sexta-feira, 24 de outubro de 2025

MEIO SÉCULO SE PASSOU E NENHUM DOS ASSASSINOS DO VLADO FOI PUNIDO

Amanhã (25) se completa meio século desde a missa de 7
º dia em homenagem ao jornalista Vladimir Herzog, o Vlado, assassinado pela ditadura brasileira no DOI-Codi, seu principal centro de torturas em São Paulo.  

O ato foi uma corajosa resposta à tentativa dos torturadores de maquilarem o homicídio como suicídio, já que as religiões não honram suicidas. 

Na Catedral da Sé, palco daquela missa, será relembrado amanhã, a partir das 19 horas, esse episódio em que, pela primeira vez desde a assinatura do AI-5, as forças da repressão foram colocadas na defensiva, tendo sido, portanto, um divisor de águas entre o terrorismo de estado pleno e a lenta agonia do regime militar. 

Assassinado no dia 25 de outubro de 1975, Vladimir Herzog teve o mesmo destino de dezenas de outros combatentes e idealistas que foram vitimados por  acidentes de trabalho nos porões da ditadura. 

Isto para não falar dos executados a sangue-frio depois de presos e dos que tombaram  sob os tiros da repressão, às vezes sem esboçarem a mínima reação, como Carlos Marighella.

Foto tirada após pendurarem o corpo
de Herzog: a farsa foi desmascarada
POR QUE A MORTE DO VLADO
 REPERCUTIU TANTO?

A de outros jornalistas, como Mário Alves e Joaquim Câmara Ferreira, não despertou tamanha comoção na época. 

E ambos morreram de forma igualmente chocante: Câmara Ferreira se atracando com os torturadores para forçar um ataque cardíaco, enquanto Mário Alves sofreu um verdadeiro massacre, chegando  a ser empalado com um cassetete dentado.

Há vários motivos para o caso do Vlado ter sido mais emblemático.

Primeiramente, chocou e até hoje choca sabermos que ele se dirigiu pelas próprias pernas ao encontro da morte, acreditando que sofreria apenas o interrogatório para o qual estava convocado. Por que ele não desconfiou de que poderia ter o mesmo destino que tantos tiveram antes dele? 

Por um motivo simples: em 1975 a tortura já arrefecera, pois a esquerda armada havia sido totalmente dizimada.

O auge da tortura se deu no período 1969/73. Os militares reagiram ao enfrentamento aberto da esquerda estruturando, em São Paulo, a Operação Bandeirantes (Oban), incumbida apenas de combater a vanguarda armada, enquanto as organizações desarmadas, como o velho PCB, continuaram sendo atribuição do Dops, que ainda se mantinha dentro de certos limites.

A Oban nasceu clandestina em junho de 1969 – montada por oficiais das três Armas e policiais civis, com financiamento de empresários fascistas. No início de 1970 foi legalizada, além de congêneres serem criadas nos demais Estados brasileiros, ficando todas as unidades com a denominação de DOI-Codi. 

Funcionavam em quartéis da Polícia do Exército, com exceção da pioneira paulista, que continuou operando nos fundos de uma delegacia de polícia na rua Tutoia. 

O DOI-Codi/ SP funcionava nos fundos de uma delegacia
 TORTURADORES, SINÔNIMO DE  
RAPINANTES

Desde o primeiro momento, teve mais poder do que a estrutura legal dos Dops, chegando a arrancar presos políticos de suas mãos quando bem entendia. 

E, como a rede dos DOI-Codi's se ocuparia da subversão como um todo, foram retiradas dos Dops quaisquer incumbências de investigação e captura; passaram a atuar apenas na formatação das denúncias a serem encaminhadas às auditorias militares.

Para seus quadros, os DOI-Codi's ofereciam remunerações elevadas e, no caso dos militares, a perspectiva de ascensão meteórica na carreira.

A esquerda armada expropriava bancos, executava operações altamente rentáveis como o roubo do cofre do ex-governador Adhemar de Barros. Então, os militantes às vezes portavam somas vultosas consigo ao serem presos. 

Na VPR e VAR-Palmares, p. ex., cada combatente dispunha de um substancial fundo de reserva, que deveria ser mantido intocado até uma circunstância extrema, como a de ele ficar descontatado e ter de fugir do País.

Dinheiro, armas, veículos e até objetos de uso pessoal dos militantes dessas organizações eram, por sua vez, expropriados pelos captores, que os dividiam a seu bel-prazer, nunca o restituindo aos proprietários expropriados.

Henning Boillesen foi justiçado por guerrilheiros
EMPRESÁRIOS  FINANCIAVAM
A REPRESSÃO 

Além disto, os empresários financiadores da repressão contribuíam para as caixinhas de prêmios pela captura ou morte de militantes clandestinos. Havia até quem, em troca, assistisse torturas de prisioneiras nuas. 

Cada revolucionário importante tinha o valor previamente fixado, daí o empenho obsessivo dos rapinantes em chegarem até eles. O bolo era dividido segundo a importância de cada qual no esquema repressivo, sobrando algum até para os carcereiros...

Com a derrota da luta armada, o ditador Ernesto Geisel pretendia ir desmontando aos poucos esse Estado dentro do Estado. Militar de mentalidade prussiana, não admitia a existência de um poder paralelo envergonhando a farda. 

Ora, os rapinantes haviam se acostumado com um padrão de vida muito superior ao que lhe possibilitava seus soldos e já não conseguiam mais viver sem a rapina – tanto que a notória equipe de torturadores da PE da Vila Militar do RJ envolveu-se com contrabandistas em 1974 e acabou sendo presa, interrogada... e torturada, provando um pouco do próprio veneno.

