Amanhã (25) se completa meio século desde a missa de 7º dia em homenagem ao jornalista Vladimir Herzog, o Vlado, assassinado pela ditadura brasileira no DOI-Codi, seu principal centro de torturas em São Paulo.
O ato foi uma corajosa resposta à tentativa dos torturadores de maquilarem o homicídio como suicídio, já que as religiões não honram suicidas.
Na Catedral da Sé, palco daquela missa, será relembrado amanhã, a partir das 19 horas, esse episódio em que, pela primeira vez desde a assinatura do AI-5, as forças da repressão foram colocadas na defensiva, tendo sido, portanto, um divisor de águas entre o terrorismo de estado pleno e a lenta agonia do regime militar.
Assassinado no dia 25 de outubro de 1975, Vladimir Herzog teve o mesmo destino de dezenas de outros combatentes e idealistas que foram vitimados por acidentes de trabalho nos porões da ditadura.
Isto para não falar dos executados a sangue-frio depois de presos e dos que tombaram sob os tiros da repressão, às vezes sem esboçarem a mínima reação, como Carlos Marighella.
REPERCUTIU TANTO?
A de outros jornalistas, como Mário Alves e Joaquim Câmara Ferreira, não despertou tamanha comoção na época.
E ambos morreram de forma igualmente chocante: Câmara Ferreira se atracando com os torturadores para forçar um ataque cardíaco, enquanto Mário Alves sofreu um verdadeiro massacre, chegando a ser empalado com um cassetete dentado.
Há vários motivos para o caso do Vlado ter sido mais emblemático.
Primeiramente, chocou e até hoje choca sabermos que ele se dirigiu pelas próprias pernas ao encontro da morte, acreditando que sofreria apenas o interrogatório para o qual estava convocado. Por que ele não desconfiou de que poderia ter o mesmo destino que tantos tiveram antes dele?
Por um motivo simples: em 1975 a tortura já arrefecera, pois a esquerda armada havia sido totalmente dizimada.
O auge da tortura se deu no período 1969/73. Os militares reagiram ao enfrentamento aberto da esquerda estruturando, em São Paulo, a Operação Bandeirantes (Oban), incumbida apenas de combater a vanguarda armada, enquanto as organizações desarmadas, como o velho PCB, continuaram sendo atribuição do Dops, que ainda se mantinha dentro de certos limites.
A Oban nasceu clandestina em junho de 1969 – montada por oficiais das três Armas e policiais civis, com financiamento de empresários fascistas. No início de 1970 foi legalizada, além de congêneres serem criadas nos demais Estados brasileiros, ficando todas as unidades com a denominação de DOI-Codi.
Funcionavam em quartéis da Polícia do Exército, com exceção da pioneira paulista, que continuou operando nos fundos de uma delegacia de polícia na rua Tutoia.
| O DOI-Codi/ SP funcionava nos fundos de uma delegacia |
TORTURADORES, SINÔNIMO DE
RAPINANTES
E, como a rede dos DOI-Codi's se ocuparia da subversão como um todo, foram retiradas dos Dops quaisquer incumbências de investigação e captura; passaram a atuar apenas na formatação das denúncias a serem encaminhadas às auditorias militares.
Para seus quadros, os DOI-Codi's ofereciam remunerações elevadas e, no caso dos militares, a perspectiva de ascensão meteórica na carreira.
A esquerda armada expropriava bancos, executava operações altamente rentáveis como o roubo do cofre do ex-governador Adhemar de Barros. Então, os militantes às vezes portavam somas vultosas consigo ao serem presos.
Na VPR e VAR-Palmares, p. ex., cada combatente dispunha de um substancial fundo de reserva, que deveria ser mantido intocado até uma circunstância extrema, como a de ele ficar descontatado e ter de fugir do País.
Dinheiro, armas, veículos e até objetos de uso pessoal dos militantes dessas organizações eram, por sua vez, expropriados pelos captores, que os dividiam a seu bel-prazer, nunca o restituindo aos proprietários expropriados.
| Henning Boillesen foi justiçado por guerrilheiros |
EMPRESÁRIOS FINANCIAVAM
A REPRESSÃO
Cada revolucionário importante tinha o valor previamente fixado, daí o empenho obsessivo dos rapinantes em chegarem até eles. O bolo era dividido segundo a importância de cada qual no esquema repressivo, sobrando algum até para os carcereiros...
Com a derrota da luta armada, o ditador Ernesto Geisel pretendia ir desmontando aos poucos esse Estado dentro do Estado. Militar de mentalidade prussiana, não admitia a existência de um poder paralelo envergonhando a farda.
Ora, os rapinantes haviam se acostumado com um padrão de vida muito superior ao que lhe possibilitava seus soldos e já não conseguiam mais viver sem a rapina – tanto que a notória equipe de torturadores da PE da Vila Militar do RJ envolveu-se com contrabandistas em 1974 e acabou sendo presa, interrogada... e torturada, provando um pouco do próprio veneno.
Para atrapalharem a distensão lenta, gradual e progressiva de Geisel, que incluía a desmontagem do aparelho repressivo de exceção, passaram a efetuar provocações que, esperavam eles, fariam a esquerda reagir, permitindo-lhes alegar que continuavam sendo úteis e necessários.
