terça-feira, 17 de maio de 2022

DEBATE DA DESIGUALDADE DE GÊNERO VIRA PALHAÇADA A SERVIÇO DAS ELITES

D
esconhecia que os parasitas que habitam o meu corpo podem ser expressões de sexismo, nepotismo e clientelismo. Mas viver é aprender, e eu aprendo: informa a TV Sky News que existe uma nova polêmica de gênero no horizonte.

Um grupo de estudiosos, liderado pelo professor neozelandês Robert Poulin, analisou oito revistas científicas entre 2000 e 2020. Foram descobertas 2.900 espécies microscópicas durante esse período. A esmagadora maioria foi batizada com nomes masculinos –os nomes dos cientistas, dos seus familiares e dos seus amigos. As mulheres estão fracamente representadas (só 11%).

Entendo a polêmica: qualquer pessoa sensata gostaria de dar o seu nome a um verme intestinal. E as mulheres, presumo, gostariam de poder olhar através do microscópio e ver, sei lá, uma Maria ou uma Joana. 

Mas os homens, com inteligência e ganância, já colonizaram o tubo digestivo. Só tem Manuel e João.

Para além de sexistas, os homens são pouco românticos. Haverá coisa mais bela do que dar o nome da namorada a uma lombriga ou a uma tênia? É melhor que flores ou chocolates.

O caso será anedótico, concedo. Mas ele mostra um dos problemas das conversas regulares sobre a igualdade (de gênero e não só): tudo vira palhaçada. 

E a palhaçada, claro, não altera as desigualdades reais: enquanto o mundo discute os nomes de parasitas, as injustiças permanecem intocadas.

É tudo pose, em suma. Ou, para usar as palavras do filósofo de ascendência nigeriana Olúfémi O. Táíwò, hoje professor na Universidade Georgetown, é tudo captura das elites.

Táíwò tem observações luminosas sobre o grande negócio da vaidade simbólica.

Captura das elites começou por ser um conceito aplicado aos grupos com influência social que, na África e sobretudo no período pós-colonial, passaram a controlar os recursos financeiros do país.

Essa captura é visível também nas sociedades ocidentais e na forma como os grupos socialmente representativos empresas, universidades, mídia, política etc.– sequestraram as questões de gênero para ganhos próprios, que em nada modificam as desigualdades estruturais.

As grandes empresas são o melhor exemplo: se o lucro implica uma vênia à sensibilidade woke, as corporações são as primeiras a sinalizar a sua virtude, mesmo que os seus trabalhadores continuem a ser miseravelmente pagos.

O mesmo acontece em todos os redutos da elite: a retórica é barata e traz lucro, material ou simbólico. Mas as relações de poder permanecem intocadas. Aliás, as elites só abraçam as pautas identitárias precisamente para que as relações de poder permaneçam intocadas. 

Uma das formas de o conseguirem, argumenta Olúfémi O. Táíwò, passa pela cooptação de elementos da minoria para que sejam figurantes no grande espetáculo da consciência social.

Essa política de deferência significa apenas que as elites passam o microfone a alguém que foi marginalizado pelo sistema, desde que isso não altere o sistema.

As consequências são inevitáveis: perde-se a ação coletiva; as decisões essenciais ficam cada vez mais distantes das pessoas marginalizadas; e as elites não abrem mão da sua supremacia e do seu paternalismo.

Sim, minhas discórdias sobre o argumento geral de Olúfémi O. Táíwò são enormes. Ao contrário dele, nunca comprei a visão dicotômica (e marxista) de que a complexidade das relações sociais pode ser resumida a simples relações de poder.

Nem tudo é cosmética; a história também apresenta episódios nos quais as mudanças estruturais precisaram da participação das elites para acontecerem –da abolição da escravatura à expansão da democracia, exemplos não faltam.

Mas Táíwò está certo quando denuncia os excessos cênicos (e cínicos) com que muitos profissionais da virtude parasitam as causas igualitárias para obterem ganhos próprios.

Conheço vários. São aqueles que enchem a boca com a
justiça racial ao mesmo tempo que exploram os seus empregados em casa. 
(por João Pereira Coutinho)

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