terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

DALTON TRUMBO DERA ALGUMAS VACILADAS, MAS LUTOU COMO UM LEÃO CONTRA O MACARTISMO.

Ao embarcar para o cumprimento da pena (ficou preso 11 meses)
Trumbo - lista negra, que acaba de estrear nos cinemas paulistanos, aborda acontecimentos históricos importantes e que até hoje são pouco mostrados ao grande público (*). Tomara que, juntamente com Ponte dos espiões (d. Steven Spielberg, 2015), abra caminho para obras com propostas mais ambiciosas e maior densidade artística. 

Lembra a histeria anticomunista que tomou conta dos Estados Unidos a partir de 1950, com foco numa de suas principais vítimas na indústria cinematográfica, o roteirista Dalton Trumbo.

A 2ª Guerra Mundial terminara com duas novas potências ascendendo inesperadamente ao primeiro plano, enquanto Inglaterra, França, Alemanha e Itália despencavam. O noviciado custou caro: passamos perto de uma guerra nuclear que provavelmente nos devolveria para as cavernas.

Os EUA acreditaram --e fizeram seu povo acreditar-- que a supremacia atômica seria suficiente para manter os soviéticos quietinhos no seu lugar, mas dois choques de realidade os abalaram profundamente: em agosto de 1949, a URSS entrou para o clube nuclear, testando com êxito seu primeiro petardo; e dois meses depois a revolução triunfou na China, com Mao Tse-tung assumindo o poder.

O macartismo foi uma reação típica de cidadãos imaturos e acovardados, face a uma surpresa das mais inquietantes; tinham de achar bodes expiatórios, malhar alguns Judas, enquanto tentavam afastar de suas mentes a paúra de virarem pó ou tochas vivas, como os moradores de Hiroshima e Nagasaki.
Dando depoimento hostil aos caçadores de bruxas

As vítimas mais estridentes desta caça às bruxas extemporânea foram dois comunistas de passeata que levaram recados de um lado para outro, tendo desempenhado papel dos mais insignificantes na transmissão de segredos atômicos aos soviéticos. Hoje é ponto pacífico que foram grandes cientistas os autores da proeza, temendo que a concentração de tamanho poder destrutivo nas mãos de uma única nação acarretasse outros massacres dantescos. Quiseram criar um equilíbrio do terror.

Como pegava mal os EUA torrarem luminares da ciência, despacharam o pobre casal Rosenberg para a cadeira elétrica e fizeram vistas grossas à infidelidade dos gênios. Pessoas próximas aos três líderes do projeto nuclear estadunidense (Robert Oppenheimer, Enrico Fermi e Leo Zsilárd) é que vazaram os segredos, sabe-se lá se com ou sem a anuência dos ditos cujos. Quem pagou o pato foram os estafetas.

Sob a batuta do senador Joseph McCarthy, tendo como fiel escudeiro Richard Nixon, armaram-se investigações espetaculosas da infiltração comunista em campos de atividades mais salientes, como o cinema (quando essa corja quis fazer o mesmo com as Forças Armadas, levou um pontapé nos fundilhos, pois os militares jamais consentiriam que tal circo debilitasse o sistema de defesa do país).

Enquanto isso, milhares de infelizes dedicados a atividades menos atraentes para a mídia também comiam o pão que o diabo amassou, submetidos a investigações governamentais ou privadas, perdendo os empregos e a saúde, vendo suas famílias esfacelarem-se e, levados ao fundo do poço, se matando. Desses pouco se falou na época e seu martírio não inspira filmes hoje. Foram os destruídos anônimos.
O Trumbo verdadeiro...

Sob pressão da imprensa e de associações fascistoides semelhantes à TFP daqui, os grandes estúdios cinematográficos cederam, colocando muitos profissionais brilhantes numa lista negra que, em tudo e por tudo, lembrava o index no qual a Igreja medieval sepultava obras tidas como heréticas. Assim como o calvário dos perseguidos, presos, discriminados, maltratados, humilhados e ofendidos tinha muita semelhança com o festival de horrores da Inquisição.

