sábado, 8 de fevereiro de 2025

POR QUE HERZOG FOI TÃO DESPROTEGIDO AO ENCONTRO DO DOI-CODI, SEM SEQUER LEVAR ADVOGADO OU ACOMPANHANTE?

Foto montada pelo DOI-Codi
para sustentar versão de suicídio

A informação (vide aqui) de que a viúva Clarice Herzog, quase meio século depois, ainda luta na Justiça para receber uma pensão vitalícia relativa à responsabilidade do Estado brasileiro no assassinato do Vlado, reavivou-me as lembranças daquele que, para mim, foi o aspecto mais surpreendente e chocante desse episódio crucial.

Procurado na TV Cultura, no final de seu expediente de sexta-feira, por agentes do DOI-Codi, ele prometeu ir na manhã seguinte à sede do pior centro de torturas da repressão política na capital paulista. 

E foi exatamente o que fez... desacompanhado! Nem sequer um advogado entrou com ele  no covil das bestas-feras.

Só uma explicação me ocorre: Herzog, como muitos integrantes da esquerda que não pegou em armas contra a ditadura, subestimava os inimigos fardados. 

Ele, ademais, acreditava-se intocável por ser amigo do governador Paulo Egydio Martins  (o qual, por sua vez, era forte aliado do ditador Ernesto Geisel, então empenhado em extinguir os mecanismos de exceção criados no pior momento dos anos de chumbo).  

Mas, ignorando a crise interna no aparelho repressivo, Herzog acabou caindo numa armadilha que lhe custou a vida.

Recapitulemos. Morto no dia 25 de outubro de 1975, ele teve destino idêntico ao de dezenas de outros combatentes e idealistas que foram vitimados por acidentes de trabalho nos porões da ditadura. 

Isto para não falar dos executados a sangue-frio depois de presos, bem como dos que tombaram  sob os disparos desnecessários da repressão, caso dos tocaiados como Carlos Marighella, que não teve tempo para esboçar a mínima reação.

Mas, por que a morte do Vlado repercutiu tão intensamente, inclusive no exterior, gerando tantas consequências?
Rara imagem do Vlado na ECA/USP
A de outros jornalistas, como Mário Alves e Joaquim Câmara Ferreira, não despertou tamanha comoção na época. E ambos morreram de forma igualmente chocante: Câmara Ferreira se atracando com os torturadores para sofrer um ataque cardíaco, enquanto Mário Alves passou por um verdadeiro massacre, chegando  a ser empalado com um cassetete dentado.

Dentre vários motivos para o caso do Vlado ter sido o mais discutido, um dos principais foi exatamente o de ele ter-se dirigido pelas próprias pernas ao encontro da morte, acreditando que sofreria apenas um interrogatório de rotina. E os alarmes provavelmente não dispararam no seu cérebro porque,  em 1975 a tortura já arrefecera, posto que a esquerda armada havia sido totalmente dizimada.

O auge da tortura se deu no período 1969/73. Os militares reagiram ao enfrentamento aberto da esquerda estruturando, em São Paulo, a famigerada Operação Bandeirantes, incumbida de combater apenas a vanguarda armada, enquanto as organizações desarmadas, como o velho PCB, continuaram sendo atribuição dos departamentos estaduais de Ordem Política e Social, que ainda respeitavam alguns limites.

A Oban nasceu clandestina em junho de 1969 – montada por oficiais das três Armas e policiais civis, com financiamento de empresários fascistas. No início de 1970 foi legalizada, além de se criarem congêneres por todo o Brasil. Funcionavam em quartéis da Polícia do Exército, com exceção da pioneira, que continuou operando nos fundos de uma delegacia de polícia no bairro do Paraíso (!). 
D. Paulo Evaristo Arns consolando Clarice Herzog em 1975
Desde o primeiro momento, teve mais poder do que a estrutura legal dos Dops, chegando a arrancar presos políticos de suas mãos quando bem entendia. E, como a rede dos DOI-Codi's passou a ocupar-se da subversão como um todo, foram retiradas dos Dops quaisquer incumbências de investigação e captura; passaram a atuar apenas na formatação jurídica das denúncias a serem encaminhadas às auditorias militares. 

Para seus quadros, os DOI-Codi's ofereciam remunerações elevadas e, no caso dos militares, a perspectiva de ascensão meteórica na carreira.

DO SERVIÇO SUJO SE INCUMBIAM OS RAPINANTES A esquerda armada expropriava bancos, executava operações altamente rentáveis como o roubo do cofre das propinas dadas pela corrupção ao ex-governador Adhemar de Barros.  

Então, os militantes às vezes portavam somas vultosas consigo ao serem presos. 
Edição histórica: repúdio à morte de Schreier

Nas organizações em que militei, a VPR e VAR-Palmares, cada combatente dispunha de um substancial fundo de reserva, que deveria ser mantido intocado até uma circunstância extrema, como a de ele ficar descontatado e ter de fugir do País.

Dinheiro, armas, veículos e até objetos de uso pessoal dos militantes dessas organizações eram, por sua vez, expropriados pelos captores, que os dividiam a seu bel-prazer, nunca o restituindo aos proprietários expropriados. 

Além disto, os empresários financiadores da repressão contribuíam para as caixinhas de prêmios pela captura ou morte de militantes clandestinos. Cada revolucionário importante tinha o valor previamente fixado, daí o empenho obsessivo dos rapinantes em chegarem até eles. O bolo era dividido segundo a importância de cada qual no esquema repressivo, sobrando algum até para os carcereiros... 

Com a derrota da luta armada, o ditador Ernesto Geisel pretendia ir desmontando aos poucos esse Estado dentro do Estado. Militar de mentalidade prussiana, não admitia a existência de um poder paralelo envergonhando a farda.

