sexta-feira, 15 de outubro de 2010

ANOS DE CHUMBO: A MEMÓRIA E A DOR

Forcei-me a comparecer à homenagem prestada a Joaquim Câmara Ferreira na Câmara Municipal de São Paulo: meu respeito pela história de lutas desse companheiro falou mais alto do que a sensação de desagrado que os eventos de ex-presos políticos me causam.

Principalmente, por reavivarem a lembrança de fatos que me deprimem.

Nunca procurara conhecer em detalhes como morreram companheiros queridos, nem mesmo quando esses relatos ficaram fáceis de levantar na internet.

Então, ao escrever o Náufrago da Utopia, tal informação se tornou obrigatória.

Sabia que a Heleny Guariba tinha desaparecido nas garras da repressão, mas não que isto se dera na famigerada Casa da Morte de Petrópolis (RJ). 

À dor da perda, que nunca deixei de sentir, acrescentou-se a raiva impotente ao saber que ela foi levada a um centro clandestino de torturas, sem esperança de sobreviver, para passar pelos piores tormentos e, no final, ser abatida com um animal.

Quando estava sendo torturado no limite das minhas forças, consolava-me a certeza de que aquilo teria um fim. Bastaria aguentar mais um dia, e outro, e outro... até que os companheiros tomassem providências defensivas lá fora e não sobrassem mais  motivos operacionais  para aquela bestialidade.

Sem luz nenhuma no fim do túnel, apenas a certeza da morte, como terão sido os últimos dias da  Lucy?

Foi o que não deixou de me atormentar ao longo de toda uma noite insone, no pior momento possível, pois estava em má situação financeira e era obrigado a passar umas 14 horas por dia escrevendo o livro que, contra a entrega dos originais, iria me livrar de outro pesadelo, o despejo.

Também supunha que José Raimundo da Costa, a melhor amizade que formei na VPR, houvesse mesmo morrido ao resistir à prisão, como os jornais noticiaram.

Já no momento dos acontecimentos, eu sabia muito bem que boa parte das mortes noticiadas dessa forma não passava de execuções a sangue-frio.

Ao ser levado para depor numa auditoria do Exército, certa vez, o oficial que comandava a escolta comentou o sucessivo anúncio de mortes de companheiros do Movimento Revolucionário Tiradentes. Segundo os jornais, depois da morte em combate, sempre era encontrada uma pista que levava ao elo seguinte da cadeia. Risível.

Para não deixar dúvidas, aquele oficial disse:
"Você tem sorte de estar preso. Lá fora, hoje não escaparia com vida..."
Mesmo assim, no caso do Moisés, eu acreditei -- quis crer -- na versão oficial.

Quem sobrevivia na clandestinidade desde 1964 e se safara de tantas armadilhas, certamente resistiria até a última bala -- pensei.

Não levei em conta, no entanto, sua amizade com o cabo Anselmo, a quem sempre defendera das acusações lançadas por outros agrupamentos de esquerda.

A confiança no velho companheiro dos movimentos da marujada, com certeza, causou sua prisão com vida. Quem foi capaz de armar uma cilada mortal para a mulher que engravidara, não hesitaria em impedir que um velho amigo tivesse um final menos atroz.

Era um homem forte, que convivia há muito tempo com a idéia de morrer pelas mãos dos inimigos. Mas, o que ele deve ter passado  antes, também na Casa da Morte, é que me horroriza.

Pois, com o Moisés, o ressentimento era, inclusive, pessoal.

Pouco antes do golpe de 1964, sua prisão foi ordenada e o oficial encarregado de cumprir a missão fez a besteira de não levar escolta.

Os marinheiros do navio em que o Moisés servia simplesmente lhe perguntaram: "O que fazemos com esse palhaço?".

Ao que ele respondeu: "Jogamos no mar, é claro!".

Dito e feito. Só que o  palhaço  ensopado, submetido à pior das humilhações, conquistaria depois posição importante no Cenimar, o serviço de informações da Marinha. Da qual se serviu para mover uma caçada ao Moisés no País inteiro, obcecado com a idéia da desforra.

Só em pensar que esse reencontro haja finalmente ocorrido, tenho arrepios.

Enfim, é isto que me volta à mente em eventos como o desta 5ª feira.

Prefiro lutar para que o sacrifício de tantos seres humanos exemplares não tenha sido em vão.

É travando as batalhas do presente, e não recordando os  anos de chumbo, que eu me sinto no meu elemento.

Até porque libertarmos o povo brasileiro daquela brutal e tacanha ditadura era só a primeira etapa do nosso programa.

