quinta-feira, 29 de agosto de 2024

A ESQUERDA QUE NÃO SE DEIXOU COOPTAR PELO CAPITALISMO: UM LEGADO (parte 3)

Enquanto era realizado o congresso do racha dos sete, transcorriam
as negociações do sequestro do embaixador estadunidense Charles Elbrick.
Até o racha dos sete, as circunstâncias vinham me propiciando uma escalada relâmpago nas fileiras da esquerda. 

Era, contudo, algo que eu não cogitava, nem sequer pretendia. Nunca tive obsessão pelo poder e. aos 18/19 anos, já possuía suficiente senso de autocrítica para perceber que não estava pronto para voos tão altos.  

Mas, eu mentiria se não admitisse que o novo status me deslumbrou um pouquinho que fosse, principalmente após passar 1968 inteiro ressentido com o tratamento entre paternal e ligeiramente desdenhoso que os militantes universitários dedicavam a nós, secundaristas, colocando-nos ora no papel de tarefeiros, ora no de bois de piranha

[Caso, p. ex., de quando nos escolheram para panfletar Osasco ocupada pela PM em junho de 1968, sob a alegação de que, presos, iríamos para o Juizado de Menores e não para o Deops. Mas isto não passava de papo furado: a ditadura não tinha tais melindres.]  

Quando a minha sorte de principiante acabou e a realidade crua da luta armada começou a desabar sobre mim, isso me abalou mais do que deveria. Primeira foi a morte de um companheiro da VPR a quem não conhecia, Carlos Zanirato, em junho. Preso, ele resolveu dar um fim às torturas pela via do suicídio. conduzindo a repressão a um ponto falso e atirando-se sob um veículo pesado. 
Fernando Ruivo, vítima de um acaso.

No mês seguinte vieram o
Elias e um  ex-dirigente da Dissidência Estudantil de São Paulo, de quem eu muito ouvia falar quando fazia movimento secundarista na órbita dessa organização universitária em 1968: o Fernando Ruivo (Fernando Borges de Paula Ferreira). 

Um caso chocante porque ambos tiveram o azar de estarem num carro que empacou logo quando passava por uma boca quente paulistana. Havia policiais emboscados esperando surpreender traficantes, então os dois, sabendo que uma revista revelaria a existência de armas e munição no porta-malas, abriram fogo. 

O Ruivo morreu na hora e o Elias foi salvo pelos médicos mas expirou quando submetido a torturas prematuras.

Em outubro veio o pior baque para mim: a morte do meu colega de escola, amigo, companheiro de militância secundarista e um dos sete quadros que conduzi para as fileiras da VPR, Eremias Delizoicov. 

Eu estava longe, participando da equipe precursora do treinamento guerrilheiro na região de Registro (SP), mas me senti culpado mesmo assim: tornara-me comandante estadual graças aos que, como ele, me haviam escolhido como líder de nossa base e delegado ao congresso de 1969 da VPR. 

Mas, não zelara por nenhum dos sete, absorvido que estava pelas minhas novas funções. A morte do Eremias, que preferira trocar tiros do que entregar-se vivo, embora pouca participação tivesse até então na VPR e não fosse depositário de segredos valiosos para a Operação Bandeirantes (precursora do DOI-Codi) pesava sobre meus ombros. Apesar das normas de segurança em contrário, eu teria como contatar alguns dos sete, mas não o fizera. E o despreparo do Eremias terminara em tragédia.

O certo é que, após estar a um passo da expulsão durante o Congresso de Teresópolis e ver-me salvo na enésima hora  pela decisão do Lamarca de desfechar o racha dos sete, não me senti vitorioso, muito pelo contrário. A beligerância com que se travara a luta interna, com os neo-massistas utilizando um verdadeiro arsenal de meias-verdades e mentiras descaradas para prevalecerem contra o Moisés e eu me lembrou os piores momentos do movimento estudantil.

Não conseguia engolir o episódio em que até a minha queda os adversários do nosso campo tramaram, como se fôssemos inimigos mortais. 



É que voltei de Teresópolis com a missão de apresentar aos militantes da VAR em SP  a visão dos refundadores da VPR, enquanto o Antônio Roberto Espinoza expressava a posição neo-massista. Isto só ocorreu, contudo, duas vezes.

Na primeira, apesar de o Espinosa ter sido sempre do Comando Nacional enquanto eu era comandante estadual, sai-me melhor do que o outro lado esperava. Aí, finda a segunda dessas reuniões, fui  a um ponto com antigos companheiros secundaristas que eu queria atrair para a VPR; em seguida, deveria ser apanhado por pessoal da VAR, pois nós havíamos ficado sem aparelhos em SP  e competia a eles me abrigarem.

Faltaram ao ponto e também faltaram na alternativa horas depois, deixando-me entregue à própria sorte, com meu rosto nos cartazes de procurados vistos em todo lugar, sem documentos capazes de enganar policial algum e com um .38 embaixo do braço. E deixara de ser seguro enfiar-me num hotelzinho barato, como fizera meses antes, ao sair de casa para entrar na clandestinidade.

Mas, uma moeda caiu em pé. Andando por ruas menos movimentadas do centro velho de SP, enquanto refletia sobre como escapar daquela enrascada, dei de cara com o Devanir de Carvalho, do Movimento Revolucionário Tiradentes, mais procurado ainda do que eu (travara tiroteio com agentes da repressão que vinham prendê-lo e aos irmãos, acabando por escapar ferido no braço).

