dalton rosado
O FUNDAMENTALISMO RELIGIOSO NO BRASIL
Quando ainda estudante de direito, tive um catedrático professor de direito processual penal que, durante uma aula, tirou do pulso o seu relógio e pediu para que cada aluno descrevesse em poucas linhas as características do dito cujo.
No dia seguinte, demonstrou que, nos mais de 80 depoimentos sobre um mesmo objeto, havia cerca de 80 diferentes formulações de opiniões, ainda que com alguns pontos convergentes.
Daí sua conclusão: se, diante de um objeto concreto, presente, existiam tantas divergências opinativas, o que se dizer narrativa de alguém com seu testemunho de um fato pretérito?
Como disse o nosso querido Rui Martins, a Bíblia foi conjecturada a partir de relatos orais de 1.500 a 150 anos antes de Cristo, época na qual inexistia a escrita mecânica (criada por Johann Gutemberg somente no século XV desta era). Assim, o livro bíblico se baseia fundamentalmente em relatos orais transmitidos de geração a geração, com as imperfeições próprias à espécie.
Os crentes das religiões monoteístas, islâmica, judaica e cristã, respectivamente, entendem que o Alcorão, o Torá e a Bíblia são textos enviados diretamente por Deus e, portanto, sagrados. Aceita esta premissa, as palavras contidas nos respectivas escrituras sagradas se tornam leis divinas e inquestionáveis.
Agora, imagine o que representa uma citação das escrituras consideradas sagradas para alguém pouco versado na cultura gramatical, humanista ou científica, sem o devido enquadramento teológico-metafórico ali contido em quase todas as passagens.
A leitura ao pé da letra de um texto tido como sendo inquestionavelmente sagrado, e com a subjetividade interpretativa e sentimento de injustiça social que é frequente nas pessoas com tais condições culturais, geralmente leva a conceitos e ações diferentes daqueles que se poderiam ou deveriam depreender do que está sendo lido.
Fico impressionado com a quantidade de pequenos locais religiosos, autônomos, criados sob as mais diversas denominações, que existem nas periferias de todas as cidades brasileiras, gerenciadas por pastores evangélicos sem a devida formação teológica, a prometerem aos fiéis uma vaga no paraíso a partir de determinados comportamentos e, principalmente, desde que paguem os dízimos citados em tais escrituras tidas como sagradas.
A primeira questão a ser levantada é a do conformismo obediente aos equivocados conceitos ministrados a partir de uma interpretação particular e fundamentalista do que seja necessário fazer para alcançar-se o paraíso.
A segunda questão, de cunho sócio-político-econômico-doutrinário, é a aceitação da usura como algo inquestionável, e tão natural e benéfico como o ato de se beber água e comer.
Mesmo ressalvando-se que existem pastores evangélicos preparados e bem intencionados, não são poucos os indivíduos sociais de pouca instrução teológica que, nas periferias das cidades brasileiras, ministram interpretações bíblicas a seu talante e aproveitando-se para benefício próprio da fragilidade dos indivíduos sociais desesperados em face de um processo de mediação social que atinge o seu ponto de esgotamento pelas próprias contradições.
A busca por uma recompensa espiritual e celestial para tanto sofrimento aqui na Terra, e a promessa de prosperidade a partir de determinados comportamentos recatados e obediência cega, têm sido o móvel aglutinador e explicação do crescimento do número de seguidores das igrejas de cunho fundamentalista.
Não esqueçamos que foi a partir do desenvolvimento da vida mercantil há cerca de meio milênio, ou seja, do capitalismo em substituição paulatina ao feudalismo, que as religiões ditas protestantes ao catolicismo de então (mancomunado com a monarquia e a aristocracia rural europeias) que deu substancia argumentativa à nova ordem social então surgida e em formação.
O protestantismo evangélico, que ganhou força nos Estados Unidos pelas mãos dos colonos europeus, tornou-se uma doutrina admiradora do pretenso progresso capitalista e seus ordenamentos jurídico-constitucionais, servindo de exemplo para as Américas do Norte, Central e do Sul.
Esta é a base doutrinária do fenômeno hoje existente no Brasil.
As igrejas evangélicas têm um grande peso político-social no Brasil de hoje. Não é por menos que os políticos em geral fazem acenos de amizade e boa vontade aos fiéis evangélicos, a ponto de seus próprios pastores aventurarem-se na política, misturando religião, política e economia.
Mas não podemos afirmar, que ipso facto, os evangélicos, em sua maioria, aderirão a projetos políticos conservadores ou não, de modo a definir o processo eleitoral de 2022.
Pelo contrário, entendo que a incursão na vida política brasileira pelos pastores evangélicos deverá acarretar um desgaste na credibilidade dos seus respectivos ensinamento bíblicos (vide, p. ex., o caso do pastor Everaldo, que batizou Boçalnaro, o ignaro nas águas do rio Jordão, sendo mais tarde preso por corrupção), de vez que a realidade das práticas políticas, obrigatoriamente nebulosas, entrará em conflito com a subjetividade inquestionável da vida espiritual post mortem.
Aliás, o processo eleitoral, que é o canal de acesso político ao Estado opressor e subserviente ao capital, está fadado ao fracasso qualquer que seja o eleito, pois este terá de enfrentar as agruras de depressão econômica e problemas ecológicos impossíveis de serem resolvidos sob os marcos da lógica de mediação social esgotada a que estará constitucionalmente atrelado.
Há uma descrença generalizada no segmento político e tal espaço é ocupado tanto por pregações nazifascistas de redenção social como pelo fundamentalismo religioso que prega prosperidade aqui na Terra e promete escritura de um lote no Céu, passada por tabelião pastoral.
O fundamentalismo religioso no Brasil ganha espaço perigosamente, e isso somente tem sido possível por conta do descrédito que bandeiras políticas atreladas ao capitalismo destrutivo e autodrestrutivo (ainda que a esquerda se afirme anticapitalista) atuam no cenário político eleitoral.
Num meio social previdente e equânime, capaz de prover a todos confortavelmente, a questão religiosa tenderia a perder importância social, restringindo-se a questão pontual de transcendência existencial espiritual.
Qualquer discussão sobre o que é melhor ou pior como governante, ainda que entendamos que alguém com sensibilidade social é menos pior do que quem acha que a morte de seres inservíveis ao processo de produção do valor é solução, somente retira de foco a questão principal: como termos um modo de produção social e correspondente ordenamento jurídico-constitucional capaz de prover a todos em suas necessidades de consumo, e de modo ecologicamente sustentável? (por Dalton Rosado)
Em Opinião, com letra e música de Dalton Rosado, na voz do
Gomes Brasil, ressoam ecos do lendário Show Opinião
de 1964 e da canção nele interpretada pela saudosa Nara Leão.
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