Para atrapalharem a distensão lenta, gradual e progressiva de Geisel, que incluía a desmontagem do aparelho repressivo de exceção, passaram a efetuar provocações que, esperavam eles, fariam a esquerda reagir, permitindo-lhes alegar que continuavam sendo úteis e necessários. 

Valia tudo para despertarem o fantasma do comunismo, que lhes era tão vantajo$o  inclusive a Operação Gutemberg, lançada contra jornalistas. 

O Grupo Opinião, vítima dos atentados 
BOMBAS CONTRA
TEATROS NÃO EVITARAM 
A REDEMOCRATIZAÇÃO
  
Assim, uma base do PCB que fora formada na ECA/USP e se expandira com o ingresso de seus membros na carreira de jornalistas – continuando, entretanto, bem longe de representarem uma ameaça real ao regime – acabou sendo escolhida como um dos principais alvos dessa suspeitíssima escalada de prisões de peixes pequenos, desencadeada em outubro de 1975. 

E o pobre Herzog talvez tivesse papel de destaque nas tramoias dos provocadores por ser um professor muito querido, com o qual os universitários presumivelmente se solidarizariam, uma vez preso.

Como a ECA era tida pela repressão como um celeiro de subversivos e nela certamente existiam agentes infiltrados, é difícil acreditar que essa base não constasse dos relatórios policiais havia muito tempo. O fato é que, até o final de 1975, não existiu interesse em estourá-la.

Aí, de repente, não mais que de repente, a repressão se deu conta de que a ditadura começaria a ser derrubada pela insidiosa infiltração subversiva no Departamento de Jornalismo da TV Cultura, com seu mísero 1% de audiência em São Paulo...

Vlado, coitado, não levou em conta o arranca-rabos nos bastidores do regime e seguiu confiante para o matadouro. Até pela estima que lhe devotava o governador Paulo Egydio Martins, estava certo de que em seu caso não abririam a caixa de ferramentas. 

Ledo engano: aplicaram-lhe uma combinação de choques elétricos e amoníaco para provocar asfixia. E o mataram.

Maldade: duas crianças ficaram órfãs 
OS TORTURADORES, "MALDITOS NA MEMÓRIA DOS HOMENS E
NO JULGAMENTO DE DEUS"

Os torturadores despertaram a indignação mundial – para o que também concorreu a ascendência judaica da vítima, repetindo em escala ampliada o que já sucedera no final de 1969, quando da morte sob torturas de Chael Charles Schreier, militante da VAR-Palmares. 

Judeus são muito sensíveis à morte dos seus em circunstâncias semelhantes às do Holocausto.

Geisel e seu fiel escudeiro Hugo de Abreu aproveitaram a chance para minarem o DOI-Codi de uma forma que não despertasse resistências na caserna. Assim, Geisel deu ao II Exército o ultimato de que não poderia deixar uma morte como aquela se repetir.

Previsivelmente, antes que se completassem três meses, os torturadores erraram a mão de novo, despachando para o túmulo o metalúrgico Manuel Fiel Filho, do PCB. Com isto, forneceram a Geisel motivo suficiente para exonerar o comandante do II Exército Ednardo D'Ávila Melo e desmontar o DOI-Codi, robustecendo seu projeto de abertura política.

Por último, devem ser lembrados: 
– o cansaço dos cidadãos que viviam sob terror policial desde 1969 e já não aguentavam mais o clima de autoritarismo e intolerância, mesmo porque, visivelmente, não havia mais uma ameaça verdadeira ao regime; 
– a resistência dos jornalistas, que afinal se avolumou; e
– a coragem dos líderes religiosos de três confissões, D. Paulo Evaristo Arns à frente, que correram todos os riscos para, com a realização de uma missa ecumênica pela alma de Herzog na catedral da Sé, impedirem que mais esse assassinato fosse acobertado pela ditadura.

Foi de D. Paulo a frase celebre: "Não matarás! Quem mata se entrega a si próprio nas mãos do Senhor da História e não será apenas maldito na memória dos homens, mas também no julgamento de Deus".

Nem assim as tentativas de inviabilizar a redemocratização do Brasil cessaram de todo. Em 1976 houve atentados a bomba contra o Grupo Opinião, a ABI, a OAB e a residência de Roberto Marinho, além do sequestro e espancamento do bispo de Nova Iguaçu e da chacina dos militantes na gráfica do PCdoB.

Em 1979/81, a ação dos grupos paramilitares de direita se intensificou, com novos ataques a entidades e cidadãos ilustres (como o jurista Dalmo de Abreu Dalari) e até os bizarros incêndios de bancas de jornais nas quais eram vendidas publicações alternativas.

Proximidade de uma casa de força mandou pelos ares os
ultradireitistas que queriam provocar enorme matança


...E A BOMBA EXPLODIU NO COLO
DO TERRORISTA! 

Até que, em 30 de abril de 1981, o feitiço virou contra o feiticeiro: a bomba explodiu no colo do terrorista que pretendia provocar pânico cujas consequência   seriam terríveis, durante em show musical no Riocentro. A maré mudou e a redemocratização foi consolidada.

Em março de 2013 a família, por decisão judicial, recebeu um novo atestado de óbito de Herzog, no qual seu falecimento deixou de ser atribuído a suicídio, mas sim a "lesões e maus tratos sofridos durante o interrogatório em dependência do 2.º Exército".

Em março de 2018, a Corte Interamericana de Direitos Humanos responsabilizou o Estado brasileiro por não haver denunciado e punido os responsáveis pela tortura e o assassinato de Herzog, por ela qualificado de "um crime de lesa-humanidade".

Os os agentes e autoridades envolvidos no assassinato de Herzog até chegaram a ser identificados, mas a Lei de Anistia de 1979, que garantiu impunidade eterna às bestas-feras da repressão ditatorial, os protege até hoje. (por Celso Lungaretti) 

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