O filme apresenta um dos principais roteiristas da época, Dalton Trumbo, atravessando sofridamente a intempérie e fazendo da luta para resgatar sua carreira uma batalha contra a própria existência da lista negra. É comovente, claro, e o ator Bryan Cranston está simplesmente perfeito no papel. Merece muito mais o Oscar do que Leonardo DiCaprio.

Já o diretor Jay Roach e o roteirista John McNamara desperdiçaram ótima oportunidade de criarem uma verdadeira obra-prima, ao heroicizarem demais seu herói, na melhor tradição hollywoodesca.

A partir do momento em que se tornou vítima do marcatismo, Dalton Trumbo foi exemplar e digno, ponto final.

Antes, contudo, tinha sido um stalinizado típico. É mostrado a discursar numa greve por aumento de salários, mas a influência esquerdista nos estúdios serviu também para torpedear a realização de filmes que criticavam o grande ditador do Kremlin, como dois projetos derivados de obras do escritor Arthur Koestler, aliás um dos alvos da caça às bruxas que também houve no lado de lá. Ironias da História.

Pior, quando a União Soviética enfrentava os nazistas, Trumbo virou falcão convicto: não só mandou a editora cessar a distribuição e recolher as edições restantes nas livrarias do seu velho livro pacifista Johnny vai à guerra (o qual se tornara inconveniente naquele momento em que os comunistas ansiavam pela entrada dos EUA na guerra e muita gente estimulava a neutralidade face ao conflito europeu), como denunciou ao FBI o nome de pessoas aparentemente simpáticas ao nazi-fascismo que lhe escreveram tentando obter edições da sua obra. Isto lhe seria cobrado até o fim dos seus dias e ele admitiu que se tratara de uma terrível vacilada.
...aqui, com o bigode raspado.

O lado negativo que aparece no filme, para aparentar alguma isenção, é o de que, a certa altura, Trumbo praticamente tiranizou a família, exigindo dedicação integral da mulher e filhos à sua cruzada para continuar exercendo a profissão na moita.  Mas, naquelas circunstâncias, isto era mais do que desculpável, um pecadilho. Já se tornar censor da própria obra e dedar à polícia os interessados em adquirir seu livro foram pecados mortais.

Assim como é indesculpável a fita dar a entender, para maior glória do cinebiografado, que foi Dalton Trumbo a primeira vítima do macartismo cinematográfico a desafiar ostensivamente a lista negra.

Tal primazia coube ao também roteirista Carl Foreman em 1952, no superlativo Matar ou morrer (d. Fred Zinnemann), tão acachapante que despertou ira exacerbada nos reaças de carteirinha assinada como o John Wayne.

Nele, um xerife (Gary Cooper) é ídolo na sua cidade, mas não recebe apoio de ninguém quando está na iminência de enfrentar quatro temíveis pistoleiros. Os conhecidos e amigos de uma vida inteira tiram o corpo fora, exatamente como ocorreu no auge das perseguições macartistas a figuras queridas de Hollywood. O xerife sai da encrenca ajudado apenas pela esposa e, ao partirem para sempre, atira a estrela de lata no chão, enojado.

* Filmes sobre o macartismo que vale a pena assistir: Testa-de-ferro por acaso, Culpado por suspeita e Boa noite, boa sorte.

2 comentários:

SF disse...

Celso,
Não entendi se este filme está disponível no youtube (o nome está sublinhado e parece um link) ou é um lançamento novo.
Achei muito interessante a história.

celsolungaretti disse...

Acabou de entrar em cartaz nos cinemas de São Paulo. Mas, quem está acostumado a garimpar filmes na internet (meu caso), consegue baixar arquivo e legenda de boa qualidade, para assistir de graça.

Já no Youtube deverá levar muito tempo para chegar.

Abs.

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