Valia tudo para despertarem o fantasma do comunismo, que lhes era tão vantajo$o – inclusive a Operação Gutemberg, lançada contra jornalistas.
Assim, uma base do PCB que fora formada na ECA/USP e se expandira com o ingresso de seus membros na carreira de jornalistas – continuando, entretanto, bem longe de representarem uma ameaça real ao regime – acabou sendo escolhida como um dos principais alvos dessa suspeitíssima escalada de prisões de peixes pequenos, desencadeada em outubro de 1975.
E o pobre Herzog talvez tivesse papel de destaque nas tramoias dos provocadores por ser um professor muito querido, com o qual os universitários presumivelmente se solidarizariam, uma vez preso.
Como a ECA era tida pela repressão como um celeiro de subversivos e nela certamente existiam agentes infiltrados, é difícil acreditar que essa base não constasse dos relatórios policiais havia muito tempo. O fato é que, até o final de 1975, não existiu interesse em estourá-la.
Aí, de repente, não mais que de repente, a repressão se deu conta de que a ditadura começaria a ser derrubada pela insidiosa infiltração subversiva no Departamento de Jornalismo da TV Cultura, com seu mísero 1% de audiência em São Paulo...
Vlado, coitado, não levou em conta o arranca-rabos nos bastidores do regime e seguiu confiante para o matadouro. Até pela estima que lhe devotava o governador Paulo Egydio Martins, estava certo de que em seu caso não abririam a caixa de ferramentas.
Ledo engano: aplicaram-lhe uma combinação de choques elétricos e amoníaco para provocar asfixia. E o mataram.
| Maldade: duas crianças ficaram órfãs |
OS TORTURADORES, "MALDITOS NA MEMÓRIA DOS HOMENS E
NO JULGAMENTO DE DEUS"
Os torturadores despertaram a indignação mundial – para o que também concorreu a ascendência judaica da vítima, repetindo em escala ampliada o que já sucedera no final de 1969, quando da morte sob torturas de Chael Charles Schreier, militante da VAR-Palmares.
Judeus são muito sensíveis à morte dos seus em circunstâncias semelhantes às do Holocausto.
Geisel e seu fiel escudeiro Hugo de Abreu aproveitaram a chance para minarem o DOI-Codi de uma forma que não despertasse resistências na caserna. Assim, Geisel deu ao II Exército o ultimato de que não poderia deixar uma morte como aquela se repetir.
Previsivelmente, antes que se completassem três meses, os torturadores erraram a mão de novo, despachando para o túmulo o metalúrgico Manuel Fiel Filho, do PCB. Com isto, forneceram a Geisel motivo suficiente para exonerar o comandante do II Exército Ednardo D'Ávila Melo e desmontar o DOI-Codi, robustecendo seu projeto de abertura política.
Por último, devem ser lembrados:
– o cansaço dos cidadãos que viviam sob terror policial desde 1969 e já não aguentavam mais o clima de autoritarismo e intolerância, mesmo porque, visivelmente, não havia mais uma ameaça verdadeira ao regime;
– a resistência dos jornalistas, que afinal se avolumou; e
– a coragem dos líderes religiosos de três confissões, D. Paulo Evaristo Arns à frente, que correram todos os riscos para, com a realização de uma missa ecumênica pela alma de Herzog na catedral da Sé, impedirem que mais esse assassinato fosse acobertado pela ditadura.
Foi de D. Paulo a frase celebre: "Não matarás! Quem mata se entrega a si próprio nas mãos do Senhor da História e não será apenas maldito na memória dos homens, mas também no julgamento de Deus".
Nem assim as tentativas de inviabilizar a redemocratização do Brasil cessaram de todo. Em 1976 houve atentados a bomba contra o Grupo Opinião, a ABI, a OAB e a residência de Roberto Marinho, além do sequestro e espancamento do bispo de Nova Iguaçu e da chacina dos militantes na gráfica do PCdoB.
Em 1979/81, a ação dos grupos paramilitares de direita se intensificou, com novos ataques a entidades e cidadãos ilustres (como o jurista Dalmo de Abreu Dalari) e até os bizarros incêndios de bancas de jornais nas quais eram vendidas publicações alternativas.
| Proximidade de uma casa de força mandou pelos ares os ultradireitistas que queriam provocar enorme matança |
...E A BOMBA EXPLODIU NO COLO
DO TERRORISTA!
Até que, em 30 de abril de 1981, o feitiço virou contra o feiticeiro: a bomba explodiu no colo do terrorista que pretendia provocar pânico cujas consequência seriam terríveis, durante em show musical no Riocentro. A maré mudou e a redemocratização foi consolidada.
Em março de 2013 a família, por decisão judicial, recebeu um novo atestado de óbito de Herzog, no qual seu falecimento deixou de ser atribuído a suicídio, mas sim a "lesões e maus tratos sofridos durante o interrogatório em dependência do 2.º Exército".
Em março de 2018, a Corte Interamericana de Direitos Humanos responsabilizou o Estado brasileiro por não haver denunciado e punido os responsáveis pela tortura e o assassinato de Herzog, por ela qualificado de "um crime de lesa-humanidade".
Os os agentes e autoridades envolvidos no assassinato de Herzog até chegaram a ser identificados, mas a Lei de Anistia de 1979, que garantiu impunidade eterna às bestas-feras da repressão ditatorial, os protege até hoje. (por Celso Lungaretti)
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