconcebível não nos rebelarmos contra (e entendermos) as causas primárias disso tudo! São exemplos clássicos do absurdo absorvido

Outro absurdo é a introjeção mental que absorve como positivo o conceito de democracia, tido supostamente como uma gerência popular dos destinos sociais a partir de uma relação social mercantil que é subtrativa na sua origem, como se a forma política, a partir dessa base, possibilitasse uma coexistência isonômica do ponto de vista das escolhas. 

Esse é outro exemplo clássico da absorção do absurdo como algo natural, no qual o negativo padrão social e moral aculturado, de tão repetido e positivado, inseriu-se absurdamente no inconsciente coletivo como virtuoso. Assim, de um modo absurdo, apesar de sofrer as agruras da miséria, o pobre tem vergonha de ser pobre.
Por Dalton Rosado

Ou seja, não consegue conceber-se fora dos padrões supostamente virtuosos dos poucos que vencem na vida, acabando por acreditar que é culpado culpa por sua miséria. 

E o mais absurdo de tudo é tantos considerarem absurda a contestação das causas estruturais de tais absurdos...
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Um comentário:

Guida Corretora disse...


Saudade do De Acácio Mancini!

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