Encontrá-lo caminhando pela rua, ainda com o braço na tipoia, foi um inacreditável golpe de sorte. Ele me abrigou como pôde e reatou meu contato com a VPR. Mas, a solidariedade impecável do Devanir não foi suficiente para eu esquecer que aqueles que nem duas semanas antes pertenciam à mesma organização, acabavam de tentar entregar-me às feras.

Amargurado, nem quis participar do rápido encontro no qual alguns dos principais quadros da VPR refundada aprovaram basicamente as teses do Jamil como plataforma doutrinária e elegeram um novo Comando Nacional. 

Em seguida, por estar muito queimado em SP (até na Biblioteca Central a Oban plantou agentes, na esperança de que eu aparecesse por lá, como fazia amiúde nos tempos de secundarista!), incumbiram-me de ajudar a preparar uma área de treinamento guerrilheiro para receber os primeiros aprendizes.
Livro raro, é o que melhor reconstitui
a queda das áreas guerrilheiras da VPR

Não fui tão mal no trabalho de campo como detratores exagerariam depois, mas o noticiário de cada dia me fazia tanta falta quanto o ar para respirar. 

Não suportava permanecer distante enquanto outros companheiros poderiam estar morrendo nas cidades. Quando chegava o motorista que trazia nossas provisões, mensagens e utensílios, eu simplesmente devorava os jornais recentes.

Então, quando o Lamarca decidiu que aquele sítio próximo a Jacupiranga tinha vários inconvenientes para nosso projeto e os trabalhos deveriam ser transferidos para outro município, supostamente longínquo, pedi para voltar ao trabalho urbano, pois avaliara que nele seria mais útil.

O Massafumi Yoshinaga, velho companheiro de militância secundarista (atuava na zona Sul e eu na Leste, mas ambos pertencíamos à mesma entidade), também aproveitou a ocasião para sair, não para outro tipo de trabalho, mas para desligar-se da VPR. Não suportava o isolamento das massas, "ficar ouvindo o dia inteiro papo sobre assuntos militares".

Iniciei 1970 no Rio de Janeiro, novamente designado para criar e comandar um serviço de Inteligência integrado por aliados e simpatizantes. Era um momento em que tinha até receio de abrir o jornal a cada manhã, pois eram cada vez mais frequentes as notícias de quedas e mortes de companheiros que eu conhecia pessoalmente.  

Organicamente ligado apenas a dois comandantes nacionais e a dois comandantes de unidades de combate. aos quais municiava com informações e análises, tinha uma visão bem clara de que nossa luta estava nos estertores: ou conseguiríamos virar o jogo com o lançamento da coluna móvel estratégica, ou definharíamos aos poucos. 

E chegou a mim uma mensagem familiar: um tio rico estava disposto a bancar a minha fuga para algum país da América do Sul ou Europa. 

Pensei um pouco no assunto e conclui que, ficando no Brasil, apostaria num fio de esperança e possibilidade muito maior seria a de acabar preso, torturado, morto. Não tinha ilusões quanto a isto.

Se partisse, minha utilidade para a revolução seria praticamente nenhuma. Como já queimara as pontes com a sociedade burguesa, eu alhures me tornaria um estranho numa terra estranha, perdendo inclusive a auto-estima.

Decidi ficar, até a improvável vitória ou até o mais amargo fim. (por Celso Lungaretti)    

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5 comentários:

Anônimo disse...

Escrever isto deve está sendo doído.
Falaria como está sua saúde?

celsolungaretti disse...

Na verdade, o único problema é que teclo sentado (não me dou bem com tablet) e, se o faço por muito tempo, meus joelhos se ressentem um bocado.

A erisipela foi um pesadelo, detestei ficar 23 dias internado para receber antibióticos na veia e, por discutir um assunto muito estressante quando não deveria fazê-lo, tive um piripaque que foi um baita susto. Mas, estou curado.

Tinha uma suspeita de arteriosclerose, mas o cardiologista, após pedir exames bem detalhados, garantiu que está tudo bem e marcou para eu voltar só daqui a 6 meses.

Então, restou o problema dos joelhos. Doem muito quando eu caminho e eu já estava a caminho de cirurgias para colocação de próteses, mas outros ortopedistas e outros exames desaconselharam veementemente. O jeito é tentar obter pequenas melhoras com os tratamentos convencionais.

Pelo sim, pelo não, resolvi escrever esse texto-legado, mas isto não quer dizer que eu esteja com o pé na cova. Pelo contrário, antes desse susto eu estava na expectativa de saber a quantas andava meu coração e agora esse espectro deixou de me assombrar.

Anônimo disse...

Oi Celso, tudo bem por aí?

Deixo aqui um vídeo de um "patinho feio" das mídias sociais, Lívia Zaruty.
Uma análise que não é dos "tudólogos" de plantão, sobre a tragicomédia
eleitoral por aí.

Ⓜ️MARÇAL X MILITANTE AFRO PARDO REVOLTS NO RODA VIVA | Dexter “8° Anjo”
e Racionais Mc's
https://www.youtube.com/watch?v=rQ2HHjPCx6o

Forte abraço do Hebert.

PS: Sessão Western hoje na Rede Brasil de Televisão (também conhecida por Rede Brasil e anteriormente pela sigla RBTV, (as 22:00). Só não sei qual o Título.

Anônimo disse...

Boa, Celso. Feliz que estejas bem.

celsolungaretti disse...

Hebert e anônimo das 18h54, um forte abraço para ambos. Como dizia o grande Jards Macalé, ainda vou continuar desafinando o coro dos contentes por um bom tempo,,,

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