sábado, 18 de dezembro de 2021

EU SOU A REVOLUÇÃO, MAS PODE ME CHAMAR DE WESTERN ITALIANO

Um dos gêneros cinematográficos que mais falou da revolução para plateias amplas foi o western italiano. Poucos, hoje, sabem disso.

Nascido em meados da década de 1960, o spaghetti-western foi também muito caro para a minha geração noutro aspecto: lavou a alma de todos que gostávamos dos bangue-bangues, mas não da  caretice  dos estadunidenses.

Teve surpreendente sucesso nas bilheterias: O Dólar Furado (1), p. ex., chegou a ficar em cartaz durante cerca de um ano num cinema de São Paulo. Isto se deveu não só a ter ocupado um espaço vazio, já que os estadunidenses haviam deixado de fazer bangue-bangues, como também a haver trazido um novo enfoque e uma nova moldura para o gênero.

Tirando obras de exceção como Matar ou Morrer (2), Sem Lei e Sem Alma (3), O Matador (4), Estigma da Crueldade (5) e Rastros do Ódio (6), os faroestes made in USA de até então tinham o insuportável defeito de tentarem nos impingir aquela ladainha da luta eterna do Bem contra o Mal – um tédio!

mocinho não fumava, não bebia, não praguejava e nem trepava. A mocinha era recatada donzela. O xerife, pachorrento mas digno. Os índios, selvagens bestiais que tinham de ser tirados do caminho para não atrapalharem o progresso. Os mexicanos, beberrões subumanos.

Mesmo no mato, conduzindo boiada, o mocinho tinha a decência de manter-se sempre limpo e escanhoado. Bah!

O western italiano surgiu meio por acaso. A indústria cinematográfica italiana conseguira nos anos anteriores faturar uma boa grana com filmes épicos e mitológicos. Hércules, Maciste, Ursus, Golias, fundação de Roma, guerra de Tróia, etc. O filão, entretanto, estava esgotando-se e a Cinecittà saiu à cata de um novo produto.
James Coburn e Rod Steiger em "Quando explode a vingança"

Sergio Leone, então com 34 anos, tinha começado a carreira no neo-realismo italiano (como assistente de direção e diretor de segunda unidade), mas não conseguira alçar-se à direção. 

Era difícil abrir um espaço entre mestres como Vittorio De Sica, Lucchino Visconti, Pier Paolo Pasolini, Federico Fellini, Michelangelo Antonioni, etc.

Então, entre atuar eternamente à sombra dos medalhões do cinema de arte ou mostrar seu trabalho no cinema dito comercial, escolheu a segunda opção. Depois de dirigir os épicos Os Últimos Dias de Pompéia (7) e O Colosso de Rodes (8), teve a sorte de estar no lugar certo, no momento exato, para dar o pontapé de partida num novo ciclo.

Adaptou para o Oeste a história de Yojimbo (9), um filme de Akira Kurosawa sobre samurai que açula a discórdia entre dois senhores feudais para prestar-lhes serviço alternadamente, sem que percebam seu jogo duplo. O que Leone fez em Por Um Punhado de Dólares (10), basicamente, foi mudar a ambientação e colocar um pistoleiro caça-prêmios no lugar do samurai.

O protagonista também teve aí seu grande golpe de sorte. Clint Eastwood não emplacara em Hollywood como mocinho, ficando relegado a séries de TV e a filminhos classe “B” e “C”.
Sergio Leone vislumbrou em Clint
Eastwood o anti-herói emblemático

Leone percebeu nele um bom anti-herói. Compôs seu personagem (o 
Estranho Sem Nome) com barba rala, chapéu sobre os olhos, charuto na boca, fala arrastada e um poncho. Com isto, acabou alçando-o ao estrelato e fazendo jus à homenagem que depois Eastwood lhe prestaria, ao dedicar-lhe sua obra-prima Os Imperdoáveis (11).

O que diferenciou o western italiano foi exatamente ter sido feito por cineastas bem diferentes dos tarefeiros hollywoodescos (os ditos artesãos, que se limitavam ao feijão-com-arroz artístico que lhes garantisse o dito cujo gastronômico).

Damiano Damiani, Carlo Lizzani e Sergio Corbucci eram outros talentos com a cabeça feita pelo cinema de arte, assim como o superlativo roteirista Sergio Donatti (aliás, até os grandes diretores Bernardo Bertolucci e Dario Argento chegaram a escrever histórias para westerns).

Então, não se limitaram a realizar filmes com muita ação e nenhuma vida inteligente; fizeram questão de deixar sua marca, passando mensagens cifradas, dando toques, propondo outra abordagem para o gênero. Em vez de um palco em que o Bem vence sempre o Mal, o bangue-bangue italiano mostrou o  velho Oeste como uma terra de ninguém, primitiva e selvagem, em que todos perseguem seus objetivos como podem. 

Evidentemente, há muito mais verossimilhança nesse enfoque do que no estadunidense. O Oeste do século 19 seria algo como o garimpo de Serra Pelada no seu apogeu. Um grotão selvagem onde prevalecia a lei do mais forte.

