sábado, 18 de junho de 2022

SEMPRE HAVERÁ HERÓIS E MÁRTIRES RESISTINDO AO STATUS QUO DEGRADANTE

dalton rosado
DESCULPEM-NOS, AUTÓCTONES AMERICANOS!
Sempre fico me perguntando: qual terá sido, no ano de 1500, o sentimento de surpresa dos indígenas na praia ao verem chegar pelo mar aquelas naus gigantes? 

Seria como se víssemos hoje aterrissar um disco voador?

Sim, é bem possível que tivessem curiosidade e medo perante aqueles milhares de homens cobertos com vestimentas desconhecidas, barbudos (muitos deles com escorbuto), falando um idioma desconhecido e trazendo consigo estranhos objetos que cuspiam fogo. Eles representavam para os autóctones tipos diferentes, ainda que de uma mesma espécie humana. 

Surpresos, ingênuos, desconfiadamente receptivos, não tinham para com os estranhos visitantes e suas embarcações nenhuma animosidade, apenas curiosidade. 

Por seu turno os visitantes, sempre sentindo-se superiores, olhavam e tratavam aqueles hominídeos como seres quase humanos, afinal tinham saberes desconhecidos dos daqueles por eles tidos como cientificamente avançados.

Qual o sentimento dos visitantes?  Seria muito diferente: 
— dos que hoje saqueiam a Amazônia via garimpo predatório e ilegal de minérios? 
 dos que cultivam plantas alucinógenas e as processam para a comercialização dos seus derivados pelo narcotráfico?
 dos que promovem a pesca predatória e ilegal? 
 dos que são responsáveis pela devastação madeireira que causa desmatamento, provoca incêndios e emite gás carbônico poluente na atmosfera?

Guardadas as proporções, já que se tratava de um capitalismo então iniciante, o sentimento de saque é o mesmo. A diferença está nas armas dos atuais visitantes da Amazônia, pois elas são bem mais letais.  

Somos a resultante de uma civilização incivilizada. O nosso exemplo de civilização para os autóctones não apenas se mostrou covardemente escravista e assassino, como também estruturalmente perverso. 

Assassinatos, escravização, opressão econômica e política, misoginia, racismo, homofobia, dentre outras mazelas, são traços marcantes de uma civilização moralmente decomposta, dita moderna, que tenta impor aos autóctones remanescentes os seus valores decrépitos. 

Como seria o convívio com tais autóctones:
— se, ao invés de saques e comportamentos segregacionistas que se evidenciaram logo nos primeiros contatos, demonstrássemos espírito solidário, trocando e partilhando informações, ao invés de trocarmos espelhos por ouro? 
 se não os obrigássemos a se ajoelharem diante de um Deus por eles desconhecido?
— se não lhes impuséssemos o sentido econômico-jurídico de propriedade?
— se os tratássemos como seres humanos iguais a nós? 

Os autóctones, mesmo sem muitos dos conhecimentos que mais valorizamos,  têm para com os seus uma relação social verdadeiramente humana, solidária e comum (ou seja, são comunistas no sentido superior do termo). Eles, desde ontem e ainda hoje:
— não escravizam; 
 não batem nas suas mulheres; 
 protegem suas crianças e idosos;
 não acumulam, de modo excludente, riquezas abstratas e materiais; e
 partilham tudo que produzem e consomem, menos quando são contaminados e corrompidos pela ganância dos ditos civilizados, que os iludem com álcool e quinquilharias.   

Mas há seres humanos que, mesmo sendo nascidos e criados na civilização ocidental, insurgem-se contra as suas mazelas, como é o caso de Bruno Pereira e Dom Phillips. 

Estes são reconhecidos facilmente pelos autóctones como uns dos seus; interagem com estes últimos; estabelecem relações humanas de trocas de informações indispensáveis à vida naquela região tão bela quanto inóspita. Enfim, ensinam a boa lição, aprendendo-a e aprendendo-a do mesmo modo.  

Imaginemos se, ao invés de homens armados e financiados por um reino cujo interesse amplamente dominante era o de levar vantagem econômica sobre aqueles ingênuos filhos da terra, por aqui chegassem milhares de Pereiras e Phillips, com idêntico espírito respeitoso e solidário.  É evidente que se construiria uma sociedade profundamente diferente da que temos 

Como seria se nos Estados Unidos e no Canadá houvesse prosperado uma civilização fundada nos princípios de civilidade, ao invés de nos da ganância e da guerra fratricida, com caubóis e cavalaria terem exterminando os chamados peles vermelhas como moscas?  

Vemos uma caricatura sinistra de presidente da República, do alto de sua ignorância crassa, afirmar que o indigenista e o jornalista foram assassinados por se aventurarem imprudentemente numa região conflagrada. No entanto, sabermos:
— que os organismos ambientais de fiscalização e combate aos crimes ambientais e econômicos ali existentes foram premeditadamente desarticulados ou precarizados: 
 que há um reconhecimento oficial de impotência governamental diante das ações do crime organizado;
 que há uma visão oficial equivocada de integração humana da Amazônia, como desculpa esfarrapada de um fantasioso (ao mesmo tempo real) combate à entregação da Amazônia a estrangeiros cobiçosos; 
 que a culpa do assassinato de Bruno e Dom recai em parte sobre quem ousa defender a Amazônia dos criminosos, pois entraram onde correriam risco de vida!!!!

A conclusão final é de que começamos mal e ainda estamos no estágio inferior deste processo, ora agravado por uma crise de saturação do modelo instituído. A conquista das Américas pelo mundo civilizado europeu, que efetuava sua transição do feudalismo para o capitalismo quando de tais conquistas, trouxe consigo todas as mazelas que se constituíam como seu ethos fundamental.     

O processo histórico dialético está, contudo, a demonstrar que, enquanto os humanos estiverem sobre a face da Terra, não haverá mal que dure para sempre e, como uma flor que nasce da lama, haverá os que se insurgirão contra o degradante status quo estabelecido, sacrificando a própria vida para estimular a resistência, a superação e a transcendência desse modelo desumano.  

Bruno Pereira e Dom Phillips, como tantos outros que vêm sendo assassinados na Amazónia, representam o que há de melhor na humanidade e a certeza de que ainda poderemos caminhar no sentido da verdadeira civilidade. 

Portanto, perdoem-nos todos os autóctones americanos!  (por Dalton Rosado)

Um comentário:

Anônimo disse...

https://www.theguardian.com/world/2022/jun/18/bolsonaro-president-war-amazon-killing-brazil-dom-phillips-bruno-pereira
OU
https://www-theguardian-com.translate.goog/world/2022/jun/18/bolsonaro-president-war-amazon-killing-brazil-dom-phillips-bruno-pereira?_x_tr_sl=en&_x_tr_tl=pt&_x_tr_hl=pt

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