quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

SÓ MESMO LEITE MOÇA PARA DISFARÇAR O SABOR RANÇOSO DAS MAMATAS

rui martins
DO LEITE CONDENSADO À MAMADEIRA
D
e todos os meus artigos, foi este que me deu mais trabalho e exigiu mais pesquisa. Tão logo li no portal de notícias Metrópoles a hoje tão comentada história da compra de milhares de latas de leite condensado marca Moça, imaginei a deliciosa e doce matéria saindo do meu computador.

Ah, ah, quando se fala em leite, antes mesmo de se pensar num pingado, logo se imagina o bezerro extraindo pela sucção o seu precioso alimento das tetas da vaca. Esse ato é descrito pelo verbo mamar. O bebê recém-nascido também mama com a mesma força no seio de sua mãe. Mas o seio pode ser substituído por uma mamadeira.

Mamar e mamadeira, o verbo e o substantivo, voltaram a ser atuais no governo Bolsonaro. Todos querem mamar, ele e seus filhos em primeiro lugar. 

E o leite condensado –já tão apreciado pelo presidente populista na sua receita bem popular e nada sofisticada de ser saboreado com um naco de pão ou de ficar no meio de um pãozinho francês, seria delicioso como tema de denúncia num comentário político. De dar água na boca, para quem escreve e para quem lê.

Todos querendo mamar, tanto deputados como senadores, a ponto de se esquecerem do impeachment.

Chamou-me a atenção o fato de o presidente justificar o envio de tanto leite condensado para as tropas militares, onde também milhares de jovens estão cumprindo seu serviço militar. Eu pessoalmente não me lembrava de um tratamento tão, digamos, maternal, aos soldados, na hora do rancho ou do café no quartel, onde prestei meu serviço militar ou, na linguagem popular, onde servi o Exército.

Foi no 6º Grupamento de Costa Motorizado, numa antiga cavalariça no centro da cidade de Santos, transformada em quartel, depois transferido para Itaipu. Conto isso com desnecessários pormenores, porque nesse mesmo quartel, no ano seguinte, serviu o Pelé, bem no começo de sua carreira no Santos F.C. Ali, como se diz, cumpri meu tempo de serviço, um ano.

Tão logo souberam do meu diploma no curso clássico, no colégio público Canadá, fui dispensado das ordens unidas e passei a trabalhar como escriturário com o primeiro-sargento José Bahia, na atualização das fichários de soldados e conscritos, mais as escalas de serviços. Bahia tinha um perfil diferente do militar: me levava consigo em lançamentos de livros e conferências literárias, me criando esse hábito.

Esse desvio era necessário contar, porque no meu comentário eu iria falar de Intendência nos quartéis, o serviço destinado a cuidar do abastecimento de todos os setores militares, inclusive o da alimentação. Não sei se isso inclui a goma de mascar ou chicletes, mas decerto o aprovisionamento de leite.

Depois de Bolsonaro ter falado em leite condensado para a tropa militar, fiz algumas buscas e fiquei sabendo ter havido distribuição de leite condensado nos Estados Unidos, logo depois de criado pela Nestlé, para os soldados nortistas federais, sob o governo do presidente Abraham Lincoln, durante a guerra contra os sulistas estadunidenses. 

O Guerra da Secessão se deveu à certeza dos sulistas de que Lincoln, tão logo fosse empossado, aboliria a escravidão, o que os levou a pegarem em armas, antecipando-se a tal iniciativa. Terminado o conflito, o leite condensado se tornou popular.

Como não era tão absurda a desculpa de se distribuir leite condensado nos quartéis, a questão exigia esclarecer se os milhões gastos se referiam a despesas pessoais do presidente. Caso o fossem não se poderia tolerar, porque todas as despesas de alimentação nos quartéis são debitadas na Intendência.

Ora, após rápida pesquisa, percebi que o absurdo total de compra de leite condensado não se referia às despesas do Palácio do Planalto, mas ao gasto total do Serviço de Intendência, publicado pelo Ministério da Economia.

Uma conclusão se impõe: por que tanta repercussão na divulgação destes gastos? Fala-se num aumento de 20% sobre o ano retrasado, e isso em si só já é exagerado. 

Porém, não se pode ignorar a perda gradativa de credibilidade sofrida nestes últimos meses pelo presidente Bolsonaro, favorecendo a interpretação de que um balanço geral de despesas seriam suas próprias despesas e de sua desprestigiada família. 

A criação de um escândalo, que se agravou com a retirada do edital desse balanço de despesas, mais a não aceitação das explicações dadas por Bolsonaro, são a consequência da descrença criada à volta do presidente, com suas constantes mentiras. 

Tudo tem um limite e Bolsonaro talvez tenha chegado ao seu limite final de mentiroso do Planalto. (por Rui Martins)
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TOQUE DO EDITOR – As minhas lembranças de preso político coincidem num ponto com as do Rui: leite condensado era um luxo a anos-luz de distância da realidade da soldadesca (e nada me leva a crer que isto tenha mudado, então apostaria até meu último centavo que essa história está mal contada...).
Quando era trazido para alguma audiência na Auditoria do Exército da avenida Brigadeiro Luiz Antônio e ficava preso no quartel da PE no Ibirapuera, sempre estranhava a frequência com que serviam carne de carneiro para a tropa. 

Praticamente um dia sim, um dia não. Impossível não desconfiar do responsável pelas aquisições.

Já o café dos soldados eu conheci bem, naquela sucursal do inferno em que se constituía o quartel da PE da Vila Militar (RJ).  Dos meus 85 quilos havia perdido uns 30 nos cerca de 100 dias desde a minha queda.

Tão flagrantemente subnutrido eu estava que despertei a compaixão dos soldados que traziam o café com leite matinal: mesmo correndo o risco de serem rudemente castigados, alguns me contrabandeavam todo que sobrara após a distribuição a toda a companhia. Era muito aguado (se leite condensado existisse, cairia muito bem, mas percebia-se claramente que do dito cujo não havia nem uma mísera gota...). 

Mesmo ralo, meu corpo recebia com satisfação o açúcar que continha, este sim verdadeiro. (por Celso Lungaretti

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