No lugar do herói, o western italiano consagrou o anti-herói: barbudo, desgrenhado, com roupas sinistras, muitas vezes um caça-prêmios, quase sempre um mau-caráter. No fundo, só se diferenciando dos bandidos por agir sozinho enquanto os outros atuam em bando.
Imagem icônica: Franco Nero como Django, ex-soldado
que chega à cidade enlameada arrastando um caixão

Lembrem-se: era a década de 1960, quando havia um imenso desencanto com a ordem estabelecida. Rebeldes eram tudo que queríamos ver. Não suportávamos mais os heroizinhos
cdf de Hollywood, daí termos sido imediatamente cativados pela alternativa europeia, os Djangos, Sabatas e Sartanas (os  únicos  mocinhos  nos moldes estadunidenses eram os protagonizados por Giuliano Gemma).

E, enquanto os poderosos viraram vilãos, os índios e os peões mexicanos passaram a ser mostrados como vítimas e heróis. Afinal, vários cineastas italianos tinham inclinações revolucionárias, mas não havia nada revolucionário para destacar nos EUA do século 19.

A solução foi transferir a ação para o efervescente México, como em Quando Explode a Vingança (12), Uma bala para o general (13), Reze a Deus e Cave Sua Sepultura (14), Réquiem Para Matar (15), Os Violentos Vão Para o Inferno (16), Companheiros (17),  O Dia da Desforra (18) e Tepepa (19).

Toques esquerdistas, sim, eles podiam inserir em filmes cuja ação transcorria nos EUA:
Roqueiro francês, Johnny Hallyday 
estrelou um western: O Especialista
  • Django (20), no qual os vilões são obviamente inspirados na Ku-Klux-Khan;
  • Quando os Brutos Se Defrontam (21), reflexão sobre a gênese de líderes oportunistas;
  • O Especialista (22), que coloca jovens rebeldes (referência às barricadas francesas de 1968) em ação no Oeste;
  • O Vingador Silencioso (23), denunciando o massacre de Johnson Country, quando centenas de imigrantes eslavos foram dizimados pelos barões de gado do Wyoming – o mesmo episódio histórico que seria depois retratado na superprodução O Portal do Paraíso (24); e
  • o extraordinário Três Homens em Conflito (25), com algumas das mais marcantes sequências antibelicistas do cinema em todos os tempos.
Uma última característica notável foi libertar a trilha musical da tirania do country. Não mais o que realmente existia nos EUA do século retrasado, como violões, violinos, banjos, gaitas e sanfonas, mas também flauta, saxofone, órgão, sintetizadores, castanholas – tudo que se harmonizasse com o clima daquela trecho do filme, pouco importando se tais instrumentos eram encontrados ou não no velho Oeste.

Para completar, o uso criativo de sinos, caixas de música, assobios e outros achados. Ennio Morricone é, com certeza, o melhor criador de trilhas musicais de todos os tempos.

E as músicas diferentes se casaram às mil maravilhas com as apresentações diferentes dos créditos iniciais, misturando cenas da fita com grafismos. O cinema estadunidense nunca se preocupara muito em valorizar a abertura do filme e levou um banho de criatividade do faroeste italiano,  que adotou esta particularidade como uma espécie de marca registrada. Gosto particularmente da introdução de O dia da desforra, cuja canção-tema, por sinal, é um arraso! (por Celso Lungaretti)
"Caminha, rapaz, caminha, a fronte contra o sol! Caminha, rapaz,
caminha, até chegar à liberdade, até chegar aonde eles
nunca, nunca, nunca terão prisão para você!" 
Filmes citados:
  1. Un Dollaro Bucato, 1965, d. Giorgio Ferroni
  2. High Noon, 1952, d. Fred Zinneman
  3. Gunfight at O.K. Corral, 1957, d. John Sturges
  4. The Gunfighter, 1950, d. Henry King
  5. The Bravados, 1958, d. Henry King
  6. The Searchers, 1956, d. John Ford
  7. Gli Ultimi Giorni di Pompei, 1959
  8. Il Colosso di Rodi, 1961, d. Sergio Leone
  9. Yojimbo, 1961, d. Akira Kurosawa
  10. Per un Pugno di Dollari, 1964
  11. Unforgiven, 1992, d. Clint Eastwood
  12. Giù la Testa, 1971, d. Sergio Leone
  13. El Chuncho, Quién Sabe?, 1967, d. Damiano Damiani
  14. Prega Dio... e scavati la fossa, 1968, d. Edoardo Mulagia
  15. Requiescant, 1967, d. Carlo Lizzani
  16. Il Mercenario, 1968, d. Sergio Corbucci
  17. Vamos a Matar, Compañeros, 1970, d. Sergio Corbucci
  18. La Resa dei Conti, 1966, d. Sergio Sollima
  19. Tepepa,  1969, d. Giulio Petroni
  20. Django, 1966, d. Sergio Corbucci
  21. Faccia a Faccia, 1967, d. Sergio Sollima
  22. Gli Specialisti, 1969, d. Sergio Corbucci
  23. Il Grande Silenzio, 1968, d. Sergio Corbucci
  24. Heaven’s Gate, 1980, d. Michael Cimino
  25. Il Buono, Il Brutto, Il Cattivo, 1966, d. Sergio Leone

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