quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

O DILACERANTE POEMA DE IEVTUCHENKO SOBRE O MASSACRE DE BÁBI YAR EM 1941, ENFIM TRADUZIDO, É ATRAÇÃO DO BLOG

Ievguêni Ievtuchenko
(tradução: André Rosa)
Nenhum monumento se ergue em Bábi Yar.
Um penhasco íngreme, feito lápide áspera.
Tenho medo.
          Hoje tenho tantos anos
quanto o próprio povo israelita.
Vejo-me agora como 
                  judeu.
Eis que perambulo pelo antigo Egito.
E eu, pregado à cruz, pereço,
ainda tenho em mim as marcas de pregos.
Vejo-me como
                            Dreyfus.
O filisteu
        é meu delator e juiz.
Estou atrás das grades.
            Estou cercado.
Intimidado, 
        humilhado,
               caluniado.
E as damas em rendas de Bruxelas berram
enquanto furam-me o rosto com guarda-chuvas.
Sinto-me como
     uma criança em Bialystok (1).
O sangue escorre, se espalha pelo chão.
Chefetes de botequim em raiva desimpedida
entre cheiros de vodca e cebola.
Apanho com pontapés, impotente.
Aos carrascos (2), suplico em vão.
Enquanto berram
            “Esmaguem os judeus, salvem a Rússia!” —
um muambeiro (3) violenta  a minha mãe.
Ó, meu povo russo!
        Eu sei —
              vocês são
internacionalistas em sua essência.  
Mas, aqueles cujas mãos são sujas
chacoalham com o seu puríssimo nome.
Eu conheço a bondade da sua terra.
Quão vis são os
antissemitas que suntuosamente chamam 
a si próprios de União do povo russo!
Vejo-me como
           Anne Frank,
frágil
      como um ramo em abril.
E amo.
         Não preciso de palavras.
O que preciso
     é que nos olhemos nos olhos.
Tão pouco se pode ver,
              cheirar!
As folhas nos são proibidas
              e o céu também é impossível.
Podemos, contudo, 
           gentilmente
abraçarmos uns aos outros num quarto escuro.
Estão chegando?
            Não tenha medo, são ruídos
A própria primavera
               virá até aqui.
Venha até mim.          
Depressa, me dê os seus lábios.
Estão quebrando a porta?
                Não, é o gelo se partindo...
As ervas selvagens murmuram sobre o Bábi Yar.
As árvores soam sinistras
                como num julgamento.
Há no silêncio um grito sem fim,
                    e, tirando o chapéu,
eu 
     encaneço aos poucos.
Eu mesmo,
            feito um berro surdo e incessante
sobre milhares e milhares de enterrados.
Eu sou
    cada velho aqui abatido à bala.
Eu sou
     cada criança aqui abatida à bala.
Nada disso será esquecido
                  por mim!
         Deixem a Internacional
                       trovejar
quando for enterrado para sempre
o último antissemita da terra.
Não tenho uma só gota de sangue judeu.
Mas, em seu ódio insano, todos os antissemitas
neste momento me odeiam,
          como a um judeu,
e por isso
      eu sou um verdadeiro russo!
1Região onde ocorreu um dos mais violentos pogroms, uma versão russa da Noite dos Cristais.

2No original, погромщик, palavra derivada de pogrom, ataque violento a uma comunidade minoritária para intimidação, destruição e/ou pilhagem.

3No original em russo, o verbo насиловать pode significar coagir, constranger, mas também violar e estuprar. Optei por manter a ambiguidade com a palavra violentar. (André Rosa)
TOQUE DO EDITOR – O André Rosa é um jovem com muito talento que começou a escrever-me lá pelo começo desta década, para comentar assuntos culturais. 

Percebi que, se continuasse a morar na sua cidade de origem, um município pequeno e pouco interessado na literatura, desperdiçaria seu evidente potencial; e que, como fazia traduções de russo, aptidão rara, tive certeza de que ele acabaria se dando bem em capitais como São Paulo ou Rio de Janeiro.

Então, incentivei-o enfaticamente a tentar a sorte, até porque, no fundo, ele estava apenas  acumulando coragem para o passo decisivo.

Com poucos recursos mas muita determinação e esperança, ele aproveitou otimamente a chance que surgiu para cursar a UFRJ e deslanchou na vida, adquirindo prestígio como tradutor e publicando artigos no Le Monde Diplomatique e em veículos culturais.

Então, é-me por demais gratificante poder trazer para o blog um verdadeiro tour de force do André como tradutor: o poema  dilacerante que Ievtuchenko criou em 1961, referente ao massacre em massa de 33.761 civis ucranianos, levados pelos nazistas para  a ravina de Bábi Yar, em Kiev, e abatidos como animais nos dias 29 e 30 de setembro de 1941.

Além dos carrascos diretos, Ievtuchenko fustiga os soviéticos, antissemitas desde o tempo dos czares, pois, apesar de então se nortearem teoricamente pela Internacional, não mostraram empatia nem solidariedade para com as vítimas do massacre.  (por Celso Lungaretti)

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