Ora, os rapinantes haviam se acostumado com um padrão de vida muito superior ao que lhe possibilitava seus soldos e já não conseguiam mais viver sem a rapina – tanto que a notória equipe de torturadores da PE da Vila Militar do RJ envolveu-se com contrabandistas em 1974 e acabou sendo presa, interrogada... e torturada, provando um pouco do próprio veneno.

Então, para atrapalhar a distensão lenta, gradual e progressiva de Geisel, que incluía a desmontagem do aparelho repressivo de exceção, passaram a efetuar provocações que, esperavam eles, fariam a esquerda reagir, permitindo-lhes alegar que continuavam sendo úteis e necessários. Valia tudo para despertarem o fantasma do comunismo, que lhes era tão vantajo$o.
Sacerdotes de três confissões oficiaram a missa de 7º dia de Herzog, na Catedral da Sé.
Assim, uma base do PCB que fora formada na ECA/USP e se expandira com o ingresso de seus membros na carreira de jornalistas – continuando, entretanto, bem longe de representarem uma ameaça real ao regime – acabou sendo escolhida como um dos principais alvos de uma suspeitíssima escalada de prisões de peixes pequenos, desencadeada em outubro de 1975. 

Embora estivesse havia poucos meses lecionando na ECA, Herzog foi incluído no pacote dos provocadores, talvez porque era um professor muito querido na USP desde que nela se formara em Filosofia no ano de 1959. Supunham que, prendendo-o, os universitários protestariam. 

Então de repente, não mais que de repente, a repressão se deu conta de que a ditadura começaria a ser derrubada pela insidiosa infiltração subversiva no Departamento de Jornalismo da TV Cultura, que era dirigido por Herzog e tinha mísero 1% de audiência em São Paulo...

Vlado, coitado, não levou em conta o arranca-rabos nos bastidores do regime e seguiu confiante para o matadouro. Até pela estima que lhe devotava o governador paulista Paulo Egydio Martins, estava certo de que em seu caso não abririam a caixa de ferramentas
Boilesen, notório empresário financiador da repressão 

COMO OCORRIAM OS DITOS ACIDENTES DE TRABALHO – Aqui falo por experiência própria: ao recebermos choques elétricos não conseguíamos respirar e nos sentíamos como se estivéssemos morrendo. Mas os torturadores, quando não queriam nos matar, cessavam a descarga antes de enfartarmos. 

No entanto, baseavam-se  numa média de tempo que o supliciado fosse capaz de suportar; quando, contudo, ele possuía alguma comorbidade, eventualmente expirava antes.

Os torturadores, ao excederem a dose causando a morte de Herzog, despertaram a indignação mundial – para o que também concorreu a ascendência judaica da vítima, repetindo em escala ampliada o que já sucedera no final de 1969, quando da morte sob torturas de Chael Charles Schreier, militante da VAR-Palmares. Judeus são muito sensíveis à morte dos seus em circunstâncias semelhantes às do Holocausto.

Geisel e seu fiel escudeiro Hugo de Abreu aproveitaram a chance para minarem o DOI-Codi, esperando que, assim, sua vindoura extinção não despertasse resistências na caserna. Portanto, Geisel deu ao II Exército o ultimato de que não poderia deixar uma morte inconveniente como aquela se repetir.

Previsivelmente, antes que se completassem três meses, os torturadores erraram a mão de novo, despachando para o túmulo o metalúrgico Manuel Fiel Filho, também do PCB. Com isto, forneceram a Geisel motivo suficiente para exonerar o comandante do II Exército Ednardo D'Ávila Melo e desmontar o DOI-Codi, robustecendo seu projeto de abertura política.
Mortos pela ditadura militar: os zumbis ultradireitistas ainda pregam a volta de tais horrores
Por último, devem ser lembrados: 
  • o cansaço dos cidadãos que viviam sob terror policial desde 1969 e já não aguentavam mais o clima de autoritarismo e intolerância, mesmo porque, visivelmente, não havia mais uma ameaça verdadeira ao regime; 
  • a resistência dos jornalistas, que afinal se avolumou; e
  • a coragem dos líderes religiosos de três confissões, que correram todos os riscos ao realizarem na Catedral da Sé uma missa ecumênica pela alma de Herzog, implicitamente desmentindo a versão da ditadura segundo a qual  ele se suicidara.
Nem assim as tentativas de inviabilizar a redemocratização do Brasil cessaram de todo. Em 1976 houve atentados a bomba contra o semanário Opinião, a ABI, a OAB e a residência do empresário de comunicações Roberto Marinho, além do sequestro e espancamento do bispo de Nova Iguaçu e da chacina dos militantes na gráfica do PCdoB.

Em 1979/81, a ação dos grupos paramilitares de direita se intensificou, com novos ataques a entidades e cidadãos ilustres (como o jurista Dalmo de Abreu Dalari) e até os bizarros incêndios de bancas de jornais nas quais eram vendidas publicações alternativas.

Até que, em 30 de abril de 1981, o feitiço virou contra o feiticeiro: a bomba explodiu no colo do terrorista fardado que pretendia provocar pânico de consequências imprevisíveis durante em show musical no Riocentro. A maré mudou e a redemocratização foi consolidada. 
(por Celso Lungaretti)

Um comentário:

Angelo Genovesi disse...

Com o fim do governo militar em 1985, todos os responsáveis por mortes e danos físicos e psicológicos em pessoas que lutaram contra aquilo na época, deveriam terem sido imediatamente punidos. Mas não tivemos na época, pessoas sérias suficientes para dar uma lição e condenar duramente as bestas-feras e os seus superiores.
Assusta-me como a justiça no Brasil muitas vezes tarda e falha.
Um abração, Celso!

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