rui martins
UM PASSO EM FALSO E UM ENORME SALTO PARA TRÁS
Alguns poderão dizer que é uma flagrante mentira, mas usarei outra terminologia: trata-se de um sofisma. Assim como não se pode estar em dois lugares ao mesmo tempo, não se pode prestar obediência a dois e muitos menos a três senhores exigentes
Acompanhei boa parte da sessão da Comissão de Constituição e Justiça do Senado, o suficiente para perceber a pobreza dos debates e o baixo nível (no sentido de fraco e primário) da sabatina a que foi submetido o bolsonarista Mendonça, com sua cara de humilde e bonzinho diante dos senadores. A comentarista Dora Kramer falou mesmo em água com açúcar.
Teria vindo uma ordem de cima, dos partidos da oposição a Bolsonaro, para deixar passar Mendonça e não sangrar demais o presidente?
Os seis votos que abriram as portas do STF para o pastor teriam vindo mesmo do PT, do Podemos e da Rede Sustentabilidade, numa tentativa de fazer um gesto aos bons evangélicos e de preservar um 2º turno com Bolsonaro e Lula. Sem nos esquecermos de que Marina Silva é uma boa evangélica.
A farsa de que Deus não é absolutista e permite aos seus seguidores tomar um fôlego no STF, deu certo. Ao final da sabatina todos pareciam convencidos pelas respostas do ex-ministro de Bolsonaro, pela sua postura de candidato bem aplicado, disciplinado e pelas promessas de obediência ao poder terreno e não divino, no caso de conflito entre a Bíblia e a Constituição num julgamento do STF.
Os senadores deixaram de lado o esperado exame sério e exigente, diante do simpático, educado, cordato e bonzinho Mendonça.
Foi surpreendente a maneira como Mendonça enrolou na farinha a CCJ e depois a maioria dos senadores, interpretando o papel de alguém disposto a dizer amém a tudo quanto dele exigissem, e mesmo a corrigir algumas frases fora do esperado contexto.
Mas Mendonça, mesmo se fazia cara de, não é nenhum tonto. Ele interpretava seu papel: depois de quatro meses de espera e uma peregrinação junto aos senadores, estava a fim de prometer qualquer concessão para chegar ao STF. Depois, e agora é o caso, no STF a coisa será outra!
Entretanto, está mal orientada a discussão quanto a uma maior fidelidade de Mendonça aos Evangelhos do que à Constituição. Na verdade, e já faz tempo, entre a opção de servir a Deus ou a Bolsonaro, o esperto Mendonça já havia escolhido servir a Bolsonaro tanto na AGU como na função de ministro da Justiça. Deus ficou em segundo plano.
Exceto se os códigos bíblicos evangélicos de conduta mudaram, um verdadeiro evangélico não teria aceitado fazer parte de um governo de extrema-direita.
Existe também a questão das armas: evangélico gosta de armas em casa? Defende a posse de armas, acha que briga se resolve no tiro? Ao que se saiba, isso não se ensina na escola dominical das igrejas evangélicas, muito ao contrário.
A conclusão é, portanto, elementar: quem é realmente evangélico não aceitaria fazer parte de um governo interessado no comércio de armas, em armar o povo e provocar assim um aumento do número de assassinatos.
Mesmo não tendo Mendonça a mesma formação dos seus futuros colegas, necessária a um jurista do STF, sabe muito bem o que é um vírus. Ora, se é evangélico e se preocupa com a vida das pessoas, por que aceitou fazer parte de um governo contrário à vacina, responsável por um genocídio reconhecido pela maioria dos mesmos senadores na recente CPI?
Mendonça não só aceitou fazer parte do governo como advogado da União e ministro da Justiça, como também foi além ao soltar os cachorros em cima dos jornalistas críticos do governo, por Bolsonaro ter descartado e minimizado a crise sanitária. Tais jornalistas foram denunciados por ele com base na Lei de Segurança Nacional da época da ditadura militar e, se não fossem os juízes atuais do STF, teriam sido presos e condenados por delito de opinião.
E na sabatina com os senadores, como ele se defendeu? Dizendo indiretamente que obedecia a ordens. Ora, ele obedecia a ordens de Deus ou do Bolsonaro? Me engana que eu gosto, diria a senadora Simone Tebet e outros encantados com o charme do inofensivo Mendonça.
E não é só. Quando os governadores decidiram fechar tudo para evitar a propagação do vírus, o que fez o inofensivo Mendonça? Recorreu ao STF para reabrir as igrejas, porque deve acreditar que dentro das igrejas não há vírus, ou que o cântico dos gospels, dos salmos e hinos afasta o risco de contaminação, mesmo com as bocas abertas, sem máscaras, para cantar! Ou nada disso: reabrir as igrejas para agradar a Bolsonaro.
E o desflorestamento da Amazônia? Mendonça é contra ou a favor? Se é contra, por que continuou no governo? Se segue mesmo a Deus, estaria Deus com os agropecuaristas?
Mendonça garantiu que, como ministro do Supremo, vai ser correto, não vai ser fanático evangélico, não vai obedecer ao Silas Malafaia, que vai seguir a Constituição e não a Bíblia. E os senadores, inclusive alguns do PT, acreditaram?
Porém, como já vimos, a questão não é se o terrivelmente evangélico, no STF, vai dar primazia ao seu Deus e à Bíblia, e deixar de lado um livro de leis feitas por homens como é a Constituição! Deus, Mendonça já ignora faz tempo; a verdadeira questão era – entre a Constituição e Bolsonaro, quem Mendonça vai preferir?
Em todo caso, os senadores abriram um precedente cujas consequências serão desastrosas. Quebraram um dos princípios básicos da nossa República, a laicidade. Já se ouve dizer que a nova exigência dos evangélicos será outro deles, terrivelmente evangélico, na chapa de Bolsonaro, como vice-presidente. Silas Malafaia, talvez?
Enfim, há uma coisa que revira o estômago – é a foto tantas vezes publicada, de Mendonça com a cabeça no peito de Bolsonaro, num gesto quase amoral de submissão plena. Esse gesto é vergonhoso e não nos deixa acreditar num Mendonça laico e independente no STF.
Parodiando Mendonça, que parodiou Neil Amstrong (mesmo se muitos evangélicos não acreditam em viagens espaciais), essa escolha de um pastor para o STF foi um passo em falso e um enorme salto para trás! (por Rui Martins)
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