Viriam, em seguida, os esforços para libertarmos o povo brasileiro também do capitalismo perverso e putrefato, edificando uma sociedade igualitária e livre.

E isto ainda está por ser feito.

2 comentários:

Luiz Brasileiro disse...

Celso, gostei muito do texto e adotei um lema seu: não recuar um milímetro na defesa dos companheiros que fizeram a luta armada contra a ditadura.

Vou postar aqui um comentário que fiz a um texto de Carlos Vereza ("Blasés Tropicais"), e que ele não publicou; gosto muito do Vereza como ator mas discordo muito em política.

Celso, caso não queira publicar meu comentário não publique pois meu texto é dirgido a outro texto e de outro autor. Estou a lhe enviar meu comentário apenas para lhe comunicar que sou solidário a você na luta pela memória e respeito ao sacrifício dos bravos brasileiros que combateram a ditadura.

Luiz Brasileiro disse...

Eis meu comentário ao texto de Vereza "Blasés Tropicais!":

"Esta bronca do Partidão com o PT precisa ser metabolizada, pois é compreensível, o PT sepultou o Partidão antes do fim da URSS, mas não se justifica se vista em uma sociedade em que é fundamento da república o pluralismo político.

Não quero defender o PT, partido a que sou filiado há 30 anos, mas os heróis do povo brasileiro, os que fizeram a luta armada contra a ditadura. Na defesa destes companheiros não recuo um milímetro.

Os esbirros da ditadura, que não é o caso de Vereza, querem ditar a maneira pela qual os brasileiros que não correram para debaixo da cama deveriam lutar contra a ditadura: não deveriam lutar, é o que estes trastes defendem, escravos por vocação que são.

Não compreendem que cidadãos de bem não aceitaram ser governados pela força, não aceitaram ser governados por um bando de assaltantes do poder a tripudiar e chamar o cidadão para a briga impondo uma ditadura e varrendo para o lixo os direitos fundamentais, principalmente a liberdade de expressão, circulação, respeito à lei e independência dos poderes.

Inaceitável a justificativa da violência, tortura e morte contra os resistentes como sendo produto de suas escolhas políticas pois a violência cometida contra os resistentes foram crimes contra os que resolveram não se deixar pôr de joelhos e se sacrificaram travando uma luta desigual substituindo quem tinha mais responsabilidade e se escusou em nome da prudência tal foi o caso dos caras do Partidão.

É bom que se lembre sempre que a política pacifista e prudente do partidão não teve final feliz, como escreveu Jacob Gorender, pois 10 membros de seu Comitê Central morreram na tortura. É uma falácia imputar a violência da ditadura contra o Partidão como consequência do acirramento do combate aos grupos armados pois durante este período ele passou incólume, sem nenhuma baixa. Portanto, você, Vereza, não relatou um fato mas uma ficção, basta que se leia e comprove o que está escrito no livro "Combate nas Trevas", p. 264.

Justificar a violência contra os resistentes como produto de suas livres escolhas políticas é também assacar igual infâmia contra os 10 membros do CC do Partidão pois à sua maneira também estavam lutando contra a ditadura. Portanto, inaceitável a infâmia.

Nenhum inimigo de uma ditadura é ilegítimo e nenhum método para combatê-la é em princípio condenável. Quem ocupar a cadeira de presidente da república por golpe de Estado tem que saber que sua vida não vale um tostão furado. Tudo valerá para pôr fim à tirania, de veneno a dinamite, todos os meios são legítimos para se abreviar uma ditadura.

Dilma Roussef é heroína do povo brasileiro. Ela ocupou cargos legitimamente como membro de governos eleitos democraticamente. Daí é inconcebível desqualificá-la por ter ocupado os cargos que ocupou.

Zé Dirceu será julgado em 2011 e quero ver como você, Vereza, agirá caso ele seja absolvido, o que pode ocorrer. Quero ver se o Torquemada Vereza vai escrever um texto pedindo desculpas por seus juízos temerários, cometidos sem está investido da judicatura, sem ser juiz, sem ler os autos, sem sopesar as provas ou ausência delas. Sequer parando para refletir que até julgamento final todos são considerados inocentes por força de dispositivo constitucional.


Gosto do debate político mas jamais quero ver meu nome associado a injustiças e covardias tais como quaisquer ataques aos mais bravos brasileiros: os que fizeram a luta armada contra a ditadura.

Corrija uma ficção e escreva em seu texto um fato: Dilma se filiou ao PT em 2.000 e não depois da eleição de Lula como você afirma.

Se você considera mérito se mandar do país com medo de enfrentar a ditadura é uma questão de ponto de vista. Eu prefiro quem ficou e lutou, de preferência pela via armada."

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